terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Chuva - XL

Sei que se calhar estavas à espera que te desse outros pormenores da história, ou que a tornasse maior, mas apenas te estou a contar a verdade dos factos que se passaram comigo. O resto, ao fim ao cabo, é conhecido e não vou estar a massacrar-te com coisas que já sabes.

O nosso tempo é limitado, por isso não convém alongar-me com pormenores que apenas embelezariam os factos. E, aliás, tu já sabes o contexto...

Por isso não te surpreendas de passar assim pelos assuntos. É que ainda há muito para contar.

Mas, continuando…

Logo a seguir a termos enviado as colaboradoras do “John Smith” para fora do país, resolvemos ir buscar os livros a minha casa. O prédio do lado, o que ameaçava derrocada, ia ser demolido e isso punha em perigo o meu prédio também.

Contactamos uma empresa de mudanças e eu comecei a ir para lá quando saia do trabalho para encaixotar tudo.

Mas lembro-me da primeira vez que lá cheguei. As escadas para a porta do prédio estavam verdadeiramente atulhadas de flores e velas. Ainda bem que ninguém lá estava a morar neste momento. Mas agora tinha mais um factor. Pessoas.

Eram poucas, é certo, mas estavam lá. Quando cheguei olharam-me com uma reserva e um respeito profundo. Passei por elas e elas puseram os olhos no chão, talvez como que dizendo-me que não eram dignas de me olharem.

Mas uma das pessoas, uma mulher africana, veio ter comigo, prostrou-se à minha frente e começou a chorar convulsivamente enquanto dizia “Obrigado!”.

Mas a diferença é que eu agora sabia como lidar com as pessoas. Limitei-me a sorrir e não disse absolutamente nada. Nem lhe perguntei o porquê.

Conforme aquela veio, outras aproximaram-se, chegaram-se a mim, sempre de uma forma…

…humilde, sabes? Havia humildade nos olhares, havia uma esperança. Eu que não tinha nenhuma, de alguma maneira incutia-lhes essa esperança.

Aproximavam-se, tentavam tocar-me, agradeciam. Curiosamente esperava que me fizessem pedidos, que esperassem alguma coisa, mas não. Chegaram a mim sempre de uma forma respeitosa, calma até. Quando dei por isso estava rodeado por uma multidão em plena rua.

Subi os degraus das escadas do meu prédio e sentei-me no último, junto à porta. A multidão sentou-se também a olhar para mim. Ficamos ali muito tempo, em silêncio.

Quando o Fernandes chegou encontrou-me ali rodeado de toda aquela gente. Passou pelo meio deles, em silêncio e quando chegou ao pé de mim apenas se atreveu a murmurar.

“Que é que se passa aqui?”

“Estamos em paz…”

“Mas não achas isto despropositado?”

“Eu acho. Mas acho que eles não…”

Aproveitei a chegada para me levantar e entrar. Havia muita coisa para embalar e tinha perdido ali imenso tempo, embora não o desse como perdido.

Acho que esse foi o dia em que deixei de ter medo de encarar todas as hipóteses possíveis. Eu sou o que sou. Não tenho quaisquer ilusões em relação a mim. Não crio ilusões em ninguém, a não ser escondendo-me para me proteger. Mas os outros podem pensar o que quiserem em relação a mim. Inclusivamente tu. Eu continuarei a ser o que sou independentemente do resto.

Entramos, arrumamos os livros em caixas e esperamos pela carrinha que os iria levar. Quando finalmente chegou e começamos a sair com as caixas as pessoas ainda ali estavam, calmas, a demonstrarem amabilidade umas com as outras.

Sabes, acho que o mundo só andava mesmo à espera de um profeta, um messias, ou seja lá o que for. Andava à espera que chegasse alguém que conseguisse dar algum sentido às coisas, um sentido maior. Acho que as pessoas andavam afastadas da religião e de Deus não por falta de fé, mas porque não viam exemplo nos líderes religiosos, não viam que fosse feito tudo o que poderia ser. Apenas viam uma máquina política, como tantas outras, a arrastar-se.

E se calhar olharam para mim e viram um potencial. Se calhar viram-no porque não fui ostensivo, porque não me impus. Apenas algumas mensagens foram o suficiente para que as pessoas acreditassem que há algo mais, algo maior. E esse era, neste momento, o meu contacto com a humanidade, pois eu achava o mesmo.

Pude ver quando partimos a multidão começar a dispersar. Vi a bola de neve que descia a montanha a avolumar-se.

Foi por isso que não me surpreendi com a visita que recebi alguns dias depois…


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!