quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Chuva - XXIV

Quatro horas, dois minutos e vinte e três segundos da manhã.

Uma súbita vertigem, um zunido grave e de repente o chão começou a tremer violentamente. Estava sentado no chão mas creio que se estivesse de pé teria caído.

A ponte oscilou perigosamente. Em poucos segundos a cidade de Lisboa foi-se apagando, como que por sectores, até ficar apenas iluminada pela lua. Aqui e ali surgia a luz de uma explosão quando uma conduta de gás rebentava.

Quatro horas, três minutos e quarenta e quatro segundos.

Após um minuto e vinte e um segundos a terra sossegou. Fiquei parado. Fiquei à espera. Sabia do perigo de uma réplica. Mas ao fim de uns minutos resolvi levantar-me e aproximar-me o suficiente da beira da falésia para poder olhar para a cidade.

A estátua do Cristo Rei estava intacta. A ponte também. No tabuleiro quem podia começava a sair dos carros e corria para a saída mais próxima. Alguns dos carros no tabuleiro aceleravam para a saída. Tenho a certeza que houve pessoas atropeladas no pânico.

Via toda a cidade iluminada por pequenos focos de incêndio. Não havia luz eléctrica ao longo de toda a costa, quer na margem norte, quer na margem sul. Rio estava com uma ondulação picada que galgava as margens.

O hospital de Almada, à minha esquerda, continuava iluminado, sem dúvida graças a geradores de emergência. Comecei a ouvir sirenes na distância, talvez de veículos de emergência que eram despachados.

Quatro horas, vinte e um minutos e nove segundos.

Nova vertigem, novo zunido e a terra treme novamente, com menos intensidade e durante menos tempo. Arrependi-me de vir para perto da falésia e olho para a estátua. Vejo claramente alguns edifícios a ruir em Lisboa. O rio sobe as margens e invade a zona marginal.

Apesar da destruição não deixo de me maravilhar com a força que a natureza tem, relegando-nos ao nosso lugar ridículo na história do mundo. Desta vez o abalo teve menos de trinta segundos.

Ainda estava preocupado com o que podia vir a seguir. Olhei para a barra do Tejo. Ao longe uma crista enorme reflectia o luar. O meu receio era fundado.

A onda embate contra a costa varrendo tudo à sua passagem e parece acelerar ao entrar a e barra, como se ao começar a subir pelo rio aumentasse ainda mais e acelerasse. Submerge tudo à sua passagem, envolve o padrão dos descobrimentos e a torre de Belém, chega até aos Jerónimos, invade a zona ribeirinha da cidade, faz ranger a ponte à sua passagem, arranca as amarras aos barcos na doca de Santos e empurra-os para terra fazendo-os chocar contra os edifícios. Cargueiros, Porta Contentores e até um barco de cruzeiro. A onda continua a submergir tudo, subindo o rio, não deixando ver os pormenores da destruição.

Ao fim de algum tempo a onda começa a recuar para o mar e deixa atrás de si um cenário dantesco e que só não o é mais porque os estragos não são plenamente visíveis à noite.

E depois de tudo isto um silêncio ensurdecedor.

Havia pessoas a chegar a pé que ficavam perto de mim a olhar incrédulas para o cenário que tem à sua frente.

Consegues imaginar o que foi estar ali e ver aquilo? Eu sei, deves ter sabido de tudo nas notícias, e leste, e viste as reportagens, mas estar ali. Imaginas?

As pessoas podiam ter ouvido. Mas ninguém ouviu.

Lembrei-me no Fernandes, por esta altura. Peguei no telemóvel. Sem rede disponível.

Limitei-me a ficar ali, à espero do amanhecer, e a pensar. Se há algo que queria atenção, era garantido que a tinha. Só era pena que fosse através de mim.

E foi então que percebi que não passo de um mero peão que está encurralado no fim de um jogo de xadrez sem vencedor.

A ironia era inescapável. E pela primeira vez, desde os meus sete anos, ri. 

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