quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Chuva - XXV

 

A claridade da alvorada começou a deixar antever a extensão da destruição. Os primeiros raios de sol fizeram refulgir em tons de laranja o que sobrava das torres das Amoreiras e revelaram uma cidade devastada.

Junto a mim juntara-se uma pequena multidão que se limitava a olhar em silêncio, de uma forma apática, o que tinha à sua frente.

Toda a zona marginal da cidade estava destruída. Mesmo os edifícios que tinham resistido estavam severamente danificados. Havia colunas de fumo por todo o lado. A ponte estava encerrada e havia reboques a tentar tirar os carros sinistrados de cima do tabuleiro, o que era feito com extremo cuidado. Ninguém sabia ainda a extensão dos danos.

Chegavam e partiam ambulâncias do hospital de Almada a um ritmo completamente frenético.

Não havia electricidade. As redes de telemóveis não funcionavam. As rádios estavam mudas, e só se apanhava ruído de estática.

A cidade jazia semi-dormente, ferida com gravidade. Ia demorar bastante tempo a recuperar. Mas recuperaria, como já o tinha feito no passado.

Levantei-me e resolvi ir ver como estava a minha casa.

O caminho foi feito por ruas mergulhadas num caos absoluto, pejadas de destroços e vidros partidos. As lojas começavam a ser pilhadas e não se via autoridade em lado nenhum. Alguns prédios estavam em ruínas, tendo desmoronado por completo. As equipas de socorro tentavam fazer alguma coisa, mas ninguém estava preparado para algo desta dimensão. Aqui e ali via-se corpos de feridos e mortos nos escombros. A maioria das pessoas estava em estado de choque.

O meu prédio parecia ter sobrevivido relativamente incólume, à excepção dos vidros partidos nas janelas. Já o prédio do lado parecia bastante mais danificado, pelo que vi que não seria seguro ficar ali.

A meio da manhã a electricidade começou a voltar a alguns sectores da cidade. Pouco depois o telemóvel começou a acusar rede e tentei ligar para o Fernandes.

“Estou, Gabriel, estás bem?” perguntou ele com uma voz preocupada.

“Estou bem, não te preocupes. Queria era saber como é que tu estás.”

“Mergulhado no caos. Tu não fazes ideia. Logo a seguir ao terramoto entrei pelas urgências do hospital de Santa Maria adentro e tenho estado aqui a colaborar.”

“Onde é que estavas?”

“Pensei no que me disseste e resolvi vir para o relvado da cidade universitária. Completamente descampado, alto…”

“Fizeste bem. Então estavas mesmo ai ao lado do hospital…”

“Sim. Calculei que toda a ajuda fosse pouca. Olha, dá-me um minuto que já te ligo, está a entrar outra chamada.”

“OK. Até já.”

Continuei a caminhar pelas ruas, sem destino nenhum. Mas uma coisa sabia, queria afastar-me um pouco do caos, por isso resolvi voltar para onde estava antes, para perto da estátua. Pelo menos tinha comigo comida e agua que dariam para dois ou três dias, pelo que nem estaria mal de todo.

Ao fim de uns minutos o telemóvel tocou.

“Gabriel, era o Rafael a ligar para mim. Queria saber se eu tinha notícias de ti e quer mesmo muito falar contigo.”

“Era de esperar. Mas acho que vai ser um encontro adiado. Não creio que tenha maneira de entrar em Lisboa, ou ele de sair.”

“Mas estás onde, tu?”

“Olha, vim do Cristo Rei para ver como estava a minha casa, mas estou a voltar para lá outra vez. Almada está um caos, e pelo menos lá sempre estou mais em paz.”

“Isso quer dizer que vais estar por lá?”

“Sim. Daqui a uns vinte minutos devo lá estar.”

“Posso dar o teu número de telefone ao Rafa?”

“Sim, podes.”

“Ok. Então vou fazer isso mesmo. Depois quando sair daqui ligo-te, mas não creio que seja tão cedo. O mundo virou do avesso…”

“O mundo não. Só este pedacinho.”

“Tenho de ir, pá. Até logo.”

“Até logo.”

Não demorou dois minutos até que o telemóvel tocou novamente.

“Gabriel?”

“Sim.”

“Rafael Martins.”

“Já calculava que fosse.”

“Gabriel, temos de falar.”

“É curiosa essa urgência agora. Anteontem não me perecia que falar comigo estivesse no topo das prioridades de alguém…”

“Gabriel, você tem razão, e isso é a única coisa que para já lhe consigo dizer. Quer mais o quê? Um pedido de desculpas pela minha incredulidade?”

“Não. No seu lugar teria agido da mesma maneira, portanto, não há sequer desculpas a serem pedidas.”

“Mas é possível falarmos? Pessoalmente?”

“Não sei. Estou na margem sul e não creio que neste momento seja possível entrar ou sair de Lisboa, por isso…”

“Mas está onde, concretamente?”

“Estou a caminho do Cristo Rei. Devo lá estar dentro de uns dez minutos…”

“E se eu mandar lá um transporte para o ir buscar?”

“Que tipo de transporte?”

“Já andou de helicóptero?”

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