quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Chuva - XXIII

 

Pois é. Nessa noite tive honras de telejornal, embora pouco mais fosse que uma nota de rodapé. No dia seguinte os jornais mencionavam a notícia, mas sem qualquer relevo ou destaque. Aliás, alguns fizeram-no mesmo num tom de gozo.

O Fernandes apareceu às cinco da tarde para me ir buscar e parecia desalentado.

“Já viste estes gajos, pá? A maneira como trataram o que foi dito…”

Eu olhei para ele, seriamente.

“E como é que esperavas que eles tratassem a notícia. As coisas correram como tinham de correr. O que tiver de acontecer, vai acontecer.”

“Mas não te chateia? Tens noção do que pode acontecer?”

“Tenho. Mas não, não me chateia. Nem um bocadinho. Tenho noção de que fiz o que podia.”

“Mas já pensaste nas vidas que se podiam poupar, caso o terramoto tenha dimensões consideráveis?”

“Já. Mas como te disse, não posso fazer mais nada. Cumpri. Para mim chega.”

Ele resmungou qualquer coisa para ele próprio. Eu sei que ele não gostava da minha atitude, mas sabia que eu tinha razão. Claro que, para além disso, ele não fazia a mínima ideia de que eu me estava perfeitamente borrifando para quem morria ou não. Para mim era só mesmo isto. Dever cumprido. Logo, não havia angústias ou ansiedades.

“Que é que vais fazer esta noite?” acabou ele por perguntar.

“Não sei. Mas sei que não vou ficar em casa. O meu prédio é antigo e não faço ideia do que vai acontecer, por isso acho que vou para um sítio onde haja um espaço aberto. Depois logo se vê.”

“Fazes bem. Acho que vou fazer o mesmo.”

“Sim, mas vás para onde fores, não vás para perto do mar. Procura um terreno elevado.”

“Porquê?”

“Porque se o terramoto for de maiores dimensões os maiores estragos virão depois. Não sabes o que aconteceu em 1775? Pensa-se que causou mais estragos o tsunami que se seguiu que o terramoto em si.”

“Vou seguir o teu conselho.” Disse ele.

Deixou-me à porta de casa e seguiu.

O mundo continuava na sua rotina indiferente a tudo. Claro que tinha todas as razões para continuar indiferente.

Eu jantei, como de costume. Depois comecei a arrumar uma mochila com provisões e água. Quando acabei fiquei a ler até por volta das três da manhã. Foi por volta dessa hora que sai de casa. Segui a pé pelas ruas desertas de Almada, apenas me cruzando com um ou outro carro. Fui andando até chegar perto da estátua do Cristo Rei.

Sentei-me no chão e fiquei a observar a cidade do cimo da arriba, mais de cem metros acima do rio que era a única coisa que me separava dela. Estava à minha frente, completamente iluminada, apenas a dois quilómetros de distância. Além disso, conseguia-se ver toda a zona onde o Tejo acabava e começava o oceano. Mesmo ali ao meu lado, um pouco abaixo de onde eu me encontrava, a ponte parecia uma extensão da arriba que esticava para tocar a cidade.

Apesar das luzes da cidade, através do céu limpo dava para perceber que o luar estava forte. Fiquei ai a ver o trânsito que entrava e saia da ponte sobre o Tejo. Olhei para o relógio. Ainda faltava uma meia hora…

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