quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Chuva - XXXIII

 

Passado uma semana abriram a ponte ao trânsito sem quaisquer restrições. A verdade é que tinham ficado mais danificados os acessos do que a ponte em si. Só a circulação de comboios não estava ainda em pleno.

Atravessamos a ponte para ir até minha casa. Tínhamos já pensado ir antes, pela ponte Vasco da Gama, mas acima no rio, mas a verdade é que o trânsito continuava muito condicionado, havendo muitas estradas interrompidas o que fazia com que fosse um verdadeiro pesadelo chegar a Almada. Como se falava de dia para dia da reabertura da ponte sobre o Tejo, lá fomos adiando a visita.

Há uma semana que estava em casa do Fernandes. O sítio onde eu trabalhava estava ainda fechado, portanto tinha ficado este tempo todo em Sassoeiros. Foi bom, sabes? Deu-me tempo para pensar.

Durante esta semana, e embora estivesse em casa dele, raramente nos cruzamos. Ao fim ao cabo acabou por ser uma semana em que praticamente me esqueci do mundo, de catástrofes, calamidades…

…foi uma semana de férias, e soube-me bem.

Mas agora, eis-nos aqui a sair da auto-estrada em direcção a Almada. Sabia que a casa estava lá. O computador estava ligado. Não sabia em que estado estaria o sensor, as estantes com os meus livros. Não estava muito preocupado com os livros, nem mesmo com o sensor. Mas queria recuperar as minhas roupas. Neste momento vestia coisas do Fernandes que me ficavam extremamente largas, causando um desconforto enorme. Ia saber-me bem ter roupa lavada com a minha medida.

Tivemos de circular bem devagar nas ruas estreitas da parte velha da cidade. Ao contrário de Lisboa onde se via equipas de limpeza por todo o lado, aqui eram escassas para a tarefa que tinham em mãos. Ainda havia destroços por todo o lado e algumas ruas estavam cortadas o que nos fez andar às voltas para chegarmos ao meu prédio.

Realmente o prédio do lado ameaçava ruína eminente. Não seria seguro ficar ali.

“…mas não te preocupes com isso, pá.” Dizia o Fernandes “Podes ficar lá em casa o tempo que for necessário. Espaço não me falta…”

Era verdade. Mas o meu canto, a minha privacidade, era algo que eu tinha relutância em deixar. Preferia francamente que não tivesse de ser assim.

Lá conseguimos estacionar o carro, não tão perto quanto o desejaríamos. Saímos e dirigimo-nos para o meu prédio. Foi ai que fiquei verdadeiramente surpreendido.

Nos poucos degraus que davam para a porta da rua estavam espalhadas flores, velas…

…parecia um mini santuário.

Olhei para o Fernandes sem saber o que dizer.

“Pois é, pá. Parece que há pessoas que acham que tens tão boas relações com o homem lá de cima que começam a olhar para ti desta maneira.”

“Que maneira?”

“Não vês? Isto é quase um culto, pá. Não tarda começas a receber pedidos e tretas…”

“Mas as pessoas estão loucas?”

“Não, Gabriel, não estão loucas. Agarram-se é aos poucos vislumbres que têm. Para elas, para aquelas que são crentes em alguma coisa, pelo menos, tu tornaste-te um interlocutor. Isto é uma espécie de sinal do seu próprio arrependimento por não te terem ouvido. Não as afastes assim tão rapidamente. Sei que tens de lhes explicar que não é nada disso, e sei que não vai ser fácil, mas não as afastes.”

Fiquei a olhar, mais uma vez sem ter ideia do que fazer.

“Gabriel, tu não tens noção da importância que ganhaste nos últimos dias, pois não?”

Acenei negativamente.

“Neste momento há centenas de milhares de pessoas que esperam que digas mais alguma coisa. As pessoas procuram um líder, entendes. Não se revêem na política, não conseguem levar a sério as religiões, não têm ideais. E apareces tu. Calculas o impacto?”

“Mas eu não quero nada disto…”

“Eu sei. Mas esse é mais um motivo para agires responsavelmente.”

Percebi que estava encurralado entre a espada e a parede. Aquilo de que ele falava era o eu ser um líder, se calhar até o tal profeta de que tinhamos falado nas nossas primeiras conversas. E já não interessava verdadeiramente o que eu achava, e sim o que os outros achavam. Se eu afirmasse ser alguma coisa, muitos se afastariam imediatamente, mas os que ficassem com a ideia de eu ser o que afirmara tornar-se-iam seguidores. Se eu negasse muitos mais se afastariam, mas os que acreditassem que eu era o que afirmava não ser seriam ainda mais abnegados em relação a mim.

Não havia fuga, nem volta a dar.

“Acho que não vou abrir a boca acerca disto.”

O Fernandes olhou para mim.

“Tens noção de que enquanto não disseres nada vais criar nas pessoas um sentimento dúbio?”

“Tenho, mas se disser desperto um sentimento radical. Eu não quero seguidores, não tenho nada para lhes dizer, nenhuma filosofia nem palavras de iluminação. Sabes, eu na realidade não posso ser um profeta. Não tenho essa vontade afrontar nada nem de dizer as verdades ocultas. Todos os profetas o fizeram, todos foram contra o sistema.”

“Tens razão. Mas todos foram produto do seu tempo. Repara, Moisés, Buda, Elias, Jesus, Maomé, se calhar não com tanta expressão, São Francisco de Assis, todos foram produto do seu tempo. Moisés foi um príncipe do Egipto, não era um gentio. Buda era herdeiro de um reino que partiu numa busca do conhecimento. São Francisco de Assis era um nobre boémio que de repente prega o desprendimento. Maomé era um mercador a quem foi revelada a verdade pelo anjo Gabriel. Cristo nasceu pobre no meio de uma Judeia ocupada. Todos eles sem excepção foram o produto do seu tempo. E tu podes não te rever neles, e acho que tens razão, não és nenhum profeta. Mas és inegavelmente fruto deste tempo, fruto de uma era em que impera a ciência, a lógica e a razão.”

Fiquei surpreendido com a visão dele. Não a esperava, não com esta profundidade. E no entanto já tinha visto que o Fernandes era um homem sensato, com os pés assentes na terra, fruto de uma mente académica, mas ainda assim também ele via, se calhar com uma clareza e desprendimento que eu não conseguia ter por estar completamente envolvido, que nenhuma hipótese era descartável. A minha situação era tão insólita que permitia qualquer leitura. Eu, não sabendo qual das leituras possíveis escolher, também não o devia afirmar nem negar.

“E no fundo, …” continuou ele “… já reparaste que toda a tua postura é contra o sistema e o status quo?”

Ele tinha razão. Era. E ele nem sabia o quanto…

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