quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Chuva - LIV

 

Escusado será dizer que assim que entrei pela porta o Fernandes veio direito a mim.

“Mas tu perdeste completamente o juízo?”

“Se calhar… Mas tinha de me defender.”

“Mas ao dizeres que a mensagem está codificada na chuva… Vai pôr toda a gente a olhar para o céu, à espera que chova.”

“É provável. Mas olha, aquilo que sei é que temos de tirar o sensor daqui. E temos de tirar os programas do computador, também.”

“E o que é que vais fazer agora?”

“Tudo tem uma solução. Há algum cibercafé por aqui?”

“Pá, conheço um na parede…”

“Levas-me lá?”

“Claro… mas porquê?”

“Já vais ver.”

Fui directo ao meu computador, gravei tudo o que me interessava para um DVD e saímos. Aluguei um PC por meia hora, arranjei espaço num servidor de internet e carreguei o conteúdo do DVD. Programei as coisas de modo a que o acesso pudesse ser feito até por telemóvel. Só tinha de aceder, mediante palavra passe, mandar os dados em bruto e o programa traduziria a mensagem.

Dei a palavra passe ao Fernandes.

“Mas para que é que eu quero isto?”

“Para o caso de acontecer alguma coisa estranha.”

“Mas não podias ter feito isto de casa?”

“Podia, mas assim ninguém vai saber onde está. O computador pode ficar em tua casa, bem como o sensor. Só lá vai estar parte. A outra parte, a mais importante, a chave, vai estar aqui. E só nos dois é que temos acesso.”

“Mas porquê aqui?”

“Porque vai estar à vista de toda a gente. É um sitio onde dificilmente vão procurar, até porque o acesso foi feito de um sitio publico.”

“Percebi. Mas já viste a responsabilidade que me estás a pôr em cima?”

“Tu vais saber lidar com ela.”

Voltámos a casa. O primeiro problema estava resolvido.

De manhã descobri que a mensagem era manchete de quase todos os jornais. Os noticiários televisivos falavam exaustivamente nela. Os jornalistas tentavam arrancar reacções aos líderes locais dos diferentes credos, mas as religiões remetiam-se ao silêncio, coisa que achei normal, a princípio. Mas depois o tempo foi passando e o silêncio manteve-se.

Entretanto, mudei o sensor de sítio. Havia um servidor velho no edifício onde trabalhava, mas que ainda estava ligado, embora tivesse já pouco uso. Foi a ele que liguei o sensor. Fiz um software de raiz para gravar os padrões e fazer o envio dos mesmos para uma conta de e-mail anónima. Programei-o de maneira a ser quase como um vírus, e a ficar dissimulado no sistema, sem estar à vista de ninguém.

Ao fim de uma semana, ao chegarmos a casa, descobrimos que esta tinha sido assaltada. Curiosamente, embora tudo estivesse revolvido, apenas faltava o material informático.

Fizemos a participação do roubo. Os agentes policiais que apareceram não quiseram levar a queixa muito a sério. Também não me preocupei. Apenas levaram um computador desactualizado e que neste momento não tinha nada lá dentro a não ser o sistema operativo.

Entretanto a opinião pública de muitos países começou a questionar o silêncio. Primeiro na Europa e nos Estados Unidos, mas aos poucos foi-se espalhando, contagiando Israel e os países islâmicos.

O Dalai Lama foi o primeiro líder religioso que se pronunciou, lembras-te? Francamente não o esperava. Afinal ele não tinha por que se rever naquela mensagem.

“A mensagem está de acordo com os preceitos budistas da universalidade da paz e do autoconhecimento.”

O facto de ele se disponibilizar, enquanto líder religioso isento da polémica, para servir de mediador para o começo de um diálogo foi algo de extraordinário.

Mas ainda assim o silêncio mantinha-se.

Foram as pessoas que começaram a forçar esse silêncio, a pedir explicações, a perguntar quais eram as visões de cada uma das fés visadas. Os debates sucederam-se, com ideias completamente validas misturadas com os mais completos disparates. Mas ainda assim evoluía a inquietação.

Depois veio o primeiro sinal. Um encontro de igrejas cristãs. Católicos, Ortodoxos e Luteranos juntaram-se numa cimeira com vista à um dialogo ecuménico. Não teve conclusões espectaculares, mas permitiu que algumas das divergências fossem esbatidas e eliminadas outras que já não faziam sentido à luz dos tempos actuais.

Mas aquilo que mais me tocou directamente foi quando o Ayatollah Ali Shirazi , de visita a Lisboa, pediu expressamente para falar comigo.

Cheguei a considerar se falar com ele traria alguma coisa de útil a toda a discussão que havia na altura. Afinal, continuava a querer resguardar-me. Mas depois decidi falar e encontrei um homem afável e preocupado.

Achei curioso o facto de se aproximar de mim com algum receio. Falamos imenso, durante uma tarde inteira.

Quando partiu disse-me algo que foi um prenúncio do que veio depois.

“Sabe Gabriel, apesar dos meus receios você é um homem com uma visão curiosa do mundo. Não é realmente nenhum profeta, portanto não entra em colisão com as palavras de Maomé. Esse sim foi o último profeta. Mas é um homem a quem foi dada uma compreensão diferente. Talvez seja um sinal de Deus…”

Foi ele o primeiro dentro do Islão a dizer que as Jihads não tinham justificação se implicassem tomar uma vida, uma vez que contrariavam directamente a lei de Deus. Que tirar uma vida era errado, por mais nobre que fosse o motivo. Que havia sempre outra via, e que a via da violência apenas podia levar a mais violência. Foi seguido por outros.

E já viste onde as coisas estão agora?

Existe de facto um diálogo alargado. Os mais distantes e cépticos são os Judeus, mas seria de esperar que o fossem, sitiados como estava o estado de Israel. Mas o reconhecimento pelos estados islâmicos foi o primeiro passo. A deposição de armas e o abandono unilateral da luta armada foi outro, e qualquer acção de Israel se tornou insustentável. E já viste onde se está agora, desde que Jerusalém foi convertida numa cidade estado, à semelhança do Vaticano, com um governo repartido pelas fés que consideram a cidade sagrada? Até possibilitou o reconhecimento da palestina enquanto pais, por parte de Israel. E finalmente vê-se um prenúncio de paz.

Chuva - LIII

Eram nove da noite quando o programa foi para o ar e a entrevista começou.

Viste a entrevista, na altura? Não? Ouviste falar, pelo menos, não é?

Para te situar melhor, digo-te que a encarei mesmo quase como uma conversa informal.

Ela começou por me apresentar e depois fez a primeira pergunta.

“O Gabriel tornou-se conhecido das pessoas, pelo menos de uma forma mais alargada quando deu a previsão do terramoto em Lisboa. No entanto já tinham existido mensagens prévias, não é verdade?”

“É, é verdade. Três mensagens, para ser exacto.”

“Uma delas é conhecida, que foi a que o levou à serra da Lousã onde descobriu o pequeno Artur num sítio onde era improvável que estivesse. A mensagem dizia-lhe concretamente o lugar?”

“Não, não trazia coordenadas de GPS. Mas as mensagens, até agora, contêm sempre uma indicação, apontam numa direcção. Foi o caso dessa. Dizia ‘segue o sol’, que foi o que eu fiz, tomando a direcção contrária às buscas.”

“E as outras?”

“Bem, a primeira falava numa mulher que estaria só e a chorar no meio de uma multidão e dava-me uma frase que eu lhe teria de dizer.”

“Podemos saber a frase?”

“Sim, claro. A frase era ‘A remissão dar-se-á’. Encontrei uma senhora numa paragem de autocarro a chorar, sozinha, e disse-lhe a frase.”

“Tão simples como isso.”

“Exacto.”

“E depois?”

“Depois recebi a segunda mensagem que dizia que a remissão se tinha dado e dar-se-ia novamente com uma indicação. Quarto vinte e dois. A tal senhora encontrou-me na mesma paragem de autocarro e veio agradecer-me. E pareceu-me lógico dar-lhe a nova mensagem.”

“Mas tinha alguma ideia do que falavam as mensagens?”

“Não, nenhuma. Só uns dias depois, quando fui abordado novamente pela senhora e por um médico do IPO, soube do que se tratava.”

“E do que tratavam essas duas mensagens?”

“De duas remissões completas de cancro.”

“Quer isso dizer que as mensagens anunciavam que duas pessoas ficariam curadas…”

“Sim, e ficaram.”

“Depois disso veio a mensagem do terramoto…”

“Sim, veio.”

“O que achou quando se viu na posse da mensagem?”

“Para ser franco, que ninguém me levaria a sério. Era normal que não levassem.”

“Mas previu o terramoto ao minuto…”

“Sim, mas já tanta gente tinha previsto terramotos em Lisboa… Aliás, é uma previsão fácil de fazer. Posso garantir desde já que vai haver mais.”

“Vai?”

“Claro que sim. Não sei é quando.”

“Mas isso é uma previsão que qualquer um faz…”

“Claro. Se eu disser que no ano que vem vai haver um terramoto em Lisboa não devo falhar.”

“Mas não ficou, ainda assim, desiludido com o facto de não o terem levado a sério?”

“Como lhe disse, não. Achei normal que não levassem. Aliás, disse isso mesmo na altura.”

“Sim, disse. E em relação a mensagem que falava da cura da SIDA?”

“Bem, essa mensagem apareceu numa altura em que as pessoas me levariam a sério. Afinal a previsão do terramoto tinha sido correcta, e como tal a mensagem teve mais força.”

“Mas não temeu represálias ao divulgá-la?”

“Temi. Mas não se pode viver mergulhado no medo, não é?”

“Mas, a ser verdade que a descoberta tinha sido feita e estava escondida, afrontou um lóbi poderoso, o da indústria farmacêutica.”

“Repare numa coisa, estar escondida não diz o porquê de o estar. O laboratório visado veio a público explicar as suas razões.”

“Ainda assim corre neste momento, nos Estados Unidos da América, uma investigação à indústria farmacêutica e aos laboratórios de pesquisa médica…”

“Sim, mas eu não dei qualquer indicação que levasse a isso.”

“É verdade. E a mensagem seguinte? Nunca foi publicamente divulgada, mas teve uma menção do presidente dos Estados Unidos, bem como um agradecimento numa conferência de imprensa.”

“Sim teve.”

“E podemos saber qual era a mensagem?”

“Sim, creio que não há qualquer problema em revelá-la agora. Era ‘Fé mal direccionada fará negras as águas límpidas. Amanhã. Ele fará o que é certo’.”

“Foi esta mensagem que levou a que os danos do ataque à plataforma petrolífera fossem contidos?”

“Sim. Creio que graças a ela os ataques puderam ser antecipados. De qualquer forma seria impossível, ou praticamente impossível pará-los. Existem mais de seis mil plataformas naquela área.”

“Já agora, a parte do ‘ele fará o que é certo’ referia-se, claro, ao presidente dos Estados Unidos, não?”

“Por acaso creio que não. Creio que se referia à pessoa a quem eu passei a informação.”

“Podemos saber quem é essa pessoa?”

“Não.”

Ela fez um pequeno sorriso. Esperava que eu fosse mais diplomático, talvez. Sabes, acho que não estava habituada a que as pessoas que entrevistava tivessem a distinta lata de sonegar informações sem uma justificação.

“Mas talvez fosse importante saber a identidade dessa pessoa a quem passou a informação.”

“Talvez, mas não tenciono mesmo falar nessa pessoa.”

“E quando é que recebeu a mensagem?”

“Bem, na véspera.”

“Então a informação teve de ser passada bastante depressa…”

“Sim.”

“Isso torna ainda mais relevante a identidade da pessoa…”

“Como já lhe disse, não vou falar nisso.”

“Muito bem. Gabriel, durante este tempo todo tem-se resguardado, e tem mantido o estilo de vida que tinha até à primeira mensagem, não é verdade?”

“Quase. Acho que a vida de todas as pessoas que vivem em Lisboa e arredores teve algumas adaptações. No entanto, na medida do possível, sim. Quanto ao resguardar-me, nunca gostei muito de ter ou de chamar as atenções para mim.”

“E no entanto, como calcula, há uma curiosidade em torno de si, coisa que seria expectável, não?”

“Claro. Compreendo essa curiosidade, mas não creio que alterar a minha vida fizesse alguma coisa. Sempre me senti confortável na vida que levo e sempre cumpri o meu trabalho com gosto e brio.”

“Mas de certeza que teve ofertas e houve tentativas de desvendar a sua vida particular.”

“Houve algumas.”

“Não se sentiu tentado a buscar o reconhecimento das pessoas?”

“Não, minimamente.”

“Mas, no entanto, obteve-o. Numa sondagem recente o seu nome aparece no topo da lista enquanto pessoa em que a população em geral confia, à frente de nomes consagrados da política Portuguesa…”

“Não me surpreende. Sabe, sempre fiz os possíveis por não elevar as expectativas das pessoas. A única coisa que faço é transmitir mensagens acerca de algo que vai acontecer, e até agora aquilo que aparece nas mensagens tem sido exacto. Todas as expectativas que haja em torno de mim são criadas pelas pessoas sem que eu dê azo a elas, logo nunca caí em incumprimento. As pessoas têm tendência para acreditar em mim.”

“Mas tem noção do peso que as suas palavras têm actualmente, a nível, não só nacional, mas internacional, senão mundial?”

“Tenho, mas há aí uma incorrecção. As palavras não são minhas. Nunca o foram.”

“Então são de quem?”

“Não sei.”

“Tem noção de que esta é uma pergunta que está nos espíritos de toda a gente…”

“Tenho, mas a verdade é que não sei mesmo. Isso não implica que não faça as minhas conjecturas acerca da proveniência, mas não passam disso mesmo, de conjecturas.”

“E não quer partilhar essas conjecturas connosco?”

“Não. Não quero lançar lenha para uma fogueira que não quero que arda. As conjecturas que qualquer um possa estar a fazer em casa, neste momento, são tão validas como as minhas.”

“Há quem o ache um profeta…”

“Há quem me ache um charlatão com sorte.”

“E o que é que o Gabriel se acha?”

“Seguramente nenhuma das duas hipóteses anteriores.”

“Outra coisa, Gabriel, até agora não houve uma entrevista consigo de grande porte em que falasse abertamente acerca de si. Porquê agora?”

“Sendo brutalmente honesto, porque há uma nova mensagem e eu quero que as pessoas me vejam pelo que sou para que não haja quaisquer dúvidas.”

“E essa nova mensagem…?”

“É complicada. É de cariz obviamente religioso. Mas não tem um destinatário nem um significado óbvios. Pode levar a uma miríade de interpretações, algumas delas bastante radicais. E é precisamente dos radicalismos que me quero afastar.”

“Confesso que quando li a mensagem, há pouco, me pareceu bastante ambígua. Que acha que ela quer dizer?”

“Lá está, não sei. Apenas tenho conjecturas que vou guardar para mim.”

“Acha que podemos então revelar a mensagem ao mundo?”

“Claro. ‘Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos Deuses. Não há senão um. Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela diferença. Um Deus único em cada um. Não matarás’. É esta a mensagem.”

“Não quer mesmo adiantar alguma das suas ideias acerca do que aqui está escrito?”

“É complicado. Esta mensagem não é claramente para mim, é para ser entendida por outros que não eu. Apenas quero dizer isto e deixar isto presente: eu apenas sou a pessoa que entrega as mensagens. Portanto, não matem o mensageiro.”

“Mas porque diz isso?”

“Até agora todas as mensagens são acerca de qualquer coisa que se vai passar. E seja o que for, passa-se. Isto é, o facto de sabermos que se vai passar não nos torna capazes de evitar as coisas. Apenas nos torna capazes de conter os danos, minimizá-los. Ora, esta mensagem, em toda a sua ambiguidade pode significar muitas coisas, algumas delas bem graves para as religiões focadas. Vista de um certo prisma poderia estar a anunciar o começo do final dos tempos.”

“E quais são as religiões focadas?”

“Bem, obviamente as religiões com base na lei de Moisés, no caso o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.”

“E porque é que a mensagem é tão perigosa?”

“Sabe Rita, todas elas são concordantes em relação aos últimos dias, mais pormenor, menos pormenor. Ora, no final dos tempos, segundo o livro do apocalipse, um líder religioso deveria emergir e unificar as religiões em adoração a um falso messias. A primeira parte da mensagem parece apontar desde logo para um apelo a essa unificação, portanto qualquer leitura apressada faria elevar os radicalismos.”

“Mas isso tornaria o Gabriel nesse tal líder religioso…”

“Coisa que obviamente não sou nem faço tenções de ser.”

“Mas e a unificação das religiões?”

“É algo de ilógico. As religiões reflectem também a maneira de pensar dos povos. Mesmo dentro dos cristãos, se vir bem, há diferentes visões do mundo. Os Ortodoxos têm uma visão do mundo diferente da dos Católicos. Os Católicos diferente da dos Luteranos. E se olhar bem para as zonas onde estas religiões são dominantes, é possível ver que a própria cultura e maneira de pensar destes povos é diferente. Ora, transpondo isto para religiões totalmente diferentes, com diferentes crenças, mais aprofundada é essa diferença, ao ponto de ser um choque civilizacional. Não há portanto qualquer lógica em tentar unificar tudo isto. Há sim lógica em aceitar as diferenças e estabelecer pontes de entendimento entre todas elas para esbater o choque de civilizações.”

“E acha isso possível?”

“Se houver vontade por parte dos líderes religiosos, acho.”

“E quais acha que seriam as consequências desse entendimento alargado?”

“Uma base para se poder estabelecer uma paz alargada.”

“É este o seu entendimento desta mensagem?”

“Não. Este é o meu entendimento do mundo. Quanto à mensagem, fica para a quem se dirige.”

“Mas admite que esta mensagem, até por ser dúbia, pode ser encarada como profética…”

“Sim, mas deixe-me deixar bem claro que não me considero um profeta, ou sequer uma pessoa religiosa. Não tenho quaisquer filiações nesse sentido.”

“Claro que acredito em si, mas não é um contra censo?”

“Não, de todo. Estas mensagens não me são reveladas ao espírito. Não ouço vozes. Não me aparecem em sonhos. Não tenho qualquer dom de vidência ou adivinhação.”

“Então, como calcula, a pergunta a seguir é: Como é que chegam a si as mensagens?”

Apeteceu-me responder-lhe que não o diria, mas naquele momento parei e não o fiz. Dizer-lhe, bem como às pessoas que nos viam, seria também uma das maneiras de despoletar a situação em relação a mim.

“Através da chuva.”

“Da chuva? Como assim.”

“Digamos que descobri as mensagens codificadas na chuva.”

Ela ficou estática a olhar para mim.

“Quer isso então dizer que se limita a descodificar uma mensagem.”

“Exacto.”

“Mas como?”

“Isso já não lhe vou dizer. Sabe, quem quiser dedicar-se e descobrir, que o faça. Eu já dei cinquenta por cento do trabalho ao dizer que lá está. Haja outros que percorram o caminho.”

“Mas se eu bem entendo descobriu uma chave que decifra um código na chuva.”

“Sim.”

“Qualquer outra pessoa com a chave teria acesso às mensagens?”

“Já tive alguma curiosidade em relação a isso, mas neste momento já não tenho. Não sei. Como para comprovar isso teria de revelar o método e a chave e não estou disposto a fazê-lo para já, fica por comprovar se aquilo que é valido para mim também o é para outras pessoas.”

“Gabriel, alguma mensagem final a quem nos vê?”

“Sim. Reflictam com calma e sabedoria esta mensagem. Espero sinceramente que ela seja o prenúncio de algo bom.”

A Rita fez os agradecimentos finais e saímos do ar. Ela cumprimentou-me e agradeceu a entrevista. Eu agradeci-lhe.

Veio um funcionário qualquer para me levar ao carro que me levaria a casa. Enquanto me dirigia para o carro peguei no telemóvel e liguei ao Fernandes.

“Estou, Gabriel? Tu é louco?”

“Não, mas se calhar não ando muito longe. Desliga já o meu computador da internet, mas já mesmo.”

“Pá, e como é que se faz isso?”

“Basta desligares o cabo de rede da parte de trás. É aquele que parece um cabo de telefone.”

“Há, já sei. Vou já fazer isso.”

“Ok. Já falamos, já estou a caminho.”


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Chuva - LII

Demorei algum tempo a conseguir recompor-me, a racionalizar tudo aquilo.

Sabes, era a ultima coisa que esperava ter de fazer a como já reparaste não lido bem com situações que não consigo prever, e esta era, claramente, uma delas.

Mas como diz o velho ditado, no amor e na guerra…

Mas por fim lá consegui deixar de lado os sentimentos e observar bem a lógica do que tinha acontecido. Sim, porque se tudo é determinismo, havia uma lógica para as coisas acontecerem. E a lógica dizia-me que o que me tinha acontecido acabava por ser bom, sobretudo porque eu tinha conseguido passar o teste. Algures, alguém não teria dúvidas em dizer que eu era apenas um homem. E na verdade, por mais que eu não gostasse de o ser, era-o.

Comecei então a tratar do resto do dia. O Fernandes não podia ir comigo, pelo que telefonei ao Rafael para que ele me providenciasse transporte. Depois fui cumprindo as minhas obrigações, mas a mensagem estava sempre presente, bem como as possíveis elações que dela se podiam tirar. Mas não cheguei a nenhuma conclusão firme.

Na ora marcada o vigilante avisou-me de que um senhor me procurava. Sai ao encontro dele e como eu esperava, tinha sido mandado pelo Rafael para me levar aos estúdios de televisão.

Cheguei aos estúdios por volta das seis da tarde. O Rafael já me esperava.

“Viva Gabriel, como vai?”

Encolhi os ombros.

“Gabriel, quer comer alguma coisa?”

“Mais daqui a pouco. Para já não tenho fome.”

“Ok. Quando quiser, diga. Entretanto não sou eu quem lhe vai fazer a entrevista, mas sim uma colega minha. Uma vez que chegou cedo quer-se encontrar com ela? Acertar detalhes e pormenores, talvez…”

“Sim, parece-me uma boa ideia.”

Ele levou-me para a redacção. Um monte de ecrãs estava permanentemente ligado para os canais de notícias internacionais e havia uma confusão de gente. A azáfama era tanta que ninguém parece ter notado a minha presença. Numa lateral da sala da redacção havia uns quantos gabinetes fechados. Ele levou-me para um deles. Entramos, ele correu as persianas, e ficamos ali em sossego.

A sala tinha apenas uma secretária com um monitor de computador e uma impressora, duas cadeiras e pouco mais. Era claramente uma sala de trabalho.

“Gabriel, vou deixá-lo aqui, mas não se preocupe, vou estar aqui fora. A minha colega não vai demorar, com certeza.”

“Muito bem. Obrigado Rafael.”

“Nós é que agradecemos. Esteja à vontade. Está uma cafeteira com café ali naquele canto, …” disse ele apontando “…pode servir-se à vontade.”

“Obrigado.”

O Rafael deixou-me só com os meus pensamentos, mas não por muito tempo. Ela entrou na sala, com um saia casaco muito formal, nada ousado, muito profissional. Já nos quarentas, era uma mulher que estava habituada a estar à frente das câmaras, por isso notava-se que cuidava da sua aparência, embora desse para perceber que não era alguém que cultivava a futilidade. Esse cuidado era mais imposto pelo que fazia do que por vontade própria. Tinha uns olhos sagazes e inteligentes, bem como um sorriso franco, aberto e cativante.

“Sr. Gabriel Guerra?”

“Sim.”

Estendeu a mão e cumprimentou-me.

“Sou eu quem vai entrevistá-lo.”

Não me disse o nome. Presumia que eu sabia. Estava errada.

“Muito bem. E a Senhora é…?”

Ela olhou para mim espantada.

“Rita Sousa.”

“Prazer em conhecê-la, Rita. Lamento não a reconhecer, mas há pelo menos vinte anos que não vejo televisão.”

“Não? Mesmo?”

“Bem, nos últimos tempos vi um bocadinho, mas só canais de notícias internacionais, por causa da história da plataforma petrolífera…”

“Percebo-o. De qualquer forma foi rude da minha parte presumir que sabia quem eu era. Peço desculpa.”

“Está desculpada.”

“Mas não gosta de acompanhar o que se passa no mundo?”

“Sinceramente? Gosto. Mas gosto de decidir o que quero saber. Os serviços noticiosos são demasiado filtrados. Normalmente viro-me para a internet para encontrar o que quero ou preciso. Também há muito lixo, mas a filtragem é minha, não me é servido numa bandeja.”

“Você é um homem curioso…” disse ela com um sorriso.

“Tenho ouvido muito isso nos últimos dias.”

“Acredito que sim. Diga-me, em primeiro lugar, durante a entrevista como quer que o trate?”

“Bem, não quero que me trate com um formalismo excessivo. Pode tratar-me só por Gabriel.”

“De acordo, desde que me trate também apenas por Rita.”

“Seja. Quero que haja proximidade e à vontade.”

“E há algum tópico que queira evitar?”

“Não. Pode perguntar-me o que quiser.”

“Mesmo?”

“Claro. Se eu não quiser responder vou-lho dizer directamente. Não tenho qualquer problema com isso.”

“Muito bem. Já agora, não só numa questão de curiosidade pessoal, mas também, posso saber qual é a mensagem que vai passar em directo? É que admito que estou curiosa, mas também é uma guia para a entrevista.”

“Pode e deve. A entrevista é por causa da mensagem, por isso as perguntas que me queira fazer acerca dela são absolutamente relevantes.”

Dei-lhe a mensagem. Ela leu atentamente.

“Que é que quer dizer?”

“Não sei.”

“Não sabe?”

“Não. Tenho algumas ideias, mas não certezas.”

Expliquei-lhe as minhas dúvidas, as minhas incertezas. Ela, à medida que íamos falando foi pesquisando o livro do apocalipse, foi anotando passagens, foi colocando ela própria duvidas…

…tenho de admitir que a conversa com ela foi mais esclarecedora do que a conversa com o Cardeal, se calhar por estarmos à vontade.

A conversa foi andando e o tempo passou num ápice. Eram umas sete e meia.

“Bem, acho que já tenho tudo o que preciso. Só quero saber mais uma coisa…”

“Diga.”

“Está interessado em jantar?”

Por acaso, até estava.


Chuva - LI

  

Abri a porta da minha sala de trabalho e dou com ela sentada na minha secretária candidamente.

“Quem é você?”

“Há quem me chame Tentação.”

Podia ser que sim, mas para mim era-o tanto como o pisa-papéis de vidro transparente que estava em cima da minha secretária.

“Mas tenho a certeza de que esse não é o seu nome.”

“Não, não é. Chame-me Babilónia.”

Olhei para ela. Babilónia?

“A prostituta escarlate?”

“Ora, não sou escarlate, pois não?”

Realmente não era.

“Como é que entrou aqui?”

“Fui muito simpática com o vigilante. Sabia que a simpatia pode levar-nos longe?”

Tinha de falar com o vigilante acerca de moças simpáticas. Mas suspeitava que uma mulher como ela não precisasse de ser muito simpática.

“E o que é que faz aqui?”

“Há pessoas que estão preocupadas consigo.”

“Há?”

“Claro que há. Sabe, há quem pense que o senhor é apenas um homem, como outro homem qualquer, com desejos, paixões… por outro lado há que tema que não o seja…”

“Um homem como outro qualquer?”

Ela olhou languidamente para mim, fez um sorriso.”

“Um homem!”

“Não percebi.”

Claro que tinha percebido. Eis o teste. Eis a razão de ela estar ali.

Ela testava a minha mascara, a que eu tinha refinado. Sentia a repulsa por ela e lembrava-me do que tinha sentido na outra e única vez que estive com uma mulher.

Chamavam-lhe tentação porque ela devia ser uma mulher realmente tentadora. Linda, sedutora, voluptuosa, a transpirar luxúria…

…só havia uma resposta lógica à razão de ela estar aqui. Seria eu a besta? Teria eu vindo anunciar o final dos tempos? Ou seria eu um homem igual a tantos outros, capaz de apreciar a sua beleza, passível de ser seduzido, incapaz de me impedir de mergulhar na volúpia e na luxúria…

Ela levantou-se, aproximou-se de mim, devagar, sem tirar os olhos dos meus.

“Tem medo de mim, Gabriel?”

Naquele momento tive, sabes. Tive de parar para pensar um pouco, aproveitar as pausas dela, aproveitar o facto de ela caminhar devagar para mim para ter esse tempo para pensar.

O que deveria eu fazer?

Fosse o que fosse, não poderia nunca revelar-me. Não podia deixá-la perceber que nada do que ela fazia me dizia fosse o que fosse. Era capaz de apreciar a sua beleza estética a um nível intelectual, claro que era. Mas não sentia desejo nem paixão. Não sentia qualquer apelo por ela. Fisiologicamente o meu corpo respondia, mas por dentro sentia-me árido.

Ela chegou bem perto de mim, o rosto dela em frente ao meu, os seus olhos ao nível dos meus, e fez a pergunta numa voz suave.

“És um homem, Gabriel?”

Tive de suprimir tudo o que sentia pela proximidade do seu corpo, tive de deixar a minha mascara aparecer, olhei-a, sorri. Agarrei a sua mão até mim, deixei-a sentir a minha reacção fisiológica.

“Que é que achas?”

Ela olhou fundo nos meus olhos tentando perceber o desejo. A minha mascara teve de o sentir. E teve de sentir a luxúria. E tive de a agarrar e beijar. Tive de deixar a sua língua entrar na minha boca, tive de procurar a sua.

Tive de passar as mãos pelo seu corpo e sentir a macieza da sua pele…

…tive de a envolver e apertar contra mim…

…tive de a deixar sentar-me na minha cadeira giratória enquanto se ajoelhava no chão, fazia deslizar o fecho das minhas calças, agarrou o meu sexo, massajou-o, envolveu com a sua boca…

…tive de vê-la despir-se à minha frente devagar e de uma forma que qualquer homem acharia mais que provocante…

…tive de vê-la deitar-se nua na minha secretária…

…tive de me colar ao corpo dela e sentir o sabor da sua pele, deslizar pelo seu corpo…

…tive de provar o seu sexo, sentir o sabor dela a invadir a minha língua, fazê-la sentir prazer enquanto se contorcia na minha secretária como uma gata com cio, levá-la e um orgasmo a seguir ao outro…

…tive de a penetrar, sentir o meu sexo no dela a deslizar, fazê-la sentir a maneira como o meu corpo reagia…

…tive de a fazer sentir-se verdadeiramente desejada, olhá-la nos olhos enquanto a penetrava e ouvia os seus suspiros e pequenos gritos de prazer…

…tive de sentir as hormonas a correr-me no sangue, aumentando as sensações no meu corpo, fazendo de mim um animal que não sou…

…e quando não aguentava mais, tive de ceder, vê-la a querer a proximidade e fingir-me com ela, deixar que o orgasmo chegasse, sentir o meu corpo a fugir ao meu controlo.

E naquele momento ela olhava-me e eu não consegui conter um esgar de ódio, repulsa, nojo…

…mas que acho que ela interpretou como prazer.

Fiquei ainda um pouco dentro dela, com o meu corpo exausto deitado sobre o seu. Ao fim de não muito tempo ela beijou-me. Eu levantei-me, sai de dentro dela e deixei-me cair na cadeira. Ela ficou mais algum tempo deitada.

Por fim levantou-se como se nada se tivesse passado, vestiu-se.

Eu fiz o mesmo.

Depois chegou ao pé de mim e beijou-me.

“Adeus, meu querido.”

Virou-me as costas e dirigiu-se para a porta. Abriu-a e voltou-se para mim.

“Sabes, se alguém me perguntasse eu teria de dizer que és verdadeiramente um homem.”

Depois saiu.

Já eu, se alguém me perguntasse, não saberia a resposta.

Finalmente só, deixei extravasar toda a fúria, a raiva, a frustração. Tinha de me acalmar.

Ela estivera muito perto de ver para além da minha mascara…

…mas não viu.


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Chuva - L

Saí da Sé com um sentimento de inquietude. Se era verdade que a conversa com o Cardeal não tinha adiantado muito no que diz respeito aos propósitos da mensagem, conseguia agora ver com um pouco mais de clareza algumas das implicações de a revelar.

O fanatismo religioso é algo a levar em conta e as profecias do livro do apocalipse fariam todos apontarem baterias para mim.

Teria de haver um contexto concreto na altura da revelação que me permitisse explicar que não se tratavam de profecias.

De facto, disse ao Cardeal que a mensagem vinha na chuva precisamente por causa disso. Não me era revelada ao espírito, não ouvia vozes, não me aparecia em sonhos. Era a leitura de algo que se encontrava naturalmente na natureza.

Depois de muito meditar cheguei a conclusão de que eu não era um escolhido, apenas era quem ouviu naquela altura. Estava atento. Eu não era especial. Podia ter sido outro qualquer. Mas a verdade é que não foi.

Mas ao realizar isto, percebi que em parte as minhas perguntas eram vãs. O “porquê eu” não se aplicava. Era eu porque sim. Era eu porque o tal determinismo dizia desde a criação que seria eu, porque naquele ponto do tempo todos os factores se tinham conjugado para que fosse eu, e nesse aspecto não poderia ter sido outro qualquer.

Claro que isto, por mais lógico que fosse encerrava uma contradição dentro da própria lógica. Eu era produto de um paradoxo. Isso afligia-me porque havia factores que eu não conhecia e que contribuiriam para que o paradoxo deixasse de o ser. Os paradoxos, por mais lógicos que sejam, são ilógicos, a não ser que se conheça a chave que faz com que deixem de o ser. Eu jamais poderia conhecer a chave. Para a conhecer eu próprio teria de ser a totalidade de Deus.

Isto, claro, reduzia-me a quem eu realmente sou, uma entidade com um entendimento limitado do universo, com as minhas certezas e as minhas dúvidas. Mas de uma coisa tive a certeza. Adiar a revelação da mensagem não traria benefício nenhum.

Como podes calcular, comecei de imediato a pensar como passar a mensagem. Sabia que se a mensagem fosse passada sem mais nem menos as religiões focadas tratariam de me tornar “a besta da terra”, ou um equivalente. Claro que eu não queria levar ninguém a adorar fosse o que fosse nem tinha como objectivo entronizar alguém, antes pelo contrário. Mas o perigo de ser confundido era despertar os fanatismos religiosos e de a mensagem ter consequências catastróficas.

Agarrei no telemóvel e liguei ao Rafael.

“Estou?”

“Rafael, fala o Gabriel.”

“Olá, Gabriel. Ia para lhe perguntar se está tudo bem, mas para me estar a ligar suspeito que se passe algo.”

“E passa. Rafael, tenho uma nova mensagem.”

“É algo de grave?” a preocupação na voz era evidente. Percebi que podia não ser um profeta mas tinha-me transformado num profeta da desgraça.

“Pode vir a ser. Podemos falar pessoalmente?”

“Claro. Está onde?”

“Estou aqui em Lisboa, na baixa, perto da sé.”

“Gabriel, posso ir buscá-lo, mas aí é complicado por causa do transito.”

“Eu sei. Mas podemos encontrar-nos na Alameda, junto à fonte luminosa dentro de uns vinte cinco minutos, meia hora…”

“Ai está óptimo. Espera-me do lado que o trânsito sobe, junto à avenida?”

“Pode ser.”

“Então, nesse caso, até já.”

Apressei o passo e tentei passar o mais incógnito possível, evitando as avenidas, mais movimentadas, e avançando pelas ruas paralelas. Consegui chegar com relativa rapidez ao meu destino. Aguardei um pouco. O Rafael não demorou muito.

Entrei para dentro do carro e dava para ver na expressão dele a curiosidade. Mas ele conteve-se. Cumprimentámo-nos e ele arrancou logo em seguida.

“Rafael, se não for grande o incomodo, gostava que me levasse a casa do Fernandes, em Sassoeiros. Podemos ir falando pelo caminho.”

“Não é um incomodo. Vamos então.”

Aguardei um pouco até sairmos da cidade, para não o distrair do trânsito. Só depois comecei a falar com ele.

“Rafael, vou dar-lhe a mensagem, mas quero, sob compromisso de honra, que não a divulgue já. Vou-lha dar porque por esta altura Roma já a conhece, e se sei que o Cardeal é um homem que não tomaria nenhuma acção, não posso afirmar o mesmo em relação ao resto da Igreja.”

“De acordo. Tem a minha palavra.”

Dei-lhe a folha que tinha dado antes ao Cardeal. Ele, como ia a conduzir, limitou-se a guardar a folha no bolso do casaco.

“Quero que tenha a mensagem para o caso de algo acontecer.”

“Pelos vistos tem algum receio…”

“Sabe, a igreja, por maiores que sejam os seus motivos religiosos, é um estado. Mais, é o ultimo fôlego do império romano. O império não caiu, ganhou uma forma diferente.”

“Acha?”

“Claro. Ao longo da história reis e imperadores prestaram vassalagem ao Papa. Era o Papa que definia quem tinha o direito divino de reinar. O clero era um estado dentro dos estados. Constantino foi um homem pragmático e a criação da igreja de Roma fez sobreviver o império até aos dias de hoje.”

“Mas a igreja já não tem hoje o peso que já teve…”

“Sim. O facto de os estados se afirmarem laicos foi um golpe para a igreja, mas a sua influência ainda se faz sentir.”

“É capaz de ter alguma razão. Mas o que é que isso tem a ver com a mensagem?”

“A mensagem tem o potencial de incomodar os poderes religiosos, não só da igreja católica, mas do islão e do judaísmo também. Mas neste momento ainda só é conhecida por Roma.”

“Mas porque?”

“Sabe, a mensagem é muito dúbia e vaga nos seus propósitos. Ao contrário das outras que se me tornavam obvias, esta não. E creio que não é para ser óbvia. Quer isto dizer que o teor da mensagem depende das múltiplas interpretações que se possa fazer. Pode ser um apelo ao entendimento entre as várias correntes que derivam da lei de Moisés, pode falar da unificação das religiões numa só ou até anunciar o fim da religião.”

“Tudo isso?”

“Sim. Mas também me pode pôr numa posição ingrata. Conhece o livro do Apocalipse?”

“Quase nada.”

“Nesse livro é anunciado um falso profeta que unificará as religiões em adoração a um falso Deus. Ora, quem interprete a mensagem como uma unificação das religiões ver-me-á como esse falso profeta, um emissário de Lúcifer, e verá o final dos dias na mensagem. E nesse caso, para qualquer fanático eu seria um alvo a abater. Dai as minhas reservas.”

“Compreendo.” Disse ele com uma expressão grave.

“Sabe, fui falar com o Cardeal Patriarca de Lisboa por dois motivos. Porque ele já tinha manifestado a vontade de falar comigo e porque procurava uma iluminação em relação a esta mensagem.”

“E conseguiu a iluminação?”

“Não. Mas só depois da conversa, depois de sair, me apareceu esta inquietação.”

“E o que se propõe fazer?”

“Bem, gostaria, se achar possível, revelar esta mensagem numa entrevista televisiva. Assim poderei explicar que não sou profeta nenhum, nem sou um iluminado. Que sou um simples mensageiro. Tentar retirar a possibilidade apocalíptica da equação. Que me diz?”

“A única coisa que digo é: Quando é que quer dar a entrevista?”

“Quando é que acha possível?”

Ele parou o carro à porta da casa do Fernandes.

“Por mim, creio que quanto mais cedo melhor.”

Tirou finalmente o papel do bolso e leu-o. Teve de o reler umas quantas vezes. Depois olhou para mim.

“Percebo o que quer dizer. Isto pode querer dizer tudo.”

“Sim. E pode não querer dizer nada também.”

Pegou no telemóvel e fez uma chamada. Anunciou a minha vontade de dar uma entrevista que teria uma revelação em directo.

“Como eu pensei.” Disse quando desligou “É quando quiser. Só tem de nos dizer o dia e a hora.”

“E que tal amanhã, a seguir ao noticiário?”

Nova chamada. Detalhes combinados.

“Quer que o venhamos buscar?”

“Ainda não sei. Vou falar com o Fernandes. Pode ser que ele queira ir também. Se ele for não vou precisar de transporte. Mas amanhã ligo-lhe e acertamos esses pormenores.”

“Fico à espera do telefonema.”

Despedimo-nos, sai do carro e entrei em casa.


Chuva - IL

 

Uns dias depois houve uma noite em que cai num sono profundo, coisa que era extremamente raro acontecer. Nem dei pela chuva que caiu durante a noite.

Acordei quando o telemóvel que tinha na mesa-de-cabeceira ao lado da cama deu o sinal de mensagem recebida. Olhei para o visor.

 

Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos Deuses. Não há senão um. Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela diferença. Um Deus único em cada um. Não matarás.

 

Olhei para a mensagem. Tentei fazer sentido dela, mas a verdade é que havia demasiadas implicações nas várias frases. A mensagem era indubitavelmente de índole religiosa, mas escapava-me o propósito.

Na dúvida, levantei-me e fui ao computador. Verifiquei a mensagem. Era exacta.

Passei o resto da noite a matutar nela, mas sem conseguir chegar fosse a que conclusão fosse. Uma parte em especial baralhava-me. “Um Deus único em cada um”. Que queria isto dizer?

De manhã mostrei a mensagem ao Fernandes. Podia ser que ele conseguisse ver algo que eu não tinha visto ainda. A reacção dele não foi muito diferente da minha.

“O que é que isto quer dizer, pá?” perguntou.

“Não faço ideia. Quer dizer, faço demasiadas ideias e nenhuma delas é clara. Portanto acabo por não fazer uma ideia concreta.”

“Pá, também ainda é de manhã, por isso pode ser que um café ajude a aclarar as ideias…”

“Sim, pode ser que sim.”

Mas não aclarou, e durante o dia não tive qualquer pista que me pudesse dar um significado. Apenas me veio ao espírito o facto de andar a adiar um encontro com o Cardeal Patriarca de Lisboa há bastante tempo. Era obvio que a mensagem teria de ser revelada, mas tinha algum receio de o fazer sem ter uma ideia clara do que queria dizer.

Mas lembrei-me, e se não for suposto eu ter uma ideia clara e simplesmente passa-la? Era algo que não me deixava muito confortável, mas a verdade é que nada do que me acontecia à meses me deixava confortável. Eu tinha que fazer o que era suposto, e mais nada.

Ainda assim, antes de revelar a mensagem ao mundo, achei por bem falar com o cardeal. Podia ser que a visão dele me desse alguma pista e algum conforto.

Uma vez decidido, assim foi feito. Telefonei. O cardeal quis receber-me nessa mesma tarde, ainda que tivesse já compromissos prévios. Eu tomei isso como um sinal.

Chegar à Sé de Lisboa, por estes dias, era um autêntico pesadelo. Tinha resistido e este terramoto, como ao de 1755, mas a verdade e que estava rodeada de ruas fechadas ao trânsito. Decidi ir a pé, quando sai do trabalho. Podes acreditar que não foi uma boa decisão.

Pelo caminho as pessoas vinham ter comigo. Se me tratavam com deferência, a maior parte, a verdade é que algumas tratavam-me como se eu fosse uma estrela do mundo do espectáculo. Vinham ter comigo, falavam, tocavam, riam…

…não foi mesmo uma boa decisão.

Mas lá consegui chegar à Sé, um pouco depois do que esperava. Entrei e fiquei parado a observar o altar, de pé, no centro da nave. As poucas pessoas que lá estavam espalhadas ficaram a olhar para mim com um misto de sentimentos, que era óbvio. O facto de eu estar ali de pé, sem mostrar qualquer deferência perante o altar, para aquelas pessoas devia ser quase uma heresia. Por outro lado, reconheciam-me. Sei que para elas eu significava algo que vinha daquilo que elas adoravam.

Mas tenho que te dizer que gostei do recolhimento que ali tive. Ninguém veio ter comigo, sem dúvida em respeito ao sítio onde se encontravam. Foi uma mudança agradável, depois do que se tinha passado no caminho.

Ao fim de algum tempo um homem idoso entrou pela lateral do altar e dirigiu-se ao mesmo com qualquer coisa na mão. Olhou e viu-me. Veio ter comigo.

“Boa tarde. O Sr. deseja alguma coisa?”

“Estou aqui para falar com o Sr. Cardeal.”

“Com o Sr. Cardeal? E ele espera-o?”

“Sim, ele está à minha espera.”

“E o Sr. é…?”

“Gabriel Guerra.”

O homem olhou para mim com espanto e reconhecimento.

“Peço desculpa, não o reconheci, se bem que a sua cara não me parecia estranha. Mas sabe, a idade não perdoa e a vista já não é o que era…”

“Não peça desculpa. Não tem qualquer obrigação de me reconhecer.”

“Venha comigo, por favor. Eu levo-o”

“Com certeza.”

Segui o homem. Ao chegarmos ao nosso destino ele fez questão de me anunciar. Fez-me entrar em seguida para uma sala ampla onde o Cardeal estava sentado por detrás de uma secretária de madeira maciça, antiga. Aliás, toda a sala estava pesada com mobiliário antigo e tecidos vermelho vivo e dourado. Tudo muito tradicional e sem grande espaço para a inovação. Não seria de esperar outra coisa.

O Cardeal levantou-se para me cumprimentar calorosamente, com um sorriso aberto.

“Sr. Gabriel, é um gosto conhecê-lo finalmente.” Disse.

Eu limitei-me a cumprimentá-lo. Ele continuou.

“Então o que o trás por cá?”

“Aparentemente a vossa vontade expressa de falar comigo.”

“Aparentemente?”

Esta pequena observação disse muita coisa. Claro que era apenas aparentemente. Eu tinha os meus motivos para estar ali. Graças à minha frase ele sabia-o neste momento. Era um homem inteligente e perspicaz. Tinha que ter algum cuidado com o que dizia. Ele estava atento.

“Sim, o convite para uma conversa consigo partiu do seu bispo auxiliar. Mas uma vez que não foi formulada por si, directamente, resta-me a dúvida.”

“Não há dúvida de espécie alguma. É verdade que queria falar consigo.”

“Posso então saber acerca do quê?”

“Claro, mas antes disso, deixe-me cumprir o meu papel de anfitrião. Deseja tomar alguma coisa? Um café, um chá?”

“Aceito um chá verde, se for possível.”

Ele virou-se para a secretária, carregou num botão de um intercomunicador e pediu para nos trazerem o chá. Depois voltou-se novamente para mim.

“Sentamo-nos?” indicando dois pequenos sofás que estavam de frente um para o outro perto da janela. Sentámo-nos.

Já depois de sentados ele começou.

“Bem, Sr. Gabriel, o motivo pelo qual queria falar consigo prende-se com alguma preocupação que há da parte da Igreja em relação a si.”

“A Igreja está preocupada comigo?”

“Claro. Perceba-nos, por favor, e não leve a mal a nossa intenção. Mas de facto, quando o senhor apareceu com a previsão do terramoto nós perguntámo-nos de imediato quem o senhor seria. Sabe, em alturas de tribulação as pessoas têm tendência a olhar para os céus em busca de sinais. E o senhor apareceu e para as pessoas foi um sinal. Mas o facto é que foi e é um sinal que se manteve dúbio. É certo que nunca afirmou a proveniência das suas profecias…”

“…revelações!”

“…seja, mas a verdade é que para alguém temente a Deus elas só podem ter uma proveniência.”

“Sim. Creio que sim.”

“E no entanto, na conversa que teve com D Martinho afirmou não professar qualquer religião.”

“Verdade. Não professo qualquer religião.”

“Isso deve deixá-lo confuso em relação à proveniência das revelações, não?”

“Não. Não deixa. Não assumi automaticamente que viessem de Deus. Há muitas hipóteses sobre a proveniência. Além disso o facto de eu não professar nenhuma religião não quer dizer que eu não acredite em Deus.”

“Considera-se um crente?”

“Sim, mas aquilo que eu penso que é Deus apenas encaixa um pouco nas vossas concepções. Creio ter uma visão diferente da natureza da divindade, de modo que as opções de cada religião me parecem limitadas, tendo portanto apenas parcialmente razão.”

“E qual é para si a natureza da divindade?” Pensei um pouco antes de lhe responder. Ele acrescentou “Não acredita que Deus saberá distinguir os justos e recompensá-los?”

“Acredito que não há distinções a fazer. Acredito que tudo é, foi e sempre será. O próprio universo é divino e o determinismo impele-nos para a divindade.”

“Acredita no destino?”

“Acredito que a cadeia de causas e efeitos que começou no princípio do universo é de tal forma previsível que é inevitável estarmos aqui, e o facto de estarmos é prova da causa primordial, bem como todas as acções que nós tomamos e tomaremos no futuro o são, porque são todas consequências dessa causa primordial.”

“E qual seria a causa primordial?”

“Deus, claro.”

“Mas aquilo que me disse quase reduz Deus a uma fórmula matemática…”

“Não, eleva-o a fórmula resolvente do universo.”

“Mas isso descaracteriza Deus…”

“Não, transforma-o em todas as possibilidades que existem no universo a cada momento do tempo, unindo-as. O uno e indivisível.”

“Isso implicaria que Deus é tudo.”

“Claro, incluindo nós próprios. Nós somos Deus e a nossa vontade é também vontade de Deus, junto com todas as outras vontades, criando um pensamento único que é o próprio universo.”

“Compreende que essa é uma ideia extremamente perigosa…”

“Sim, mas eu não a partilho, porque acho que tive o meu caminho para chegar a esta conclusão, e cada um terá de fazer o seu caminho e chegar à sua própria conclusão. Falo agora disto consigo porque considero relevante.”

“Compreende que eu nunca poderia sancionar uma visão assim de Deus.”

“Não espero que o faça.”

“Não se sente então confuso em relação à origem das… revelações?”

“Não. Sinto-me curioso. Sobretudo devido à forma como elas chegam.”

“E posso saber de que maneira chegam elas?”

Respondi-lhe com um pequeno sorriso. Ele sorriu também e percebeu a resposta.

O idoso que me tinha levado à sala interrompeu-nos trazendo um tabuleiro com chá e algumas bolachas sortidas. Serviu-nos e depois retirou-se.

“Sabe, Sr. Gabriel, de alguma forma esta pequena conversa tranquilizou-me.”

“Posso saber o porquê?”

“Porque apesar de não ser um crente, é um homem de fé.”

Olhei para ele. Fé?

“Fé no sentido de acreditar em algo maior, seja lá o que for.” Continuou ele quando percebeu a minha expressão.

Este homem era realmente perspicaz e não ocupava o cargo por um mero acaso.

“Sim, nesse sentido sou um homem de fé.”

Demos ambos um gole de chá. Ele pousou a chávena e olhou directamente para mim.

“Há pouco a sua expressão não me escapou.”

“Que expressão?”

“O ‘aparentemente’ que usou no começo da nossa conversa. Há mais algum motivo para a nossa conversa?”

Era uma altura tão boa como qualquer outra.

“Há.”

Passei-lhe um papel com a mensagem escrita.

Ele olhou, ficou parado longamente a olhar para as palavras, a tentar fazer sentido delas.

“Presumo que esta seja uma nova revelação…”

“É.”

“E que quer isto dizer?”

“Não sei. Todas as outras mensagem me davam alguma pista, havia algo que me apontava numa direcção, mas não esta.”

“Mas a mensagem pode querer dizer tantas coisas, algumas delas até bastante contraditórias…”

“Sim, muitas. Mas é de índole claramente religiosa. Faz inclusivamente referência a vários mandamentos.”

“Quais foram os seus pensamentos acerca desta mensagem?”

“A primeira parte parecia, logo à partida apelar a uma união de religiões. ‘Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos Deuses. Não há senão um’. Aliás, é uma coisa que até parece algo lógica tendo em conta que a lei de Deus é ponto comum para o Judaísmo, Islamismo e cristianismo. Se há apenas um Deus e uma lei, devia haver apenas uma nação.”

“Isso, para todas as religiões, é uma ideia extremamente perigosa.”

“Sim, e eu sei porque diz isso. Afinal o livro do Apocalipse refere que no final dos tempos uma das bestas será um falso profeta que unificará todas as religiões. Uma unificação das religiões seria um sinal certo do final dos tempos.”

“Exacto.”

“Mas depois vem ‘Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela diferença’ o que, acredito, significa encetar um diálogo efectivo de forma a achar os pontos de contacto de forma a conseguir coexistir sem atritos e numa base de respeito.

“Mas a primeira frase pode ainda continuar a preconizar a união das religiões.”

“Não creio que o sentido seja esse. Creio que seja mais no sentido de construir uma aliança que permita que não haja conflitos religiosos.”

“Sim, é um ponto de vista…”

“Mas a seguir aparece ‘Um Deus único em cada um’ o que pode ser muita coisa. Passou-me pela cabeça desde o desenvolver da consciência pessoal de cada um, o que poderia e deveria ser o objectivo das religiões, por oposição e uma entrega servil sem questionar nada a preceitos pré-existentes, até ao apontar para uma dissolução pura e simples da religião. A quantidade de interpretações no meio destes dois pontos de vista é tão grande, que não me atrevo a oferecer uma delas como explicação.”

“E porque acha que está lá o sexto mandamento?”

“Olhando por base num entendimento entre religiões, o sexto mandamento tem relevância. Afinal mata-se todos os dias em nome da religião. A própria jihad é uma violação do sexto mandamento. ‘Não matarás’ é diferente de ‘Não matarás a não ser em meu nome’. Não concorda?”

“Mas a igreja católica repudia o acto de matar…”

“Com todo o respeito deixe que lhe diga que não creio que esta mensagem seja para si ou para a sua igreja. É para o mundo e será para o mundo. Além disso, é capaz de me afirmar que não há pessoas a matar em nome do cristianismo hoje em dia?”

Ele ficou em silêncio a olhar para mim. Claro que não o poderia afirmar. Mentiria se o fizesse. Acabou por falar depois de reflectir um pouco.

“Tenciona revelar esta mensagem?”

“Sim. Mas estava inquieto acerca do seu teor, dai o querer partilhá-la consigo. Podia ser que conseguisse distinguir o significado.”

“E conseguiu?”

“Não. Mas talvez não seja para eu entender. E eu sou apenas o mensageiro e nada mais.”

“Posso pedir-lhe que adie um pouco a revelação? Que medite mais um pouco?”

“Pode. Tencionava fazê-lo na mesma. Tenho que pesar bem as consequências.”

“Agradeço.”

Acabamos de beber o chá. Sem mais motivo para ali estar levantei-me.

“Se me dá licença, vou indo.”

Ele levantou-se de imediato e cumprimentou-me.

“Foi um prazer falar consigo.”

Acompanhou-me à porta, abriu-a e eu comecei a sair. Parei na soleira, mesmo à saída, virei-me para ele.

“As mensagens vêm na chuva.”

E segui o meu caminho.