quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Lilith - XVI - Toque de Deusa

Uma festa suave no rosto, quase sem tocar. Entreabro um olho a custo.

Nove e vinte da manhã, diz o relógio na mesa-de-cabeceira. Ao lado, ela.

– Bom dia, dorminhoco. Vamos dar um passeio?

– Mas tu não dormes?

– Nem sempre. Só quando me apetece.

– E não te apetece agora? Mais dez minutos ou assim?

– Não, apetece-me ir passear. Deixa de ser rezingão e acorda. O pequeno-almoço está feito. Eu vou-me vestir enquanto tu te vestes, comemos e saímos a seguir.

Sendo perfeitamente sincero não me apetecia nem um bocadinho, por mais pequeno que o bocadinho fosse. Mas lá me levantei, fui à casa de banho, vesti qualquer coisa meio ao calhas e fui para a cozinha.

– Vai comendo que eu já aí vou ter… – ouvi-a a gritar do quarto.

Fui comendo. Não me apetecia responder. Aliás, normalmente até tomar o café nem me apetece estar acordado, quanto mais falar. Liguei a televisão e fiquei a ver os noticiários da manhã, com o cérebro semi-adormecido a passar pelas catástrofes do costume como se estivesse a ver um filme série B, daqueles bem reles. Ocorreu-me que na maior parte das vezes a realidade não passa disso mesmo. Um filme reles, e quem escreveu o argumento não tinha a mínima ideia de como fazer uma história como deve ser. Teriam de ser os historiadores a posteriori a tentar fazer com que o argumento fosse interessante, quais montadores numa sala escura qualquer procurar sentido numa carradas de bobines de filme sem jeito nenhum.

O que diria a história no futuro acerca desta época? Haveria heróis? E seriam eles os que glorificamos agora, ou a justiça seria reposta dando o papel de destaque a figuras de quem nunca ouvimos falar, como os médicos que andam em África no meio de guerras raciais e de etnias a tentar desesperadamente salvar as vidas que o próprio povo de lá não tem a mínima hesitação em ceifar? Ou iríamos idolatrar idiotas completos que tiveram na sua mão fazer tudo e não fizeram absolutamente nada?

O mal de ainda não ter tomado café era este. Ficava um bocado ácido em relação ao mundo que me rodeava, mas sabia perfeitamente que a cafeína ia tratar de repor as minhas ideias na ordem normal. Um golinho de café quente e a ordem foi reposta.

Ela entrou na cozinha quando eu estava já a acabar o café.

– Vais com essa roupa?

– Vou…

– Não, não vais, vais vestir qualquer coisa mais decente.

– Mas nós casamo-nos e eu não dei por isso?

Ela olhou para mim e levantou o sobrolho.

– Olha lá, achas que eu quero andar na rua com um gajo que quer rivalizar com os arrumadores, ou é essa a tua estratégia para arranjarmos dinheiro para o almoço?

Desta vez fui eu quem franziu o sobrolho. Respirei fundo, levantei-me preguiçosamente e dirigi-me ao quarto.

– Não queres escolher tu a minha roupa, não? – Perguntei-lhe.

– Não, tu já és grandinho. Mas despacha-te, senão a manhã já era.

Lá escolhi outra coisa mais apresentável, vesti-me num ápice, e quando me dei conta estávamos já no carro.

– E vamos para onde? Já agora, presumo que tenhas um destino qualquer…

– Vamos para Cascais. Mas olha, vamos em passeio, vai indo pela marginal, tá bem?

– Mas claro – disse eu com um tom algo irónico. – Os teus desejos são ordens.

Seguimos pela marginal, comigo em silêncio e ela apenas a observar o mar e a cantarolar as músicas que iam passando na rádio. Fizemos a viagem de forma lenta, sem pressas. À entrada de Cascais ela disse-me:

– Continua em direcção ao Guincho, se não te importas…

Eu continuei. Deixámos Cascais para trás, fomos seguindo pela estrada sempre a ver os rochedos a serem fustigados com violência por um mar forte, naquilo que era um espectáculo sempre belo. Gostava de ver o mar assim, a mostrar a sua força, a diminuir-nos perante a sua majestade e imensidão.

Chegámos à zona da praia.

– Queres que estacione?

– Não, segue. Continua como se fosses para Sintra.

Assim que fizemos uma curva, ela chamou-me à atenção.

– Vês aquela entrada? Segue por ali.

Virei para o caminho que me indicou. Embora a entrada fosse em alcatrão depressa a estrada se tornou um pesadelo de terra batida cravada de pedras quase digna de um rali Dakar e onde era praticamente impossível dois carros passarem um pelo outro.

– Sabes escolher bem os caminhos.

– Sem esforço não há recompensa, meu querido – disse ela, rindo‑se com vontade em seguida.

Ao fim daquilo que me pareceu uma eternidade com o carro em primeira velocidade ao ralenti, a estrada lá abriu num espaço amplo sobre uma falésia onde o mundo parecia acabar abruptamente. Onde a estrada acabava e se abria esse espaço enorme estava uma casa, aparentemente um restaurante, mas fechado. Mesmo à beira da falésia havia um muro de pedra com um aspecto antigo e um casebre de pedra também, aparentemente abandonado.

Parei o carro perto do casebre. A zona estava completamente deserta. Saímos e veio o vento típico daquela zona a enregelar-me a ponta do nariz. Fiquei a contemplar a imensidão e a ouvir o mar a esmagar-se nas rochas ao fundo da falésia. Para a esquerda tinha toda a vista através do Guincho até à baía de cascais. Atrás de mim começava a serra de Sintra e à minha direita, ali tão perto, distinguia o cabo da Roca.

À minha frente nada mais do que mar.

– Anda… – disse-me ela dando-me a mão para que eu a acompanhasse.

As roupas dela, leves como sempre, esvoaçavam livres ao sabor do vento algo intenso que se sentia, mas como sempre ela não parecia importar-se com isso, nem estava incomodada.

Levou-me pela mão através de um carreiro que descia em direcção a um pequeníssimo vale ao longo das paredes inclinadas do mesmo. O vento deixou de nos fustigar, protegidos como estávamos.

De repente, para alguma surpresa minha, aparece uma baía onde o mar não está tão violento porque as próprias rochas à entrada da mesma quebram a sua impetuosidade, e onde havia uma pequena praia de areia fina salpicada de rochas. Um sítio absolutamente idílico e protegido do vento que, Verão ou Inverno, havia naquela zona. O sol estava alto, pelo que até a temperatura ali estava amena.

Ela tirou as roupas por completo, ficando nua ao meu lado, como já a tinha visto fazer antes à beira-mar. Depois olhou para mim, e com um sorriso matreiro e o sobrolho levantado aproximou-se, agarrando-me pelo cinto das calças.

Uma a uma foi removendo a minha roupa, até me deixar nu à sua frente.

– Sentes frio? – Perguntou.

– Não, a temperatura aqui até está amena, mesmo.

– Então anda.

Agarrou-me novamente pela mão e levou-me até à água. A ideia de entrar na água em Novembro estava-me a fazer sofrer por antecipação, mas ao chegar lá descobri que afinal não havia um choque térmico assim tão grande. Pelo contrário, a água parecia até mais quente que a temperatura exterior.

Levou-me pela água adentro até esta nos dar um pouco acima da cintura.

– Mergulha – instigou-me. – Experimenta.

Mergulhei.

A água não estava tão forte que puxasse, mas também não estava calma e obrigava-me a dar alguma luta, mas ao mesmo tempo sabia-me bem a envolvência. E de repente percebi o porquê. Senti‑me vivo, livre, ali ao lado dela, longe dos olhares do mundo, da moral e dos bons costumes, apenas eu e ela, ali, de mãos dadas.

Voltei à tona com uma sensação de liberdade para encontrar os olhos dela com uma expressão de felicidade enorme.

– Queres sentir? – Perguntou-me. Não sabia o quê, nem porquê, mas limitei-me a confiar, olhá-la nos olhos e dizer:

– Sim!

E com isto uma onda de sensações varreu-me por completo e experimentei um turbilhão de sentimentos que me pareciam ter sido negados, e olhei-a com paixão e as suas formas nuas e lindas inspiraram-me desejo. O meu corpo reagiu de imediato, fazendo‑me sentir uma excitação quase incontrolável que subiu ainda mais de tom quando ela colou o seu corpo ao meu.

Eu estava ali, como que inerte, num estado de felicidade pura que nunca ousara viver, enquanto sentia os seus lábios a colarem-se aos meus, ela a envolver-me e eu a envolvê-la também. Todo o meu corpo se abandonou à vontade de a amar.

Deitámo-nos na areia molhada onde éramos lambidos pela água que ainda nos chegava, colámos a boca e os corpos, e apesar da urgência que sentia dela, o tempo parecia mover-se devagar à nossa volta, instigando uma calma que me fazia, nos fazia lânguidos.

Os meus sentidos encheram-se dela, o toque suave da sua pele quase eléctrico, os beijos carregados de sensações únicas. Então, ela empurrou-me para ficar de costas no chão, e de uma única vez deslizou em mim, e a sensação de a ter foi algo tão único que me limitei a fechar os olhos e a senti-la, a sentir-me dentro dela, numa comunhão de sentidos. Ela ficou assim, parada, a fazer que eu a sentisse, apenas com um leve ondular de ancas.

As minhas mãos percorriam o seu corpo até ao peito e desciam depois pelo seu lado, pelas suas ancas, pelas suas pernas e voltavam a subir. Nunca tinha sentido uma mulher assim, sem que houvesse o mínimo sentimento de urgência, sem que houvesse procura. Não havia tempo, por isso tínhamos todo o tempo. Não procurávamos nada, por isso não sentíamos a urgência de ir ao encontro de algo. Estávamos apenas ali, nós completos, fazendo com que a palavra «nós» se tornasse absurda. Apenas havia eu.

E quando cheguei a esse ponto, alguma coisa em mim pareceu querer desprender-se dela. Era algo que sempre sentira mas que só com ela, agora, se tornava evidente. Ela inclinou-se para a frente, pondo as mãos acima dos meus ombros e quando abri os olhos vi-a a olhar directamente para os meus.

– Fica comigo, Miguel.

Olhei-a nos olhos, bem fundo. Queria desvanecer aquela sensação de separação. Os olhos dela deixaram-me entrar na sua alma. Sem tirar os olhos dos meus, senti o seu corpo balouçar devagar fazendo-me entrar e sair dela, com uma calma absoluta.

– Fica comigo…

Sem eu tirar os olhos dela senti-me preso nela, deixando desvanecer a sensação da separação e soube pela primeira vez na vida o que é estar unido de corpo e alma a outro ser.

Com os olhos nos olhos um do outro chegámos a um orgasmo que me mostrou a verdade da união entre dois seres e fez o universo fazer sentido por uma vez.

Senti o seu corpo desfalecer sobre o meu enquanto regressava a mim e abracei-a. E qualquer dúvida sobre quem ela era se dissipou em mim. Tinha sido tocado por uma deusa e não podia voltar a ser o mesmo.

Não queria nunca mais perdê-la.

Queria que o tempo parasse.

Não queria sair dali…

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