terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Chuva - IV

 

A minha mascara de normalidade requeria que eu tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra. Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem complicações.

Quando chegava à minha hora saia e tinha o martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem ensinado.

Após uma hora deste martírio chegava a casa, tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há um ano atrás.

Sabes, era uma noite de inverno como qualquer outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma ritmada.

Sempre me reconfortara este ruído. Era calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…

…mas que sentia como apenas aparente. De alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.

Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei no maior silêncio possível a gravar a chuva.

Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos, rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos. Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…

…intencional. Sim, parecia intencional.

Fiz o software tocar o que estava escrito e o computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão ao mesmo tempo que o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.

Durante o caminho para o trabalho não tirei os olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente, qualquer coisa que desse sentido.

Cheguei ao trabalho e liguei o computador. Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas, negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa assim apareceu no monitor:

 

ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógshdnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremissão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF

 

Mais uma vez procurei sentido e só então comecei a descortinar palavras no meio da confusão.

 

“Em ruas cheias a que chora está só por entre a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”

Mas embora houvesse palavras, o significado continuava omisso.

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