quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lilith - XXXII - Durga

– E ele era assim tão impressionante?

– Acredita, era mesmo.

– E a ti, pessoalmente, impressionou-te assim tanto?

Ela parou para pensar.

– Não, se queres que te diga, nem por isso. Já tinha conhecido maiores que ele – disse com uma piscadela de olho.

– Então porque é que me contaste esta história?

– Porque a sei impressionante para ti e para quem quer que a leia. Afinal não é todos os dias que podes dizer que estiveste com alguém que Alexandre Magno arrastou pelos cabelos.

– Bem, lá isso é verdade. E quanto à segunda parte deste primeiro ponto?

– O facto de eu ter voltado a ser deusa?

– Sim.

Ela bebeu um gole de água.

– Voltei a ser uma única vez.

– Onde?

– No Nepal.

– No Nepal? Bem longe, não?

– Meu querido, nesta vida longa já tive tempo para ir a quase todo o lado. Há poucos sítios ao cimo da Terra onde eu não tenha estado.

– Sim, realmente, tempo para viajar tiveste de certeza – disse eu com um certo tom de gozo. Ela olhou para mim de escantilhão, e num gesto brusco atirou o resto da água que tinha dentro da garrafa para cima de mim.

– Estúpido – afirmou, tentando parecer zangada.

Eu olhei para ela com um olhar o mais carregado possível e atirei o resto da minha água para cima dela.

– Cá se fazem, cá se pagam – disse com ar de gozo.

Ela fez uma cara de ainda mais zangada, mas que não convencia ninguém, pelo menos não a mim e em seguida atirou-se para cima de mim como quem vai bater. Eu consegui agarrar-lhe os braços, lutámos um bocadinho os dois, com ela a tentar libertar-se, mas a escangalharmo-nos ambos a rir. Eu acabei por conseguir puxá-la para mim e beijei-a com doçura. Ela parou de lutar, e abraçou-me.

– Bem, podes ser estúpido assim mais vezes, se quiseres.

– Desde que tu deixes.

– Que é que tu achas? Quais são as probabilidades?

– Acho que, pelo menos neste momento, me são favoráveis.

– Achas bem. – Deu-me mais um beijo e largou-me. – Mas sempre queres ouvir o resto da história?

– Claro que sim. Há alguma lenda por detrás?

– Coisas muito curtas, contraditórias e não muito explicadas. A mais aceite é de que eu teria feito amor com um rei, Jaya Prakash Malla, e que quando parti disse que voltaria na forma de uma donzela virgem. Mas sabes, o interessante não é a lenda, mas o facto de ainda hoje haver uma deusa viva.

Uma deusa viva?

Sim, uma encarnação da deusa. Chamam-lhe Kumari e é uma jovem seleccionada entre as muitas de um determinado clã, os Sakya. Tem que possuir pelo menos trinta e duas características físicas e é depois posta à prova, caso se encontre mais do que uma jovem com as mesmas características.

E é considerada uma deusa?

Sim, é adorada como tal. É enclausurada e só sai do templo nos festivais, e ainda assim nunca pode tocar no chão com os pés, é sempre transportada num palanque. Pintam-lhe os olhos, para que se assemelhe ainda mais aos dos deuses. Usam a pintura para os alongar, com um traço negro.

Um traço negro?

Sim, um traço. Não é difícil imaginares como é. Basta olhares para uma estatueta ou desenho egípcio e veres a linha de maquilhagem dos olhos. É igual.

Mas esse culto é muito espalhado?

É um culto que só é reconhecido por hindus e budistas.

Ah! Só hindus e budistas. Podia estar mais espalhado… contrapus eu, na brincadeira.

Pois, realmente podia. Riu-se ela.

Mas diz-me, essa escolhida fica o resto da vida como deusa?

Não, nem por sombras. Normalmente são escolhidas raparigas entre os quatro e os doze anos que deixam de ser consideradas deusas logo que atingem a puberdade. Nessa altura seguem a sua vida.

Mas como é que esse culto apareceu?

Bem, apareceu de alguns acasos. Uma breve passagem minha levou a que as pessoas deste clã me considerassem uma deusa. Ajudei-os no que pude, sem esperar nada em troca, até porque nada tinham para me dar, mesmo.

Sim, mas de ajudares a seres uma deusa…

Meu querido, num sítio onde há milhares de deuses e deusas, mais um, menos um, não faz grande diferença.

Sim, também é verdade. Mas o que é que levou esta a ser especial?

Não fazes a mínima ideia de quem são os Sakya?

Não faço mesmo.

Então deixa que te diga que o seu mais conhecido e ilustre membro se chama Siddhartha.

Siddhartha? Como em Buda?

Exactamente.

Siddhartha é descendente do clã Sakya?

Mais concretamente, seria meu descendente em linha directa, e foram procurados nele os trinta e dois sinais primários da minha presença nele.

Esta afirmação deixou-me espantado. Eis um ponto do mundo onde ela não criara lendas por aí além, não criara civilizações e, no entanto, a sua marca lá estava.

Ela continuou.

Sabes, dizem que por onde Buda caminhava cresciam flores de Lótus…

Ela parou um bocado a olhar para mim, deixou a frase a meio, no ar. Dentro da minha cabeça fez-se a conexão.

Por onde Lilitu caminhava cresciam flores…

Ela riu.

É isso. Eu sabia que chegarias lá. Sabes, procuraram os sinais físicos em Buda para confirmar a ascendência divina, tal como procuram ainda hoje nas raparigas que se tornam Kumari. Basicamente, esta rapariga representa a mãe de Buda, a divindade dele. Por isso ela é tão importante.

Estava abismado. Esta mulher tinha influenciado a História de uma maneira que nenhum outro ser tinha alcançado, e ainda assim estava ali, diante de mim, como era, simples, e a dizer que me amava.

E eu, diante dela a amá-la, apetecia-me ajoelhar-me a seus pés e adorá-la. Prestar-lhe o respeito que ela merecia. Mas não o fiz porque sabia que não seria o desejo dela. Como ela disse, era alguém a viver uma vida comum, uma vida como a minha. Mas não havia nada de comum nela.



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