quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Chuva - VI

 

Já me lembro.

O significado continuava omisso. Havia claramente intencionalidade visto que uma vez uma palavra encontrada na cadeia os espaços eram definidos por afastamentos de cinco caracteres, isto é, contando cinco letras quer à direita quer à esquerda da palavra obtinha-se uma nova. Mas quanto ao que texto podia significar, isso escapava-se-me.

Passei os dias seguintes em busca de uma referência que pudesse por em perspectiva aquele texto. Mas era tudo demasiado vago. Não conseguia relacionar com nada específico. “A remissão dar-se-á”?

Quando chovia gravava sempre o som e tentava repetir o processo, mas, embora nas cadeias de caracteres aparecessem ocasionalmente palavras curtas, a verdade é que eram apenas palavras soltas e desconexas pelo que não havia sentidos aparentes.

Uma semana depois, ainda a minha cabeça fervilhava numa procura de uma razão para aquelas palavras, quando aconteceu.

Estava numa paragem de autocarro numa das mais movimentadas avenidas de Lisboa em plena hora de ponta e onde uma pequena multidão se aglomerava à espera de transporte. Olhei em volta, como sempre costumo fazer, para observar as pessoas que ali estavam. Sabes, divirto-me a observar as pequenas manias, os pequenos rituais…

…há sempre alguém a ouvir música nuns auriculares a um volume tão ridículo que toda a paragem houve…

…há sempre alguém a falar ao telemóvel elevando a voz de tal maneira que mais valia desligar o aparelho, que a pessoa com quem fala, independentemente da distância, ouviria na mesma…

…já para não falar em muitas vezes estar a revelar pormenores pessoais e a partilhá-los com toda a gente que está na paragem.

E foi enquanto observava tudo isto que reparei numa mulher sentada no minúsculo banco do pequeno telheiro da paragem que tentava passar despercebida e chorava de uma forma contida. Mesmo os que reparavam nela fingiam não o fazer e quase que criavam uma pequena clareira em volta dela, como se o choro dela fosse uma doença contagiosa que se pegasse por mera proximidade. É sempre tão bom ver estes exemplos de humanidade…

No entanto, nesta rua cheia a que chorava estava só por entre a multidão. Estaria à procura de luz?

Cheguei-me para perto dela e esperei que ela messe atenção. Ela, ao fim de algum tempo, olhou-me com os olhos rasos de água, notando o meu interesse e talvez procurando alguma compreensão. Não a encontraria em mim, de certeza, fosse qual fosse a razão do seu choro. Mas quando tive a sua atenção disse-lhe:

“A remissão dar-se-á”

E, em seguida virei-lhe as costas e voltei à minha rotina.

Fazia-me sentido o que se passara.

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