sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Lilith - XXVIII - O dia seguinte

Abri os olhos com a luz a inundar-me o quarto. A manhã já ia alta. Ela obviamente não tinha aparecido. Curiosamente, não me surpreendeu, nem me aborreceu. Fiquei ainda um bocado na cama a preguiçar e a habituar-me à ideia de ter acordado.

Depois de um bocado, levantei-me, comi qualquer coisa e sentei‑me ao computador a escrever. Tinha que despejar estas ideias que já estavam mais ou menos organizadas, torná-las coerentes, e com alguma urgência. Estava a menos de uma semana do prazo de entrega do livro. Passei o dia a escrever, ao ponto de me esquecer de almoçar. As ideias jorravam, eram fluidas e progredi bastante.

As luzes da rua começavam a acender-se quando Lilith apareceu. Abri-lhe a porta e ela entrou com um ar de menina marota.

– Olá – cumprimentou ela – Tiveste saudades?

– Não, nem por isso. Tenho estado absorvido pela escrita e não me tenho distraído muito.

Ela ficou a olhar para mim, algo surpresa.

– Mesmo?

– Mesmo – disse-lhe com um sorriso.

Voltei a sentar-me ao computador e continuei. Quer dizer, tentei continuar. Mas ela sentou-se perto de mim, a olhar com um ar interrogativo que me interrompia o raciocínio quando dava por ela, pelo canto do olho. Até seria divertido, se ela não estivesse a desconcentrar-me. Acabei por lhe dar atenção.

– Sim? – Perguntei.

– Não estás curioso?

– Em relação a…?

– A onde passei a noite…

– Não. Presumo que tenha sido num sítio mais confortável que o sofá do escritório do Henrique, portanto, não estou curioso.

– O sofá do escritório? Explica lá essa.

Contei-lhe a conversa a que tinha assistido quando nos cruzámos à entrada do restaurante.

– A sério? – Perguntou ela, meio divertida.

– A sério. Só tenho pena do coitado do Fernando – concluí com uma gargalhada.

– Enfim… – suspirou. – Mas passei a noite em casa da Laura.

– Sim, já calculava.

E com isto dei o assunto por concluído, e dediquei-me outra vez aos meus textos. Mas o olhar dela continuou, dizendo-me que a coisa não tinha ficado por ali. Desta vez esperei que ela falasse. Se ela tinha algo a dizer, que dissesse.

Ao fim de uns dez minutos, ela falou finalmente.

– Miguel…

– Sim, diz. – Dei-lhe finalmente atenção.

– Tu ontem não te portaste muito bem.

– Não? E então?

– Deixaste a Laura triste.

– Bem, sabes, tinha duas hipóteses, ou saía naquela altura ou tornar-me-ia insuportável. Não tenho paciência para gajos como ele, armado em galito de uma capoeira que nem sequer existe, a tentar exibir algo que nem sei bem o que é…

– Mas podias ter sido mais paciente.

– Podia, mas não quis ser. Reservo-me o direito de não ser. Porque é que havia de ser?

– Pela Laura.

– Diz-me uma coisa, o que é que passou pela cabeça da Laura em pôr-me a mim e a ele no mesmo espaço?

Ela pensou um pouco antes de responder.

– Acho que ela queria a tua opinião acerca do Henrique.

– Para quê? Queria a minha aprovação?

– Não, mas queria a tua compreensão.

– E tem-na. Não sou ninguém para julgar com quem é que ela deve estar ou não. Se ela gosta dele, então tem, logicamente, a minha bênção. Mas fico realmente com pena. Acho que ela merece muito mais do que um gajo casado que diz que vai passar a noite no sofá do escritório por causa do Fernando da contabilidade. Mas se na realidade queria a minha opinião, teve-a. Não lhe vou fazer favores, nem ser hipócrita com ela. Ele está muitos furos abaixo dela.

– Fazes bem.

– Eu sei. Ou se, por acaso, não faço, pelo menos fico bem com a minha consciência.

E, mais uma vez, dei por encerrada a questão e voltei ao que estava a fazer.

Decorreram mais uns longos minutos. Ela levantou-se, foi à cozinha buscar uma água, voltou, sentou-se e continuou a fitar-me. Cansei-me do jogo.

– Olha lá, se tens alguma coisa para dizer, diz de uma vez.

– Não queres saber o que se passou ontem, depois de te ires embora?

– Não.

– Não estás nem um bocadinho curioso?

– Não, já disse.

– Nem queres saber porque é que eu só cheguei agora?

– Não.

– Porquê?

– Porque tu fizeste-me prometer que eu confiaria em ti e nas opções que tomasses, por mais estranhas que elas me parecessem. E tu ontem escolheste ficar, tomaste uma opção. Eu sinceramente não gostei da opção que tomaste, mas não tenho de gostar, foi a tua opção, por isso estou a fazer o que pediste. Estou a confiar em ti.

Ela ficou a olhar para mim perplexa, sem saber o que me dizer. Aliás, era a primeira vez que a via assim, fitou-me com um olhar de admiração, que eu não compreendi. Depois sorriu.

– Há algo que devias saber.

– O quê?

– Convidei-os para jantar cá.

Olhei para ela, perplexo.

– Agora diz-me, estás a gozar comigo, não?

– Não, convidei-os mesmo.

Sorri. Olhei para ela, com a calma com que tinha falado com ela até agora, e disse-lhe, com toda essa calma:

– Sabes, fizeste bem. Tens comida no frigorífico, tens vinho na dispensa, e estás à vontade. Fica como se estivesses em tua casa.

Encerrei o computador, vesti-me sem lhe dizer mais uma palavra e saí porta fora.



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