terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Lilith - XXIV - Egipto

 

Sentado no meu terraço, a sentir o sol da tarde, a sentir o vento frio mas a desfrutar o sol, indolentemente, preguiçosamente… Preguiçosamente, não! Em paz. Uma paz harmoniosa, como se estivesse a ouvir uma sinfonia, rodeado como estava com o barulho do vento, o ruído das ondas.

Na distância Lilith dançava nas ondas num bailado que parecia coreografado desde sempre. Lembrava-me da primeira vez que a vira, neste bailado mas sem me aperceber da música, de tão absorto que estava em mim próprio e no meu mundo privado. Três semanas depois, as paredes do meu mundo haviam ruído, duvidava de tanta coisa, o mundo era menos certo, mas as cores eram mais vibrantes e podia dar-me ao luxo de ouvir esta melodia.

Ela subiu a praia, entrou no terraço, deitou-se ao meu lado ainda molhada e deixou o seu corpo desfrutar os elementos enquanto eu tentava proteger do frio a pele que estava à vista.

Ficámos os dois em silêncio, durante um longo tempo. Foi ela quem o quebrou.

– Ainda queres saber?

Tentei localizar-me. Fui parar à nossa conversa no restaurante em Sintra.

– Mais ainda que antes.

Ela sorriu.

– Vou ter de recuar um bocado. – Virou-se meio de lado, na cadeira, para olhar melhor para mim e continuou: – Na Suméria comecei a ser vista como uma deusa. Primeiro como rainha, mas à medida que o tempo foi passando começaram a dar-me outra dimensão. É verdade que reinava, mas nas minhas, digamos, ausências, alguém tinha de comandar. Sabes, numa era em que não havia tecnologia e que a força comandava, as mulheres retiravam-se para as tarefas que exigiam menos esforço ou agressividade. Isto levou os homens, sobretudo os ligados aos exércitos, a ascenderem a posições de poder. E nessas minhas ausências eles acabaram por ficar no comando.

– Mas ausentavas-te com frequência?

– Alguma… – disse com o ar de quem não me queria dar mais explicações.

Não insisti. Se aprendera alguma coisa era a respeitar os tempos dela. Ela continuou.

– Sabes aquela sensação que se tem na adolescência de que o tempo custa a passar?

Acenei afirmativamente.

– Pois eu, ao fim de quinhentos anos, sentia-me assim. Inquieta, como se algo cá dentro quisesse mais. Precisava de algo novo. Tinham-me transformado em pouco mais que uma figura decorativa. Achei que ali estava tudo feito. Não havia nada de novo, havia até resistência à novidade. As pessoas tinham-se tornado prósperas, acomodadas. Mas também percebi que seria difícil impor-me, enquanto mulher, noutro sítio. Com os Sumérios aconteceu porque foram eles que se juntaram à minha volta. Eu não me queria afastar de novo, sabes? Antes pelo contrário, queria sair do pedestal onde me puseram.

Compreendi-a tão bem… Gostava de ser admirada, mas não de ser idolatrada.

– Não te achas realmente acima de ninguém, pois não? – Perguntei.

– Não, não acho.

– Mas tens a noção do quanto és extraordinária?

– Sou fruto de circunstâncias extraordinárias. Mas isso não me faz diferente de ti. Sinto como tu, sofro como tu, anseio como tu.

Extraordinária por circunstância, mas não especial. Única mas igual. No fundo não o somos todos? Únicos mas iguais? Ela continuou.

– Parti para ocidente com um general meu, ainda bastante jovem. Mas partimos sem rumo. Queria vir sozinha, mas não me deixaram, queriam que alguém me acompanhasse e protegesse, e ele acabou por se oferecer para vir comigo. Algum tempo depois, chegámos a um local não muito distante de onde é hoje o Cairo, um pouco mais a sul. Vi que as terras eram excelentes, férteis como poucas, embora à altura da chegada não soubesse porquê. Dediquei-me a tentar construir algo, mas veio a inundação e destruiu tudo. Recomecei e no ano seguinte aconteceu de novo. Percebi que toda aquela destruição resultava também numa deposição de sedimentos que levava a que as terras ficassem extraordinariamente ricas.

– Nem tudo era mau na destruição…

– Antes pelo contrário. Graças a ela é que havia potencial. Se não fosse ela as terras seriam perfeitamente imprestáveis e o deserto iria até à margem do rio. Mas adiante. Os povos nativos estavam ainda organizados em pequenos clãs que guerreavam uns com os outros, viviam na mais perfeita animalidade. O antropofagismo era comum. Enquanto eu tentava perceber os ritmos da Natureza, a melhor altura para semear, para colher, o meu general ia agregando, através do respeito que conseguia impor pela pura força bruta, alguns dos clãs. Em algum tempo fundámos uma povoação, Ineb Hedj, que aos poucos e a custo começou a crescer.

Não sobreviveu muito tempo essa povoação, pois não?

Sobreviveu milénios – disse ela, rindo-se.

Milénios? Nunca ouvi falar…

Sabes, os gregos chamaram-lhe Men-nefer que era o nome egípcio do faraó Pepi I. mais tarde, em copta o nome passou a Menfe. Tu provavelmente conhece-la como Mênfis.

Claro que conheço. Então o nome original era…?

Ineb Hedj, que significa «As paredes brancas». Mas já agora, como curiosidade, podes ficar a saber que um historiador egípcio, Manetho, se referiu a Mênfis como Hi-Ku-P'tah, o que quer dizer casa de Ká e P’tha, por causa dos seus templos, que o escreveu em grego de uma forma que lida daria algo como Ai-gu-ptos. Esta forma passou para o Latim como Ægyptvs…

…o que dá o nome moderno do Egipto.

Certo. Mas voltando atrás, depois de resolvermos como armazenar o grão que fomos plantando, a população começou mesmo a crescer sob o aparente domínio do meu general. Digo aparente, porque afinal ele era a minha fachada. Ensinámos a semear os cereais, a colhê-los, a armazená-los, a fermentar a cevada e a fazer cerveja, ensinámos a plantar a vinha e a fazer o vinho. Começámos a absorver os clãs vizinhos. À medida que tínhamos mais pessoas as construções aumentavam, a complexidade aumentava…

… e quando deste por ti havia uma nova civilização que florescia.

Completamente. Mas o interessante é que as pessoas viam como o meu general me tratava com deferência, que embora não o soubessem era veneração, e que eu não me submetia a ele e o tratava de igual para igual. Ora a única relação em que podiam conceber tal, se bem que ainda assim não fosse usual, era entre irmãos. E foi isso que fomos considerados. Irmãos.

E isso não foi considerado estranho? – Perguntei eu. – Afinal de contas, estamos de alguma forma programados para procurar a diversidade genética…

Se olhares isto à luz do tempo, não. Afinal, uma vez que as populações eram muito pequenas, os laços de consanguinidade eram altíssimos e não era invulgar a união de parentes tão próximos. O importante era assegurar o futuro do clã.

Compreendo.

Entretanto, por uma questão de organização, era imperativo acabar com os cultos que cada clã tinha aos seus deuses privados. As divergências de culto levariam a coisas, sem dúvida, mais graves.

Sim, ainda hoje os crentes das religiões que afirmam que Deus é amor e que o maior valor é a paz andam em guerra umas contra as outras…

O que não deixa de ser um contra-senso no mínimo estúpido, não achas?

Perfeitamente.

Mas, por isso mesmo, teve de se organizar uma religião com os retalhos dos cultos dos clãs mais importantes, misturado com aquilo que eu conhecia. A melhor representação possível para a intocável fonte da vida era sem dúvida o Sol. Com o tempo, a mitologia cresceu por si só. Havia que dar nomes, características, personalidades aos deuses. Era preciso torná-los próximos, humanos, que eles tivessem dramas, rivalidades, que fossem sábios, mas que errassem. E ao juntar todos sob um mesmo culto, criou-se a união. Percebes isto?

Completamente.

Ela respirou fundo antes de continuar.

Como calculas o meu general…

Osíris?

Ela riu.

Sim, Osíris. Acabou por falecer, e o reino passou para o seu filho.

Não era também teu filho? Hórus?

Não, era filho de uma das concubinas de Osíris. No entanto, uma vez que nos consideravam unidos em tudo, ele foi considerado também meu filho. E acredita, tratei-o como tal.

E porque te chamaste de Ísis e não Lilith, ou Lilitu?

Porque queria seguir em frente, não queria que me relacionassem com a Lilith que estava na origem dos tempos, não queria a divindade.

Mas acabaste por tê-la na mesma, não foi?

Foi. Acabei por ser considerada sábia, depois a que sabia quase tudo. Conforme a mitologia evoluiu, assim apareceu a história do nome de Rá, o nome secreto que dava todos os poderes a quem o pronunciasse, que seria a única coisa que não saberia. Esta história veio a mesclar-se com as histórias que os descendentes de Adão passavam via oral de uns para os outros quando estes foram subjugados pelo Egipto. E de uma estranha forma, acaso, destino, chama-lhe o que quiseres, eu comecei a ser identificada como a mesma personagem. Talvez porque fosse a imagem da mulher insubmissa e insubmersível.

Mas diz-me, não estiveste no Egipto como estiveste na Suméria, pois não?

Como assim?

Tanto tempo a estabelecer as coisas, a liderar…

Não. Achei que seria melhor não o fazer. Aborrecia-me que me prestassem culto. Que me tomassem como algo de diferente, que eu não achava ser. E assim deixei-me deslizar para todos os outros papéis possíveis, para vidas comuns.

E entretanto Ísis começa a ser considerada deusa, neta do Sol e filha da Terra e do Céu.

Sim. E ao mesmo tempo vivia junto com o povo que a venerava.

Porque é que escolheste isso?

Precisava de viver, de aprender, de absorver tudo. Tinha fome de conhecimento e sabia que não chegaria a ele empiricamente, sentada numa torre de marfim. Tinha de sentir as coisas na pele, mas mais ainda, tinha de sentir a minha condição de mulher para me afirmar ainda mais.

Mas isso não significa que tiveste de acabar por ser submissa?

Meu querido, a submissão, muitas vezes, está nos olhos daquele que quer submeter. E nunca te esqueças de que a astúcia é a maior arma das mulheres – disse com um sorriso malicioso.

Ri-me. Era verdade o que me dizia. O ser e a aparência do ser são duas coisas completamente diferentes, e nós, aqueles que não têm estas histórias grandiosas, vivemos num mundo de aparências, de tal forma que muitas vezes não conhecemos a nossa própria realidade, apenas a ilusão dela.

O sol desaparecia no horizonte e deixava os farrapos de nuvens com tons alaranjados e ao mesmo tempo começava a cair uma humidade forte que parecia querer entranhar-se em mim. Foi por isso que sugeri:

E se fôssemos para dentro?



 

2 comentários:

  1. Olá, Gil!
    Sinceramente, já me perdi um pouco na história desta Lilith, pois por um motivo ou por outro, houve capítulos que não li.
    Atraída pelo nome do País da Cleópatra, vim ler este e gostei muito. Essa indolência do personagem ficar sentado a desfrutar do benefício dos raios solares sem nada ter e querer fazer, deu-me logo ânimo para continuar...
    Fico feliz por ti, Gil, pela imensa garra com que agarras as palavras e as conduzes para onde te apraz. :)

    Um beijo e força — porque dos fracos e indolentes não rezam as histórias. ;)

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    Respostas
    1. Alô, Janita.
      A vantagem é que podes sempre ir atrás e ler. Acho que tens coisas interessantes por ali. Eu pelo menos, na altura que escrevi, achei que eram interessantes... :)

      Obrigado e Bjs grandes

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