sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Chuva - IX

 

Mais três dias se passaram sem que nada fora do normal acontecesse. Ainda assim, todos os dias chegava à paragem e ficava desconfortável. As pessoas que ali estavam eram sempre as mesmas, desde há anos e sentia que tinha sido notado e que me observavam com curiosidade.

Não gosto de ser observado. Mesmo.

Mas adiante. Ao fim de três dias a mulher aparece acompanhada por um homem. Era um tipo grande, com um ar algo carrancudo mas sem ser agressivo. Pura e simplesmente muito sério. Chegaram os dois ao pé de mim. O homem olhou para a mulher e ela fez um gesto afirmativo com a cabeça. O homem dirigiu-se a mim.

“O meu nome é Fernandes e queria dar-lhe uma palavrinha…” ao que me apressei a responder “Infelizmente já estou atrasado…”, mas o homem não desarmou.

“Ouça, há algum sitio onde possamos trocar umas palavras?”.

Percebi que ele ia insistir e já me bastava o que bastava. Acabei por lhe dizer

“Bem só se me quiserem acompanhar e podemos falar onde trabalho, não é longe daqui.” Ao que acederam ambos. Apanhamos o meu transporte e seguimos sem trocarmos mais uma palavra.

Durante todo o caminho, de pé, no autocarro, o homem não tirava os olhos de mim. Se é verdade que não gosto de ninguém, dele estava a gostar ainda menos. Apetecia-me dizer-lhe para olhar para outro lado, ou para tirar uma fotografia. Sempre durava mais tempo…

O que vale é que a viagem era relativamente rápida.

Cheguei ao trabalho, acompanhado por eles, dirigi-me ao meu canto, instalei-me e por fim dei-lhes atenção. Ficamos um bocadinho em silêncio. Eu esperei que eles falassem. Não perguntei nada. Não estava curioso…

O Homem acabou por falar.

“Como já lhe disse o meu nome é Fernandes e sou médico. Esta senhora é a D. Ana, e o senhor é?”

“…Alguém que não gosta de ser incomodado!”

O homem encarou-me com o mesmo ar sério, olhos carregados, mas sem uma ponta agressão, antes com uma afirmatividade difícil de encontrar.

“Vamo-nos deixar de coisas e vamos directo ao assunto. Como é que sabia?”.

A minha resposta, como podes calcular, foi cem por cento honesta.

“Sabia o quê?”

Só ai notei alguma ponta de agressividade no homem.

“Mas você está a gozar com a nossa cara?”

“Claro que não.” respondi eu “Apenas não sei do que estão a falar, mas presumo que tenha algo a ver com o que eu disse a esta senhora.”.

O homem pareceu algo surpreso, não com a minha franqueza, que era óbvia, mas com as minhas palavras.

“Você não faz mesmo ideia do que estamos a falar, pois não?” perguntou-me.

“A mínima ideia, sequer.”

“Muito bem,…” continuou ele “…como já lhe disse o meu nome é Fernandes, Álvaro Fernandes. Sou médico. O senhor falou com a D. Ana duas vezes, não foi?”

“Foi.”.

A D. Ana continuava remetida ao silêncio deixando-nos falar, mas olhando para mim de uma forma estranha, quase como que em adoração. Adoração a mim. Conceito estranho…

“Da primeira vez disse-lhe que a remissão dar-se-á e da segunda disse que se tinha dado e daria novamente e falou no quarto vinte e dois…”

“Sim,…” respondi-lhe “…foi isso mesmo.”

“Pois bem, fique sabendo que sou médico num dos hospitais desta cidade, na área de oncologia. O filho desta senhora sofria de uma leucemia grave e dois dias depois de ter falado com ela a criança começou a dar sinais inexplicáveis de melhoras. Ao terceiro dia fizemos testes e analises e a criança que estava já em estado terminal já está em casa. Houve uma remissão completa da doença.”.

Fiquei calado enquanto o ouvia e as palavras que me dizia iam afirmando as minhas suspeitas acerca da intencionalidade.

“Há três dias falou no quarto vinte e dois, e a paciente que está no nosso quarto vinte e dois, também já em estado terminal com um cancro no esófago, começou a dar sinais de melhoras logo a seguir a ter recebido o telefonema da D. Ana. Neste momento está-se a preparar para ir para casa. Remissão total, também.”

Continuei calado.

“Só por si as remissões deste género são algo de raro. Mas duas, em tão curto espaço de tempo, é algo de estranhíssimo. Mas o que mais me intriga é como é que o senhor poderia saber disto?”

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