quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Chuva - XVI

 

Ele foi-me levar a casa. Chegamos perto das duas da manhã. Mais uma vez, à despedida ele reafirmou “Prepara-te. Amanhã o dia vai ser diferente.”

Eu fiquei a olhar para ele, como se não entendesse. Ele fez um sorriso condescendente, mas ao mesmo tempo preocupado. Voltou-se para mim e disse “Se tiveres problemas telefona-me”.

Despediu-se de mim com um aperto de mão caloroso, da parte dele. Tinha que bloquear o que sentia ao tocar-lhe.

Porque é que as pessoas precisam tanto do toque, da proximidade? Parece que toda a gente anda completamente agarrada e obcecada pelo corpo, como se o corpo em si fosse algo mais do que uma ferramenta para o cérebro. As pessoas, em vez de se preocuparem com a aparência, com a idade, com o aspecto, ou seja, basicamente com tudo aquilo que demonstram aos outros, deviam preocupar-se em alimentar o cérebro. Se calhar se o fizessem não precisariam tanto de demonstrar algo que não são, seriam apreciadas por aquilo que são na realidade e não andariam tão esfomeadas de algo que nem sabem o que é. Não achas?

É que sabes, e desculpa este aparte, mas acho que tem a ver com o que te estou a contar agora, as pessoas quando demonstram ser algo que não são tem de se esforçar, estar constantemente a julgar as suas próprias atitudes. E não me digas que não. Eu sei que sim. Faço-o todos os dias.

Mas há sempre uma altura em que, por um motivo qualquer, a sua verdadeira natureza vem ao de cima e destrói a ilusão que elas próprias criaram acerca de si.

Quando vejo alguém demasiado produzido, seja homem ou mulher, sei logo à partida que essa pessoa é insegura.

E depois já reparaste que há aquelas pessoas que passam por ti na rua, não se vestem segundo a moda, não se produzem, e no entanto parece que, na sua simplicidade, tem algo que chama a atenção, que torna impossível não olhares? Essas são pessoas seguras de si próprias. Não precisam de artifícios para se mostrar a ninguém.

Não é que eu achasse o Fernandes uma pessoa insegura, antes pelo contrario, para te ser franco. Mas depois há esta coisa do toque cultural, do cumprimento.

Entrei em casa e deitei-me. Não estava cansado, e ainda tinha até de madrugada para pensar bem em como agir no dia a seguir. Estavam lá câmaras de televisão, portanto a minha cara já se tinha espalhado pelo país inteiro. E agora?

Também, que raio tinha o miúdo de ir fazer para o meio de lado nenhum? De que é que ele andava ali à procura?

Adiante.

O que é certo é que eu sabia que as pessoas viriam ter comigo, quereriam falar comigo, cumprimentar-me tocar-me…

…e não era por ter salvo alguém, não! Era porque, além disso, apareci na televisão.

A caixinha da verdade. Se estava lá, na caixa, então era verdade. Já ninguém se dava ao trabalho de pensar e formar uma opinião, coisa que eu compreendo. Afinal, os programas de informação tem coisas chamadas de “opinion makers”, termo este que é muito mais importante do que seria se estivesse traduzido em Português, porque, admitamos, “fazedores de opiniões” não é a mesma coisa. E estes tipos são pagos para pensar por todos nós. Claro que podem estar três ou quatro no mesmo programa e cada vez que um fala nós damos-lhe razão. Todos eles falam tão bem…

Sabes, eu acho que qualquer pessoa que tome uma posição acerca de um determinado assunto sem saber tudo o que há a saber acerca desse assunto é estúpido. O termo pode parecer-te forte, mas é o que eu acho. Ninguém é dono da verdade. As pessoas deviam ouvir tudo o que há para ouvir, deixar as coisas andarem às voltas nos neurónios por um bocado, e depois formar uma opinião.

Mas, ao fim ao cabo, porque dar-se a esse trabalho quando alguém paga a alguém para fazer isso por elas?

Mas a grande verdade é, nesta época de desinformação pura onde só nos chega aquilo que querem que nos chegue, como é que se pode formar uma opinião isenta?

Mas desculpa, estou a divagar…

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