quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Lilith - XV - Maldição

Uma e quarenta e seis da manhã

Fiquei a olhar um pouco ainda para o texto, relacionando-o com o que já sabia antes. Já tinha lido referências a ele mas nunca o tinha lido completo.

– Esta és tu?

– Sim. De uma forma algo distorcida, mas sim. Afinal isso foi escrito mil e quinhentos anos depois e quem conta um conto…

– …aumenta um ponto. Mas o que é que há aqui de real?

– Para já digo-te o que não há. Não esperes que eu crie asas e voe daqui para fora.

– Para te ser franco não me surpreenderia.

– Mas olha, a mim sim. E não esperes ver flores a nascer onde piso, nem árvores onde me sento.

– Bem, isso já não esperava. Esta casa e a de praia já seriam uma selva…

Ela riu com gosto.

– Pois – disse –, era complicado, sem dúvida. Mas este texto conta a história da fundação da civilização.

– Da Suméria?

– Sim, e basicamente de todas. Diz-me, o que achas que formou a primeira civilização?

– Penso que a descoberta da agricultura, não?

– Exacto. As pessoas deixaram de ser nómadas e seguiram as migrações da caça porque descobriram outro meio de subsistência. Mas a própria agricultura obrigava-os a permanecer no mesmo sítio durante muito tempo.

– Tem lógica.

– Logo, criaram comunidades que com o tempo foram crescendo até se tornarem culturas e mais tarde civilizações.

– Percebo. E dizes que este texto descreve esses primórdios?

– Sim. Sabes, Yahvé preparou-nos, a mim e a Adão, para uma série de coisas. Ensinou-nos a agricultura de modo a que a pudéssemos fomentar mais tarde e sermos o início da dita civilização. Quando saí do Éden trazia comigo esses conhecimentos. Desterrei-me para as margens do Mar Vermelho, para a zona que hoje é conhecida como Harrat al Birk, na Arábia Saudita. É uma zona vulcânica bastante fértil. Comecei a aplicar o que sabia e criei um pomar, jardins, cultivei as terras com cereais. Era algo de pequeno, mas o suficiente para me sustentar.

– Não me digas, os jardins que criaste ao andar e as árvores de quando te sentavas.

– Exacto. Repara, nunca ninguém o tinha feito, logo eu ganhei uma aura mística. Foram passando clãs por ali, e como havia abundância e comida foram ficando à minha volta. Fui-lhes ensinando o que sabia, e dava-lhes comida em troca do trabalho. Os pomares cresceram, bem como as terras cultivadas de cereais. E, lógico, onde há abundância, a população também.

– Mas pelo que percebo, logo a seguir vieram os problemas.

– Claro. Havia abundância da nossa parte, e havia a cobiça de clãs vizinhos que não queriam trabalhar a terra mas que invejavam o que tínhamos. Começámos a ser rodeados, cercados mesmo e acabou por haver uma guerra.

– Com o tal príncipe enamorado?

– Não, isso só fica mesmo bem na lenda. Não seria uma lenda sem uma história trágica de amor para os poetas contarem.

– É verdade! – Ri-me eu.

Não, a guerra teve mesmo objectivos mais mundanos. Queriam simplesmente apoderar-se da nossa prosperidade. No entanto, fomos tentando manter o que tínhamos construído, e conseguimos durante algum tempo. Mas o que não é para ser não é mesmo, e houve uma erupção vulcânica que acabou com o nosso sonho ali. Acabei por levar os que me quiseram seguir numa busca por um sítio pacífico onde nos pudéssemos fixar e construir algo. Acabámos por ficar onde é agora Bagdade e aí sim, fundámos qualquer coisa maior. Começámos a construir em pedra, criámos muralhas de protecção, porque não queríamos voltar a passar pala mesma situação, começámos a agregar uma cultura. Como havia prosperidade e tempo fizemos evoluir a tecelagem, a pintura, a música, desenvolvemos os transportes, a irrigação dos campos. Fundámos a primeira cidade. Para não corrermos o risco de começarmos a ser atacados e não termos defesas, formámos o primeiro exército com fins meramente defensivos. E uma vez que começou a haver gente ocupada permanentemente em coisas que não eram directamente produtivas, vimo-nos obrigados a substituir o sistema de troca directa de bens por outro, o que levou à criação da moeda corrente.

– E criaste, assim, a primeira civilização.

– Exacto. E acredita, é um passo que depois de ser dado não volta atrás.

– Mas diz-me, o resto da história, a envolvência com o tal príncipe tem algum fundamento?

– Se tivesse – disse ela com um sorriso maroto –, por esta altura já estarias morto, não achas?

– É verdade! – Disse eu, sentindo ainda nos lábios a suavidade do toque dos dela.

– Em relação a isso, lembras-te de na lenda hebraica Deus me ter amaldiçoado?

– Sim, lembro-me da maldição. Cem dos teus filhos morreriam todos os dias.

– Pois, mas acontece que a maldição nunca existiu e eu nunca os tive. E consegues adivinhar o porquê?

Pensei um pouco e olhei-a. Tentei pôr-me no seu lugar. E num rasgo um pensamento veio-me à ideia.

– Porque a tua maldição é outra? – Perguntei.

– Sim – respondeu ela, com o olhar a tornar-se distante de repente. – E nem é uma maldição, é apenas uma consequência.

– A dor de veres morrer tudo aquilo que amas?

Ela olhou para mim, talvez surpreendida com a minha pergunta, como se o facto de eu o dizer alto tivesse implicações maiores.

Limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto os seus olhos ficavam turvos com as lágrimas que tentava conter.

– Achas que não podes amar!

– Sei que não posso.

– Mas não consegues desistir de o fazer.

– E é essa a minha maldição.

Olhei-a. Não como pretensa deusa, criatura mitológica, ou fonte de mitos, como criadora da civilização, como ser imortal, mas apenas e tão só como mulher. Como uma mulher que se revelava. Cheia de contradições, como qualquer outra. Cheia de desejos e vontades, como qualquer outra. Com a segurança que apenas a sua longevidade podia dar. Dorida, como quem já tinha tido tudo e tudo tinha perdido. E com a força que apenas passar por essa dor consegue dar.

Levantei-me, e pela primeira vez aproximei-me dela por minha vontade. Coloquei a mão na sua face, toquei nas suas lágrimas. Sentei-me ao seu lado e envolvi-a. Ela cerrou os olhos e virou a cara, com uma expressão de dor.

Eu senti-a. Era uma sensação estranha. Continuava a não sentir qualquer desejo por ela. Nenhuma paixão. A mulher mais bela que já vira e não me fazia ferver o sangue. Mas algo em mim, no fundo de mim, me fazia aproximar dela.

E, sem eu me dar conta, a minha mão puxou a sua face para a minha, os meus lábios procuraram os seus, as nossas bocas entreabriram-se, as nossas línguas tocaram-se e mergulhámos no beijo mais carregado de sensações e sentimentos que jamais tivera. E à medida que as nossas bocas se exploravam, os meus braços envolveram-na e apertei-a contra mim.

Ainda que apenas por um momento, um momento fugaz, algo indefinível e que escapa, tive a certeza absoluta de que fomos um só. Desapaixonadamente.

2 comentários:

  1. Hoje passei apenas para lhe desejar as melhoras e um Feliz Natal.
    Abraço Fraterno

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  2. Pronto. Atualizei-me.
    Abraço, saúde e continuação de boas festas.

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