segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Lilith - X - Recordações

Seis da tarde.

Estávamos agora em casa, eu sentado em frente ao portátil na companhia de um copo de whisky e de um cigarro, e ela algures na cozinha a preparar o jantar.

Tínhamos passado a tarde nas compras, depois de sair do restaurante. Primeiro tínhamos ido a um supermercado buscar comida e em seguida passámos por algumas lojas de roupa, uma vez que ela estava ali sem qualquer bagagem. Foi nessa altura que tive a certeza de que ela estava para ficar, pelo menos por mais algum tempo.

Na loja de roupas, ela, como que para me espicaçar, demorou-se bastante na secção de lingerie e volta e meia voltava-se para mim e perguntava:

-Que é que achas? Achas que me fica bem?

A pergunta era ridícula. Não via algo que pudesse eventualmente ficar-lhe mal e apagá-la de alguma maneira. Mas via o sorriso maroto.

– Mas porque é que perguntas?

– Sei lá… Podias não achar bem e eu gosto de uma opinião isenta.

– Pois, pois… – E ríamo-nos ambos.

Fez questão de desfilar para mim quase todas as roupas que escolheu, deixando todas as outras frequentadoras da loja mortas de inveja e os poucos frequentadores felizes por se terem deixado arrastar para lá neste dia.

Finalmente, voltámos ao meu refúgio e tínhamos chegado há muito pouco tempo. Ela serviu-me o whisky e despachou-me para aqui, enquanto me disse que ia dedicar-se à cozinha.

Preparei-me para tentar descrever o que se tinha passado até então, com algum afinco, se bem que nada mais saísse que rascunhos e algumas ideias confusas que precisavam tanto de ser ordenadas quanto a minha cabeça. Precisava mesmo de espaço para poder organizar tudo, e neste momento estava a saborear esse espaço com o whisky e um cigarro.

O ar foi-se enchendo de aromas, alguns familiares, outro nem por isso, que apelavam directamente ao meu apetite. Perto das oito, ela apareceu à porta do escritório com um avental.

– Com fome?

– Agora que falas nisso…

– Anda então.

E afastou-se da porta, começando a tirar o avental.

– Mas o que é que fizeste?

– Qualquer coisa no forno…

– Eu tenho um forno?

– É. Vê lá as coisas que não sabias… – disse com uma gargalhada.

A mesa estava posta a rigor, para minha surpresa. Ela notou.

– Só porque estamos sozinhos, isso não quer dizer que não tenhamos algum requinte, não achas?

– Por mim tudo bem, só não estava à espera. E posso saber o que cozinhaste?

– Qualquer coisita…

– Não me vais dizer, pois não?

– Não.

Trouxe uma travessa com carne e legumes com um aspecto absolutamente maravilhoso. Serviu-me de forma requintada e serviu‑se a si a seguir, retirando a travessa. Eu levantei-me e, quando ela voltou, ajeitei-lhe a cadeira e servi-lhe o vinho.

– Muito bem! – Disse ela. – Vês como um pouco de requinte pode fazer a diferença? Tu assim quase pareces um cavalheiro.

– Quase. Mas não abusemos.

– Não, claro – sorriu. – Eu não te ofenderia assim gratuitamente.

O sorriso dela era radiante, belo, e a refeição foi feita sempre numa toada bem-disposta, com muitas gargalhadas à mistura. Conversámos como dois bons amigos e dei comigo a apreciar imenso a sua companhia, a cultura óbvia que tinha e uma invulgar visão do mundo, mesmo retirando tudo o que tínhamos falado até então. Era uma mulher afirmativa, de opiniões seguras.

Acabámos o jantar e ela insistiu em que deveríamos ir beber um café algures. Mais uma vez, percorremos o caminho de volta à vila. Não ficámos muito tempo no café, e no caminho de volta, não muito distantes do meu refúgio, ela pediu-me para parar.

Ficámos ali, no mais completo silêncio, sem qualquer luz a chegar da civilização, numa estrada à beira-mar. Sem qualquer aviso, ela tirou a roupa, ficando completamente nua ao meu lado, saiu do carro e desceu para a praia, indo ao encontro das ondas, como já a tinha visto fazer anteriormente. Fiquei ali, só, durante aqueles minutos de ausência, até a ver voltar ao carro. Tinha já a pele seca pelo vento frio que se sentia, apesar do cabelo ainda molhado. Sacudiu a areia dos pés já sentada no carro, e finalmente fechou a porta, deixando-se estar ali ao meu lado em silêncio.

Eu tentava não olhar para ela. Não queria que, de alguma forma, um olhar meu pudesse ser encarado como uma falta de respeito. Admito que me sentia incomodado por não saber o que lhe dizer e o silêncio foi-se tornando pesado. Finalmente ela falou.

– Sabes quando eu te disse que naquele dia despertei?

– Sim.

– É quase impossível explicar-te, mas, na realidade, é a única maneira de como o explicar. Eu e Adão já existíamos antes. Não da maneira como passámos a existir, mas já existíamos.

Olhei finalmente para ela e a sua nudez, estranhamente, não me perturbou.

– Explica-me.

– Nós somos da espécie humana. Tínhamos todas as ferramentas, a capacidade de realização, e no entanto não éramos muito diferentes dos outros animais.

– Como assim?

– Olha para um chimpanzé. É o animal mais próximo de nós. É inteligente, vive em comunidade. Qual é a diferença básica?

Fiquei em silêncio à espera da sua resposta, que não tardou.

– A diferença está no facto de para um chimpanzé a inteligência servir o instinto e não o contrário. Falta-lhe a consciência.

– Mas o chimpanzé sabe quando fez algo de errado. Até um cão o sabe.

– Mas isso são comportamentos aprendidos por contacto com os humanos. Para um chimpanzé na Natureza, nada do que faça é errado, desde que seja em função das suas necessidades ou das necessidades do grupo.

– Queres então dizer que éramos chimpanzés muito inteligentes?

– Sim, mais evoluídos sem dúvida, com maior grau de percepção, mas submetendo essa inteligência ao instinto, inconscientemente.

– Então o que é que mudou?

– Yahvé apareceu e desse barro primordial, que estava preparado para isso, agarrou em nós e colocou-nos resguardados do resto do mundo.

Compreendi o que queria dizer. O barro primordial tanto podia querer dizer que efectivamente viemos da terra enquanto fruto de evolução, como podia querer dizer isto mesmo. A espécie, a matéria-prima, estava lá. Esse era o barro primordial.

– Não sei o que ele fez, ou como o fez, mas um dia senti esse despertar, essa consciência e essa noção de que tudo o que eu era estava ao serviço da minha inteligência e não o contrário. Hoje em dia alguns falariam em engenharia genética, mas não creio que tivesse algo a ver com isso. Claro que o mundo, visto por esse prisma, seria totalmente novo. Yahvé deixou-nos andar pelo jardim do Éden livremente. Falou-nos longamente, instruiu-nos, modificou-nos. Era um pai para nós.

Ficou a olhar a distância por um bocado, com o olhar perdido no oceano. As suas palavras estavam carregadas de uma melancolia triste. Saudade. Estavam carregadas de saudade.

Continuou.

– Tudo o que nos fez foi tornar-nos perfeitos. E éramos. Absolutamente complementares, e algures entre nós havia um equilíbrio dinâmico. E embora sentíssemos o tempo a passar, fomo-nos apercebendo de que o tempo não contava assim tanto para nós. Fui verdadeiramente feliz durante todo aquele tempo, que foi muito tempo.

– O que é que correu mal, então?

– À medida que o tempo passava, a nossa consciência aprofundava-se. O objectivo de Yahvé era que nós fôssemos a génese de algo novo. Um começo, um salto. Com o tempo. nós e os nossos descendentes acabaríamos por nos impor porque éramos melhores. E com o tempo os genes imperfeitos acabariam por desaparecer.

– Como se suspeita que aconteceu ao Neanderthal quando o homo sapiens apareceu…

– Exacto. Era só uma questão de tempo. E nós iríamos ter, literalmente, todo o tempo do mundo. Mas à medida que o tempo passava, as nossas naturezas aprofundaram-se. Ele tornou-se mais masculino e eu mais feminina.

Calou-se. Consegui ver os seus olhos encherem-se de água. Aquilo que me contava tinha sido sem dúvida algo de extremamente doloroso.

Já eu aguardava que ela continuasse e sentia-me absolutamente abismado por esta mulher estar aqui a partilhar isto comigo, desta maneira. Alguém que me parecia cada vez mais intocável expunha-se diante de mim. Apeteceu-me abraçá-la, confortá-la, embora tenha achado que tal gesto da minha parte seria pequeno perante a imensidão de sentimentos que vinha dela e me tocava.

– E foi aí que a felicidade perdeu a sua solidez. Ele começou a ceder demais ao seu lado masculino, a querer tornar-se dominante. Como podes imaginar, eu não cedi. Sentia-o de igual para igual, mas ele achava-se superior a mim, achava que devia controlar-me e entrámos em rotura. Como calculas, não me conformei. E inclusivamente resolvi falar com Yahvé, dizer-lhe o que se passava, tentar que ele chamasse Adão à razão, sabes…

– Sei.

– Mas foi escusado. Ele disse-me que teria que ter paciência, que com o tempo tudo chegaria a bom porto, que ele teria que aprender a lidar com a sua natureza. Eu percebi Yahvé. Há coisas que temos de aprender por nós próprios. Se nos forem impostas podemos até acatar, mas de alguma maneira estaremos a fazer algo contra a nossa natureza e isso leva-nos a ficar amargos, ressentidos. Quando a situação se tornou insuportável para mim, solicitei a Yahvé que me deixasse partir por uns tempos. Yahvé pediu-me mais paciência. Eu prometi-lhe que voltaria, e que talvez a própria solidão fizesse Adão perceber. Ele acabou por aceder. E eu parti…

As lágrimas eram testemunhas da dor que ela sentia. Não me contive, e embora o meu gesto parecesse pequeno, embora me sentisse minúsculo ao seu lado, estiquei o braço e limpei as lágrimas de um dos seus olhos num gesto suave.

Ela olhou para mim, com os olhos tristes, carregados da mágoa das suas recordações. Inclinou-se e abraçou-se a mim. Ficámos assim algum tempo em silêncio. A posição era desconfortável para mim e ela acabou por se aninhar ao meu colo, esticada ao longo dos bancos do carro.

Ao fim de um longo tempo em que a embalei nos meus braços, ela olhou para mim.

Sorri-lhe. Como em resposta ao meu sorriso, ela levou a mão à minha face e afagou-a num gesto de carinho. Depois, baixinho, muito baixinho, num murmúrio quase inaudível, disse:

– Obrigada!

E deu-me o mais suave, doce, lânguido e pleno beijo nos lábios.



2 comentários:

  1. Por hoje é tudo. Não consegui ler nem metade deste capítulo. Volto outro dia.
    Abraço e saúde

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  2. Obrigado. Para mim é muito mais fácil ler com a letra a preto.
    Vou continuar.
    Abraço e saúde

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!