terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Lilith - I - Lilith

 Duas da manhã.

Após o pouco que escrevi sento-me agora aqui, sem saber para onde continuar.

As minhas únicas companhias são os cigarros que vou queimando lentamente, o copo de whisky de malte, o barulho das ondas do mar, das quais através da janela apenas consigo distinguir o reflexo da lua na espuma e esta insónia e mal-estar de alma.

Sinto-me desconfortável em mim, com vontade absoluta de escrever, vontade de deixar correr os meus dedos nas teclas desta máquina de escrever, mas não o faço porque pareço não ter nada para dizer a não ser ideias desconexas.

Talvez devesse experimentar fazer isso mesmo, deixar os dedos correr…

Piauehg erpiuhaeuhgap biepiauegi auehpisy gatyetoa eaegrouygapoy fpaiuergaip eurpiaegvpiae …

Não, não é boa ideia, embora espelhe o que sinto.

Mas quem lê precisa de palavras, de conexões, de entendimento e não deste exercício fútil que não leva a lado nenhum.

Estou só, sinto-me só, e é se calhar essa solidão que me leva a não fazer sentido a não ser para mim, mas mais importante, a não necessitar de fazer sentido a não ser para mim. Mais do que só, sinto-me deprimido, e creio ser esse o principal problema. Talvez a ideia do isolamento não fosse tão boa quanto parecia.

Batem à porta.

São duas e meia da manhã num local quase deserto onde ninguém vem sem um propósito e batem à minha porta. Fico sobressaltado e receoso. Vou à porta ver quem é. Não adiantaria tentar fingir que não está ninguém, quando as luzes estão acesas e são provavelmente as únicas luzes visíveis em quilómetros. Assalta-me o medo do que possa ser.

Espreito. Lá fora uma mulher, aparentemente só.

Abro a porta apenas ligeiramente.

– Sim? – Questiono.

– Olá, Miguel.

A voz dela chegou até mim e a única comparação que consigo encontrar para o que senti na altura é a de estar a beber um mel tão doce, mas ao mesmo tempo tão suave que não sacia. Imediatamente senti que queria continuar a ouvi-la, não queria deixar de a ouvir, como se a simples voz desse significado a algo em mim. Senti-me tocado, quase comovido sem conseguir perceber o porquê.

– Desculpe, conhecemo-nos?

– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.

Continuei estático, apenas com a porta entreaberta.

– Não me convidas para entrar?

A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Ela soltou uma pequena gargalhada.

– Miguel, podes estar descansado. Não estou aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma forma, e estou completamente sozinha. Então? Deixas-me entrar?

Franqueei-lhe a porta, sem dizer uma única palavra. Ela entrou, tirou a capa que a cobria e pendurou-a no cabide que ali estava, sem sequer olhar para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar de quem conhecesse bem a casa.

Era a mulher que tinha visto na praia esta tarde, sem dúvida. Vê-la agora, aqui, de perto, deixou-me perturbado.

Era alta, e não há outro adjectivo para a descrever que não seja perfeita. Os cabelos pretos escorriam em cascata com uma leve ondulação até ao meio das costas e contrastavam com uns olhos do azul mais intenso que já tinha visto. Tão intenso que parecia faiscar. A tez morena realçava-os ainda mais. As roupas leves que estavam agora por cima do seu corpo não o apagavam nem realçavam, mas também não era necessário. O seu corpo tinha as proporções exactas, um equilíbrio e harmonia como nunca tinha visto e o seu rosto fazia lembrar as estátuas de Vénus e Afrodite. Uma beleza intemporal, clássica, suave mas marcante, com a força que essa mesma suavidade tinha. Toda ela parecia irradiar algo que escapava à minha compreensão.

Caminhou até à sala com uma tal elegância que não parecia caminhar, antes flutuar, como se o seu corpo não tivesse peso. Sentou‑se no sofá e ficou a acompanhar-me com o olhar enquanto eu a seguia e até me sentar à sua frente.

Continuei mudo, sem saber o que dizer, esmagado pela sua presença.

– Sabes, Miguel, estou aqui para te ajudar.

Fez uma pausa, deixando-me absorver as suas palavras e como que deixando que todas as interrogações viessem à minha mente para as responder em seguida, antes que tivesse hipóteses de a formular.

– Claro que entendes que, como em qualquer relação humana, nada é isento de interesse, por mais altruísta que este seja. Tenho as minhas razões, que perceberás mais tarde. Não obstante, e apesar delas, vou-te ajudar, vou-te dar a história acerca da qual vais escrever e que te deixa tão desesperado. Aliás, só o simples facto de me teres visto esta tarde na praia já fez com que começasses a escrever qualquer coisa, não foi?

Assenti com a cabeça.

– Bem, mas por esta altura deves estar curioso acerca de quem eu sou, não é?

Assenti novamente.

– Pois bem, Miguel, chamo-me Lilith.

8 comentários:

  1. Bem, Gil, vou directa ao ponto! Li o prólogo e o I capítulo desta história.
    Tenciono ler os seguintes, mas, por favor, não ensarilhes demasiado o enredo, senão não vou entender nada.
    O meu poder de raciocínio e capacidade de apanhar no ar, o que fica nas entrelinhas. já não é o que era. :)
    Mas, sim, fiquei feliz por te ver voltar à escrita no blog.

    Um abraço e tudo de bom.

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    1. Isto não é um voltar. É o meu primeiro romance publicado. A editora já nem existe, não sei se o livro ainda anda por aí disponível, mas assim fica por aqui. Se gostas de história antiga, mitos e lendas, pode ser que venhas a gostar. Obrigado e Bjs

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  2. Histórias mágicas, lendas e mitos apaixonam-me. Se o romance se baseia nisso vai ser a cereja em cima do bolo para esta fã da sua escrita.
    Abraço e saúde

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    1. É baseado numa série de lendas que tem relação com esta personagem bíblica, que atravessam diversas civilizações. Por isso... ;) Enorme abraço, Elvira :)

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  3. Gostei de descobrir que tenhas editado um livro e gosto deste teu lado: meigo e excitante!

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    1. Até editei mais que um... Este foi o primeiro :) Bjs :)

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  4. Olá, aqui estou eu a reler esta história fantástica. Sem mais, até já, que tenho pressa de pôr a leitura em dia :)

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!