quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Lilith - XIV - A lenda Suméria

Uma e vinte e quatro da manhã.

Da varanda do meu quarto conseguia ver a cidade a estender-se em direcção ao rio. Tinha chovido há pouco e havia um brilho no ar, quase surreal, fruto da humidade no ar e do reflexo das luzes no alcatrão molhado.

Fumava o meu cigarro e pensava na cadeia de acasos e na improbabilidade da mesma. Ria-me por dentro. Sabia perfeitamente que ela me arrastara para Lisboa para isto, para destruir em mim a imagem daquela mulher que tantas sequelas deixara. Era curioso como num espaço tão curto de tempo ela passara a ser apenas um caso caricato, por oposição a uma história de vida. Lilith operara em mim uma catarse.

No entanto, não deixava de ver com estranheza as coincidências e estas não paravam de vir ao meu pensamento, criando-me inquietação e desassossego. Com quem é que eu estava a lidar afinal?

Ela chegou à varanda, tirou-me o cigarro da mão e deu uma passa longa e devolveu-o em seguida. Expirou lentamente o fumo e disse:

– Um cêntimo pelos teus pensamentos.

– Não valem assim tanto…

– Então oferece-mos…

– Pensava simplesmente em quem és tu na realidade. Se és quem afirmas, se não és. E ainda que o sejas, como é que te posso distinguir de entre as lendas à tua volta?

– Podes fazê-lo conhecendo as lendas primeiro e depois ouvindo‑me para teres a minha versão dos factos. No fim escolhes em quem acreditar. Sabes, a lenda bíblica não é a mais antiga escrita sobre mim.

– Não?

– Não. É talvez a que chegue mais perto em termos concretos, mas não é a mais antiga. Anda comigo.

Segui-a até à sala onde estava o portátil. Ela abriu-o, fez uma pesquisa rápida na internet e virou o portátil para mim.

– Aqui tens. És fluente em inglês, por isso não vais ter problemas em ler isto.

– E isto é?

– A mais antiga lenda sobre mim. O mito sumério.

Sem mais, dediquei-me a ler.

 

«Antes de as estrelas terem nascido

Antes de as pessoas terem construído grandes cidades

A grande montanha de Atlen (paraíso) tremeu

E sangrou sangue ígneo

E deu à luz Lilitu

 

A terra em toda a volta ardeu

Muitos animais e pessoas morreram

Quando Lilitu abriu os olhos

Viu as cinzas do seu nascimento

E chorou lágrimas como chuva

 

As lágrimas de Lilitu tornaram-se rios e ribeiros

Flores cresciam onde Lilitu andava

Árvores cresciam onde Lilitu se sentava

As cinzas tornaram-se solo fértil

E um pomar tornou-se a sua casa

 

No pomar de Lilitu muitos animais são

Pessoas vieram viver no paraíso

Lilitu deu-lhes grão e ensinou-os a semear e colher

Lilitu fez pão e cerveja

As pessoas rejubilaram, comeram e beberam

 

Um dia um grande príncipe chegou à terra de Atlen

Ele viu Lilitu e galanteou-a

Mas Lilitu rejeitou-o e desprezou-o

O grande príncipe ficou muito irado

Ele emboscou dois leões e matou-os

 

Lilitu chorou pelos leões

Embalou as cabeças deles nos seus braços

Os leões despertaram às lágrimas dela

Lamberam as lágrimas da sua face e ficaram fortes

Ficaram amigos leais de Lilitu

 

O grande príncipe viu isto

E novamente a galanteou

Mas ela transformou-se num pássaro

E voou para longe dele

Irado, o príncipe começou a caçar pássaros

 

Lilitu viu isto e ficou perturbada

Para ofender o príncipe ela cuspiu-lhe

E acasalou com uma serpente

Lilitu deu à luz muito depressa

A criança dela era como nenhuma outra

 

A criança tinha seis braços

A criança tinha o rabo de uma serpente

A criança era muito forte

Lilitu chamou à criança um Marilitu

O Marilitu atacou o grande príncipe

 

O grande príncipe e o Marilitu lutaram

Lutaram dia e noite

Noite após noite

E dia após dia

Mas nenhum dos dois podia ganhar a luta

 

Lilitu viu isto e acasalou novamente

Outro Marilitu nasceu

E outro e outro

Duzentos e dezasseis nasceram

Temeroso o grande príncipe fugiu

 

As pessoas do pomar rejubilaram

Os Marilitus cultivaram a terra

Os Marilitus protegeram as pessoas

Mas o grande príncipe jurou vingança

E amaldiçoou a montanha Atlen e sua terra

 

Atlen ficou irado com esta maldição

A montanha e a terra tremeram

Atlen tremeu e sangrou e chorou

Seu sangue ígneo fez fogos

E suas lágrimas fizeram inundações

 

Lilitu amedrontada transformou-se num grande pássaro

Agarrou as pessoas nos pés

Levou os animais nas suas costas

Os Marilitus e os leões também levaram pessoas

Juntos fugiram da terra de Atlen

 

Lilitu foi a ocidente e a oriente

Lilitu foi a norte e a sul

Finalmente ela veio para terra seca

As pessoas agradeceram grandemente a Lilitu

As pessoas construíram estátuas em honra dela

 

Lilitu chorou sua casa perdida

As lágrimas dela formaram dois rios

Os rios uniram-se

E fluíram para o oceano

As pessoas cultivaram grão nas margens do rio

 

As pessoas cultivaram grandes pomares

Eles construíram edifícios e torres de pedra

As pessoas cresceram saudáveis e a terra rica

Comerciantes vieram de sítios distantes

Notícias da riqueza da terra cresceram

 

O grande príncipe ouviu falar da terra

Ele enviou os seus arautos para indagar de sua senhora

Mas Lilitu alimentou seus leões com os arautos

O grande príncipe enviou um exército

Mas os Marilitus destruíram o exército dele

 

Finalmente o grande príncipe foi

Quando ele viu os pomares lindos

Quando ele viu os Marilitus de seis braços

O grande príncipe soube que a senhora era Lilitu

Temeroso disfarçou-se de mulher

 

O grande príncipe foi ao templo de Lilitu

O seu disfarce enganou as pessoas

Mas os leões conheciam o seu cheiro

Os dois leões advertiram Lilitu

E ela preparou uma armadilha


Lilitu chamou trinta e seis homens jovens

Encheu uma sala com trinta e seis travessas prateadas

Ordenou a morte de trinta e seis animais

E quando estava pronta

Convidou as pessoas ao banquete

 

Pessoas vieram de toda a terra

O grande príncipe também veio

O grande príncipe chegou disfarçado

Mas Lilitu conheceu-o

E deu-lhe as boas-vindas como um convidado honrado

 

O grande príncipe aceitou a hospitalidade dela

Sentou-se diante de todas as pessoas

Os trinta e seis homens jovens foram chamados

«Por favor escolha um homem», Lilitu ordenou

Não querendo ser rude o grande príncipe escolheu um

 

Lilitu pediu ao grande príncipe para sentar ao lado do jovem

As travessas prateadas foram trazidas

As pessoas festejaram na carne dos trinta e seis animais

Grandes presentes foram trazidos

Lilitu deu-os ao grande príncipe

 

Confundido o grande príncipe aceitou

Então o banquete acabou finalmente

Curioso, o grande príncipe questionou Lilitu

«Você dá sempre tais grandiosos presentes a estranhos?»

«Só no seu casamento», Lilitu respondeu

 

Ao perceber o que tinha acontecido o grande príncipe ficou irado

Tirou o disfarce

Empunhou a espada e o punhal

«Por que me fez casar com este homem?» perguntou

«Para que nunca possa casar-se comigo», respondeu Lilitu

 

Enfurecido o grande príncipe atacou Lilitu

Os dois lutaram incansavelmente pois Lilitu era muito forte

Sempre que o príncipe se tornava mais ousado

Lilitu transformava-se num pássaro

O grande príncipe caiu ao chão e chorou em desespero

 

O grande príncipe professou o seu amor por ela

Prometeu que nunca a deixaria

Preparou-se para cortar a sua própria garganta

Finalmente Lilitu cansou-se deste jogo

Sentia piedade pelo grande príncipe

 

«Eu conceder-lhe-ei um beijo», declarou Lilitu

Desesperado o grande príncipe aceitou

E no momento em que o beijo foi dado

O corpo dele inundou-se de vida e depois morte

Tão grande foi o prazer de um beijo que ele morreu

 

Lilitu chorou o grande príncipe

Mas o grande príncipe permaneceu morto

Lilitu entristecida soube que nunca poderia amar

Nenhum homem mortal poderia provar o beijo dela e viver

As suas lágrimas trouxeram vida, mas o seu beijo trouxe morte.»

1 comentário:

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