sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Lilith - IX - Plenitude

Meio-dia e dez.

– Mas se Yahvé não é Deus, quem é ele então, afinal? – Perguntei.

– Isso é uma excelente pergunta para responder a seguir ao almoço – respondeu-me num tom brincalhão. – Tens alguma coisa que não seja cozinhado em microondas?

– Por acaso acho que não.

– Bahhh! Como é que consegues passar este tempo todo a comer essas porcarias?

– Bem, preguiça e uma certa inaptidão para a cozinha…

– Típico, sem dúvida. Onde é que podemos comer uma refeição decente nas redondezas?

– Creio que se pode arranjar qualquer coisa na vila, a uns dez quilómetros daqui.

– Então, vamos.

– Mas tenho o frigorífico cheio, qual é a necessidade?

– Despacha lá a tua preguiça e deixa a curiosidade de lado por um bocadinho. Vamos comer comida decente. Eu detesto comida pré‑cozinhada. E aproveitamos e passamos por um supermercado qualquer e compramos comida de gente.

– Estás a pensar mudar-te para cá?

– Por uns tempos… – E dito isto, lançou-me um olhar capaz de derreter o mais empedernido dos homens – Porquê? Não queres?

Depois da maneira como ela me olhou, era impossível qualquer homem dizer que não. Acho que naquele instante, naquele preciso momento, consegui perceber o poder que esta mulher tinha. Se ela queria uma coisa, era impossível negar-lha.

– Tenho alguma hipótese de refutar? – Perguntei eu num tom entre o vou-fingir-que-me-resigno-à-tua-presença-como-se-me-importasse e um espicaçar para obter uma resposta dela.

– Não.

Um não resoluto e simples e com isto a relação entre nós estava normalizada.

Arrancámos para a vila. Por onde quer que passássemos, havia sempre olhares com um misto de emoções. Em primeiro lugar, quando a olhavam e reparavam que ela usava um vestido leve, de Verão, muito solto em pleno Inverno. Andava assim no meio de gente agasalhada com camisolas de lã de gola alta e blusões impermeáveis.

Claro que, além disto, havia não só o corpo que se notava, mas uma imponência, uma altivez que fazia com que ela estivesse num patamar acima de qualquer um dos outros mortais. Curiosamente, o desejo que eu não sentia por ela era patente nos rostos de todos os homens, sem excepção, com quem nos cruzávamos, e no de algumas mulheres também. As que não sentiam desejo ficavam com os olhos inflamados de inveja.

Apercebi-me pela primeira vez da anormalidade da situação. Também eu devia olhar para ela assim. Era a criatura mais bela que eu já tinha visto e, no entanto, para lá da admiração pela pessoa e da apreciação do lado estético, nada mais havia.

Chegámos a um restaurante comigo ainda a pensar nisto. Sentámo-nos.

O empregado veio, solícito e meio atrapalhado. Anotou os pedidos e retirou-se. Não me contive.

– Posso fazer-te uma pergunta?

– Bem, uma vez que isso era uma, já fizeste. Devias ter perguntado se podias fazer duas – disse com uma gargalhada – Mas podes, sim, diz.

– Vejo a maneira como todos os homens te olham e acho perfeitamente natural.

– Eu também.

– Mas também acharia natural eu olhar para ti dessa forma.

– Mas não olhas.

– Certo. Porquê?

– Porque temos algo para fazer e não te podes distrair com essas coisas. Era mau. Atrasava-nos.

– Mas então porque é que todos olham para ti deste modo? Aliás, indo mais longe, o que levou a que aquela mulher te beijasse daquela maneira e tivesse aquela atitude?

– Ainda não percebeste?

– Francamente, não.

Ela respirou fundo. Olhou-me fixamente.

– Queres perceber?

– Quero. É algo que me faz confusão.

– Está bem.

E conforme ela disse isto, o mundo pareceu desaparecer à minha volta, restando apenas ela à minha frente. Aquela presença que eu admirava tornou-se avassaladora. O resto do mundo deixou de importar. Só havia ela e era linda, sublime. Apercebi-me de que naquele instante me apaixonara por ela, mas com uma força e intensidade que eu julgava não possuir. Todas as outras mulheres que eu amei se tornaram pequenas, ali, naquele momento. E esta sensação fez-me sentir pleno. Cheio. Capaz de mover o mundo ao seu pedido. Se ela me tivesse pedido a vida naquele instante, eu dava-lha de bom grado e sentir-me-ia gratificado por isso.

E de repente, tal como a sensação apareceu, desapareceu em seguida, deixando-me com algo parecido com uma recordação quente e doce de um amor esquecido. Mas ela já não era gigante e o mundo tinha voltado ao seu lugar.

– Percebeste? – Perguntou-me.

– Senti, mas não consigo racionalizar.

– Eu digo-te. Eu sou a parte que se perdeu de Adão. O feminino que vem de Eva é feminino só no sentido de que também Adão tinha uma parte feminina, assim como eu tenho uma parte masculina. Mas eu sou o verdadeiro feminino. E quando to demonstrei, tu sentiste-te finalmente completo, não foi?

Esta constatação atingiu-me com a força de uma parede ao cair. Ela continuou.

– Sabes, a grande busca da humanidade é por mim. Não por mim enquanto pessoa, mas por aquilo que eu sou. E é para tentar preencher este vazio que as pessoas se voltam para todo o lado, se enchem de espiritualismo ou de bens materiais ou seja lá o que for. Mas o vazio nunca é preenchido, as pessoas nunca se sentem plenas. E querem sempre mais e mais, numa tentativa de me encontrar. Mas não encontram. Procuram no sítio errado.

Compreendi-a perfeitamente. Era fácil tentarmos, cada vez mais, atulhar as nossas vidas com ideologias, algumas delas decadentes, ou objectos sem nexo, na busca de um conforto que nunca encontrávamos, mesmo no meio do mais fausto luxo. E ainda assim, não conhecendo a alternativa, persistíamos. Entendi a reacção da mulher que a beijou, quando ela a largou. Teve, por um momento, um vislumbre da sua própria totalidade, só para se sentir dilacerada a seguir, e a sua vida não seria, nunca mais, a mesma.

Mesmo a minha, apenas por estes breves instantes, parecia ter ganho qualquer coisa, como se houvesse algo diferente em mim, uma segurança que começava a instalar-se.

E pela primeira vez surgiu com clareza a pergunta:

- E se esta mulher for quem na verdade afirma ser?

1 comentário:

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!