terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Lilith - VI - Deusa

 Uma da manhã.

Estávamos já no meu refúgio.

O caminho de volta tinha sido feito no mais absoluto silêncio. Continuava a pensar e a rever o que se tinha passado vezes sem conta, tentava perceber. Havia algo que me escapava. Cada vez que olhava para ela, sentia que a resposta estava ali, à distância de um toque. No entanto, como até aqui, mas sobretudo agora, não conseguia tocar-lhe.

Durante o caminho o olhar dela vagueava sempre para longe de mim. Se no meu silêncio não lhe fazia perguntas, acredito que os meus olhos estivessem carregados delas.

Quando entrámos ela encheu um copo com vinho e saiu para o terraço. Eu fiquei. Havia algo nela de diferente. Sentia-me verdadeiramente intimidado e sem ter a mínima ideia de como lidar com ela. Ela podia ou não ser quem afirmava, mas era, com toda a certeza, alguém muito especial, alguém diferente.

Ao fim de algum tempo, decidi ir ter com ela. Olhava para o mar. Estava frio, mas isso não parecia incomodá-la minimamente. Não fazia a mínima ideia de como a abordar.

– Estás bem? – Acabei por perguntar.

Ela continuou de costas para mim, sem me dar resposta. Acabei por me sentar e esperei. Ao fim de algum tempo ela virou-se, finalmente.

– Desculpa – disse.

– Por…

– Por te fazer ver aquilo.

– Então porque o fizeste?

– Porque a tua curiosidade acerca de mim era pelo que vês, uma mulher, pela graciosidade, pelo meu porte. Era pelas pequenas histórias e indícios que te dei até agora. Mas eu quero mais do que isso, sabes. Eu quero que ouças o que te vou dizer, não com uma curiosidade infantil, quase, mas sim com ouvidos de ouvir. Quero que tenhas atenção às palavras e não te disperses. Quero que percebas que o que te vou dizer pode ser a verdade, e se for vais ser a primeira pessoa a ouvi-la em muito tempo. Quero que a escrevas, quero que a passes adiante.

– Era isso que querias dizer quando me disseste que a tua presença não era isenta de interesses?

– Era.

– E porquê?

Ela respirou fundo antes de continuar. Virou-se de novo para o mar. Encostei-me ao corrimão ao seu lado. Ela sorveu mais um pequeno gole do vinho e continuou.

– Sabes, estou cansada. Cansada de ver o meu nome a ser apagado, de tentarem fazer com que eu não exista, de ser considerada um demónio, uma assassina de crianças. Antes divertia-me, sabes? Mas já não. Já chega.

Mantive o meu silêncio sem saber o que lhe dizer. Sentia a sua tristeza a apenas conseguia ficar ali, solidário. A minha presença era o sinal de que a respeitava e de que estava com ela, quer acreditasse ou não. E sabia que o facto de eu acreditar não era importante para ela. Já a presença parecia ser.

Sentia a humidade da noite entranhar-se-me na pele até aos ossos, e ela estava ali apenas com um vestido leve. Tirei o casaco para lho pôr pelas costas. Ela aproveitou o meu movimento e aninhou‑se nos meus braços.

– Não penses… – disse –, não perguntes, abraça-me, só.

Toquei-a pela primeira vez, senti o seu corpo contra o meu, envolvi-a, e a sensação mais estranha apoderou-se de mim. Uma sensação de que algo em mim se completou, uma plenitude, uma paz indescritível. Pela primeira vez tive vontade de acreditar nela e com isto apetecia-me prostrar-me aos pés dela e prestar-lhe homenagem.

Apertei-a ainda mais contra mim, olhei para ela. As lágrimas corriam-lhe soltas pelo rosto e eu senti a sua dor dentro de mim. Ao fim de pouco tempo saiu dos meus braços, limpou as lágrimas, respirou fundo, recuperou toda a sua altivez e eu fiquei com a sensação de ter presenciado algo de raro e precioso. Um momento de fraqueza de uma deusa.

– Vamos para dentro – disse-me –, este frio ainda te faz mal – dirigiu-se para o interior. – Anda, vem – e agarrou-me pela mão. Eu segui-a.

Sentou-se no sofá e fez-me sentar ao seu lado.

– Eu sei que tens muitas perguntas, sei o que me ias pedir, mas agora faço-te um pedido, pode ser?

– O que quiseres e que eu possa.

– Isto podes. Por hoje, por agora, sê apenas meu amigo. Faz-me companhia. Sem perguntas, sem deuses nem demónios, sem mundo. Fazes isso?

– Faço.

E com isto ela deitou-se ao comprido no sofá, aninhando-se no meu colo.

– Obrigada – disse.

Fui-lhe acariciando os cabelos enquanto ela deslizava para o sono.

Ao fim de algum tempo senti-me também quase a adormecer. Consegui, com algum cuidado, levantá-la e levá-la ao colo até ao quarto onde a deitei, na minha cama.

Depois fui até ao terraço. Fumei um cigarro e deixei que as minhas questões se diluíssem no fumo. Por fim, deitei-me no sofá e senti o torpor do sono a invadir-me.



4 comentários:

  1. Olá, Gil!
    Acho que este conto já passou por aqui há uns anos atrás. Verdade?
    Há partes que me são conhecidas, e outras não!
    Provavelmente não li os episódios todos quando por cá andou.
    Tu o dirás!
    Beijo e que tenhas uma boa semana.

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    1. Para te ser franco, não sei se andou por aqui... Andou por outros lados mais antigos, mas esses já não existem... :) Beijos :)

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  2. Lido mais um episódio. Contrariamente à Janita eu nunca li esta história. Penso que se isso acontecesse me lembraria.
    Abraço e saúde

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    1. Elvira, como eu disse à Janita, creio que andou por outros sitios mais antigos, mas não creio que neste. Espero que esteja a gostar da história (que ainda agora vai no começo). Enorme abraço

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!