quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Lilith - IV - Criador

Dezanove horas.

Bateram à porta. Desta vez abri com confiança e não estranhei vê‑la ali. Ela olhou para mim e sorriu.

– Trouxe vinho – disse, num tom jovial. – Convidas-me para jantar?

– Bem, se trouxeste o vinho…

Fomos até à cozinha. Ela caminhou com a mesma graça, com a mesma leveza.

– Espero que sejas um bom cozinheiro… – disse-me.

– Tenho um microondas – respondi.

– Tens noção de que isso não é muito impressionante?

– Tens noção de que não estou a tentar impressionar-te?

– Será?

– É.

– Acredito em ti.

Tirei a comida das formas de alumínio para os pratos que pus a aquecer no microondas enquanto abria a garrafa para deixar o vinho respirar.

– Tenho muitas perguntas para te fazer – disse-lhe.

– Calculo que sim, mas primeiro jantamos. Vais ver que o vinho até ajuda e pelo menos não te dá a dor de cabeça que aquele whisky te deu.

Olhei para ela. Apetecia-me perguntar-lhe como é que ela sabia disso, mas resolvi seguir a sua indicação e deixar as perguntas para depois do jantar.

Jantámos cedo e fomos falando de trivialidades. Depois saímos para o terraço com os copos de vinho na mão e sentámo-nos apreciando o princípio da noite, que estava amena.

Apetecia-me bombardeá-la com perguntas, mas contive-me. Foi ela que iniciou as hostilidades.

– Então? – Começou. – Encontraste-me?

– Depende. – Fiz uma pausa para organizar as ideias. – Sabes, toda a razão me diz que é impossível aquilo que me contaste, logo não posso acreditar que sejas quem afirmas ser.

– E no entanto, bem lá no fundo, subsiste a dúvida que te deixa curioso, não é? E se eu for mesmo? Como é que posso saber que o whisky te deixou com dor de cabeça, como é que podia saber no meio de centenas de livros onde estava aquele, especificamente, como é que sabia que tinhas escrito meia dúzia de linhas depois de me veres na praia? Aliás, como é que eu sabia que me tinhas visto? Isto tudo são perguntas para as quais não tens resposta e que te deixam a dúvida. Mas eu não estou aqui para te dar certezas. Acreditas no que quiseres acreditar.

Assenti.

– Também tens que perceber que, caso sejas quem afirmas, nada do que li acerca de ti é muito elogioso.

Ela riu.

– Claro que não é. Não se pode dizer que tenha uma personalidade muito fácil…

– Personalidade difícil até compreendo, mas súcubo? Demónio da noite? É um pouquinho mais à frente…

– Sabes, quando olha, hoje em dia, para uma mulher totalmente independente e livre ainda o fazes com desconfiança. Agora transpõe isso para há sete mil anos atrás em sociedades totalmente controladas por homens e diz-me o que achas que seria normal acontecer. E olha bem para mim. Pareço-te alguém que anda a roubar os espíritos de criancinhas na noite?

– Dizem que o diabo é charmoso.

– Seria, se existisse.

– E não existe?

– Não.

– Mas Deus existe.

– Claro que sim.

– E foi ele que te criou…

– De certa forma, sim.

– De certa forma? Disseste-me que acordaste e viste Yahvé, e disseste que era um pai para ti…

– Era, não. É. Mas não te disse que ele era Deus. Nem sequer ele alguma vez me disse que era Deus. Ele disse-me que era o criador.

– Então quem é Deus?

– Isso é uma pergunta para a qual ninguém tem uma resposta. Nem mesmo Yahvé. Que é para ti Deus?

– Para mim? Bem, Deus é uma força eterna, omnipresente, omnipotente…

– Pois, mas isso não diz grande coisa acerca d’Ele, pois não? Não revela propriamente traços de personalidade.

– É verdade.

– Então digo-te isto. Deus é tudo. E nessa capacidade também tu e eu e o ar que nos rodeia e o mais e os micróbios e os átomos e as estrelas e o universo inteiro são Deus. Quer isto dizer que, à partida, és divino por natureza e por inerência. Não precisas de fazer nada para o ser. Simplesmente és, tal como Deus simplesmente é.

– Então quem é Yahvé?

– É o criador.

– E o criador não é Deus?

– Não. Ser chamado de Deus não implica que O seja.

Fiquei um bocado a remoer na lógica disto tudo. Sem dúvida que havia coerência no que ela me dizia e uma certeza dada pelas suas respostas rápidas que não deixava de me surpreender. Ela não precisava de pensar para me responder, simplesmente respondia com a certeza que só é dada pelo conhecimento.

– Ainda tens a Bíblia à mão? Vai buscar. Quero mostrar-te uma coisa.

Fui e voltei rapidamente. Ela pegou-lhe e abriu-a precisamente na página que procurava.

– Lê o versículo 22.

O livro aberto era novamente o «Génesis», e o versículo indicado rezava:

«Então disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente, …»

Olhei-a.

– Agora lê o versículo 11.

Li.

«E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?»

Ela olhou-me.

– O que é que achas de estranho?

– Bem, se queres que te seja franco, nada.

– Então olha e lê. Se Deus no versículo 11 fala na primeira pessoa, porque é que em 20 fala no plural? A não ser que fale com alguém igual a ele, não é? «Eis que o homem é como um de nós.»

– Queres dizer que há mais do que um Deus?

– Não, quero dizer que há mais do que um criador.

2 comentários:

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!