quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Chuva - XVI

 

Ele foi-me levar a casa. Chegamos perto das duas da manhã. Mais uma vez, à despedida ele reafirmou “Prepara-te. Amanhã o dia vai ser diferente.”

Eu fiquei a olhar para ele, como se não entendesse. Ele fez um sorriso condescendente, mas ao mesmo tempo preocupado. Voltou-se para mim e disse “Se tiveres problemas telefona-me”.

Despediu-se de mim com um aperto de mão caloroso, da parte dele. Tinha que bloquear o que sentia ao tocar-lhe.

Porque é que as pessoas precisam tanto do toque, da proximidade? Parece que toda a gente anda completamente agarrada e obcecada pelo corpo, como se o corpo em si fosse algo mais do que uma ferramenta para o cérebro. As pessoas, em vez de se preocuparem com a aparência, com a idade, com o aspecto, ou seja, basicamente com tudo aquilo que demonstram aos outros, deviam preocupar-se em alimentar o cérebro. Se calhar se o fizessem não precisariam tanto de demonstrar algo que não são, seriam apreciadas por aquilo que são na realidade e não andariam tão esfomeadas de algo que nem sabem o que é. Não achas?

É que sabes, e desculpa este aparte, mas acho que tem a ver com o que te estou a contar agora, as pessoas quando demonstram ser algo que não são tem de se esforçar, estar constantemente a julgar as suas próprias atitudes. E não me digas que não. Eu sei que sim. Faço-o todos os dias.

Mas há sempre uma altura em que, por um motivo qualquer, a sua verdadeira natureza vem ao de cima e destrói a ilusão que elas próprias criaram acerca de si.

Quando vejo alguém demasiado produzido, seja homem ou mulher, sei logo à partida que essa pessoa é insegura.

E depois já reparaste que há aquelas pessoas que passam por ti na rua, não se vestem segundo a moda, não se produzem, e no entanto parece que, na sua simplicidade, tem algo que chama a atenção, que torna impossível não olhares? Essas são pessoas seguras de si próprias. Não precisam de artifícios para se mostrar a ninguém.

Não é que eu achasse o Fernandes uma pessoa insegura, antes pelo contrario, para te ser franco. Mas depois há esta coisa do toque cultural, do cumprimento.

Entrei em casa e deitei-me. Não estava cansado, e ainda tinha até de madrugada para pensar bem em como agir no dia a seguir. Estavam lá câmaras de televisão, portanto a minha cara já se tinha espalhado pelo país inteiro. E agora?

Também, que raio tinha o miúdo de ir fazer para o meio de lado nenhum? De que é que ele andava ali à procura?

Adiante.

O que é certo é que eu sabia que as pessoas viriam ter comigo, quereriam falar comigo, cumprimentar-me tocar-me…

…e não era por ter salvo alguém, não! Era porque, além disso, apareci na televisão.

A caixinha da verdade. Se estava lá, na caixa, então era verdade. Já ninguém se dava ao trabalho de pensar e formar uma opinião, coisa que eu compreendo. Afinal, os programas de informação tem coisas chamadas de “opinion makers”, termo este que é muito mais importante do que seria se estivesse traduzido em Português, porque, admitamos, “fazedores de opiniões” não é a mesma coisa. E estes tipos são pagos para pensar por todos nós. Claro que podem estar três ou quatro no mesmo programa e cada vez que um fala nós damos-lhe razão. Todos eles falam tão bem…

Sabes, eu acho que qualquer pessoa que tome uma posição acerca de um determinado assunto sem saber tudo o que há a saber acerca desse assunto é estúpido. O termo pode parecer-te forte, mas é o que eu acho. Ninguém é dono da verdade. As pessoas deviam ouvir tudo o que há para ouvir, deixar as coisas andarem às voltas nos neurónios por um bocado, e depois formar uma opinião.

Mas, ao fim ao cabo, porque dar-se a esse trabalho quando alguém paga a alguém para fazer isso por elas?

Mas a grande verdade é, nesta época de desinformação pura onde só nos chega aquilo que querem que nos chegue, como é que se pode formar uma opinião isenta?

Mas desculpa, estou a divagar…

Chuva - XV

 

Sim, eu próprio fiquei surpreendido com a minha resposta. Mas acho que a dei porque percebi que o meu objectivo de estar ali se prendia precisamente com a necessidade de expor o que se passava.

Claro que fui bombardeado com todas as perguntas que seriam lógicas em seguida. “Revelado? Por quem? Pelo quê? Como?” mas depois de dar a resposta fechei-me novamente. Não respondi a mais nada. O médico olhava para mim com surpresa e ao mesmo tempo com um ar de quem tenta descortinar motivos ocultos por detrás das minhas acções. Tinha de ter cuidado com ele. Muito cuidado.

Foi ele que me arrancou das garras dos jornalistas e me levou de volta para o carro. Saímos dali em direcção a Lisboa, novamente. Continuamos em silêncio por um bom bocado.

Foi quando chegamos à auto-estrada que ele se virou finalmente para mim.

“Qual foi o seu objectivo, afinal?”

Não respondi. Até porque também eu não tinha resposta. Nem eu sabia.

“Sabe, ou você é incrivelmente esperto ou incrivelmente estúpido.”

Eu pessoalmente começava a achar que a segunda hipótese era a mais consistente.

“Mas seja de que maneira for, espero que tenha consciência do que vem ai agora. Tem essa consciência?”

Claro que tinha. Aliás, tinha de tal forma que ainda não fazia ideia do que ia fazer em seguida. A minha vida ia virar-se do avesso, ia ter montes de olhos postos em mim, pessoas a fazer perguntas umas atrás das outras. A minha invisibilidade tinha-se perdido. Respondi negativamente com a cabeça.

“Pois, calculo que não tenha.”

Voltamos os dois ao nosso silêncio. Ele conduzia pensativo. Eu tentava de uma vez por todas percebê-lo. Afinal, o que levaria um homem como ele a estar aqui, agora?

Ele estava verdadeiramente intrigado comigo, isso era certo. E creio que mais ainda agora do que antes. Mas também acredito que o interesse dele fosse além da curiosidade. Era um médico, um homem de ciência…

…mas aparentemente procurava algo mais. E, de repente, ao descobrir em mim algo que desafiava a lógica, tentava perceber o que se passava, e por consequência tentava perceber-me a mim.

E nesse momento tive a certeza de que, enquanto conseguisse manter a minha mascara, poderia ter nele um aliado valioso, alguém que me serviria de escudo, que conseguiria absorver os primeiros impactos das consequências dos meus actos e assim levar a que, apesar da exposição, a minha mascara se mantivesse intacta.

“Amanhã meio Portugal vai andar à sua procura. Tem noção disso?”

“Não, doutor.”

“Porra, deixe lá a treta do doutor de lado. O meu nome Fernandes. E eu ainda nem o seu nome sei…”

“Gabriel, …” disse eu “…Gabriel Guerra.”

“Gabriel, detesto formalismos. Já basta quando tenho mesmo de os usar. Podemos tratar-nos por ‘tu’?”

“Sim.”

Ele olhou para mim e sorriu.

“Gabriel, voltando à pergunta, tens noção de que amanhã toda a gente vai querer saber quem tu és?”

Eu tinha…

…mas não queria ter.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Chuva - XIV

 

Tu desculpa eu não te estar a dar pormenores, como os nomes das pessoas, mas realmente não os registei, sabes. Não me importavam. Nem sequer queria saber.

Ao fim ao cabo fui lá, cumpri o que tinha a cumprir e pronto.

Quando chegamos o rapaz foi levado rapidamente para uma ambulância enquanto os pais se desfaziam em agradecimentos. Eu queria manter-me à parte. Como tal mantive-me o mais apático possível.

O médico dizia que apenas me tinha acompanhado e que os louros da descoberta eram todos meus. Mas as pessoas olhavam para mim, calado e ausente, e não sabiam o que me haviam de dizer.

Quando os pais finalmente partiram na ambulância junto com o rapaz o coordenador de buscas abeirou-se de nós.

“Onde é que o descobriram?” perguntou-nos. O médico olhou para mim e percebeu que eu continuaria calado. Falou por nós.

“A oeste do sitio onde a bicicleta foi descoberta.”

“A oeste?” respondeu o outro olhando para mim.

“Sim. Deve ter tropeçado e caiu num pequeno socalco. Partiu a perna e não conseguiu de lá sair.”

“Mas porque é que foram procurar nessa direcção? Não há absolutamente nada por ai…”

O médico não quis adiantar nada e encolheu os ombros. O outro percebeu que a conversa tinha acabado ali, encolheu os ombros também. “Não interessa, …” acabou por dizer “… o que interessa é que já apareceu e está bem!”

E foi com uma expressão aliviada que começou a dar ordens para arrumar tudo.

Entretanto fomos rodeados por uma muralha de jornalistas a querer saber pormenores. Mais uma vez foi o médico quem falou, dando-me todo o crédito. Logicamente que os jornalistas se chegaram a mim e me começaram a bombardear com perguntas.

Detesto-os.

Sim, os jornalistas, detesto-os. Parecem abutres a pairar por cima das carcaças dos outros, a querer alimentar-se com os restos do que os outros fizeram. As suas conquistas são as conquistas e frustrações de outros. E querem saber mesmo de tudo.

Mas foi então que veio a pergunta:

-Mas porquê procurá-lo ali?

E eu, estranhamente, dei comigo a responder:

-Porque me foi revelado.

Chuva - XIII

 

E de repente a chuva veio e com ela nova mensagem.

“Está errada a procura. Segue o sol”

Mais uma vez o sentido escapava-me. Mas desta vez já não me preocupava nem matava a cabeça com isso. Sabia que mais tarde ou mais cedo as palavras encaixariam algures.

Mas sabes, com o passar dos dias comecei a ficar apreensivo. Nada do que via parecia ter algo a ver com a mensagem e comecei a pensar que esta, se calhar, não faria mesmo sentido nenhum. No entanto a minha razão dizia-me que isso era improvável.

Então, ao fim de uns dias peguei no cartão e telefonei ao médico. Ele atendeu-me com uma voz rude, quase mal disposta, um “sim” atirado.

“Dr. Fernandes,…?”.

“O próprio.”

“Disse-me para eu lhe ligar caso houvesse mais alguma coisa…”

Ficou um silêncio do outro lado da linha. Finalmente ele disparou “Há mais algum doente meu que vai ter uma cura milagrosa?”

“Não sei!”, respondi-lhe eu “A mensagem é só – Está errada a procura. Segue o Sol.”

“E o que é que isso quer dizer?”

“Não faço a mais pequena ideia.” foi a minha resposta e a verdade é que não fazia. “Mas liguei-lhe e se fizer algum sentido para si…”

“E como é que posso contacta-lo, caso apareça alguma coisa?”

“Ligue-me para este numero.”

“Isto é um telefone fixo. Não tem telemóvel?”

“Não. Esse é o meu telefone do trabalho. Não tenho mais contactos.”

“Muito bem. Se houver alguma coisa falamos.”

Continuei à procura de algo que desse sentido à mensagem. Andava pelas ruas nos transportes atento a qualquer detalhe que lhe pudesse dar sentido. Mas nada.

Não, não me sentia frustrado. Compreendo que aches que me sentiria assim. Seria o normal. Mas eu sabia que mais tarde ou mais cedo as coisas iriam encaixar-se no sitio. Nada que acontecesse seria obra do acaso, e afinal a própria noção de tempo é algo de tão falso…

Sabes, acho que o tempo só nos aflige porque põe em perspectiva a nossa própria mortalidade, a nossa finitude e faz cair sobre nós as duvidas sobre o que há depois do fim, se é que há alguma coisa. Se calhar vem dai a nossa pressa em fazer tudo. Queremos abarcar o universo inteiro com o tempo limitado que temos…

…não achas isso uma pura estupidez?

Já eu não ligo patavina a isso. Nunca estou adiantado nem atrasado. Estou sempre onde devia estar quando era suposto estar lá. Nunca tenho nada à minha espera, nem ninguém. Quero lá saber do tempo para alguma coisa…

…nem sequer tenho um relógio.

Sim, desculpa, já estava a divagar. Voltando ao assunto.

Três dias depois recebi um telefonema do médico. “Tem visto as noticias?” perguntou-me. Claro que não. Para quê? Há realmente alguma coisa que me interesse nas noticias?

“Há um miúdo que está desaparecido na serra da Lousã há dois dias.” Continuou ele. “será que a mensagem não tem a ver?”.

O meu intimo dizia-me que sim, como se uma certeza se abatesse sobre mim. A mesma sensação que tive ao olhar para a D. Ana na paragem de autocarro.

“Creio que sim. A mensagem é acerca desse miúdo.”

“Você devia ir lá.”

“Eu? Não…”

“Devia, sim.”

“E que iria eu lá fazer?”

“O que é suposto – Encontrar o miúdo.”

“Eu nem tenho meios para lá ir…”

“Caramba, homem, não é assim tão longe…”

“Pode até não ser, mas eu tenho coisas para fazer e não tenho transporte. Logo, não vou.”

Houve um silêncio cheio de indecisão do outro lado da linha. Finalmente foi disparado um “A que horas sai?”

“Às cinco…”

“Estou ai à porta às cinco e levo-o lá.”

Compreendi que o médico sentia uma curiosidade extrema em relação a mim e queria, no mínimo, comprovar se havia mesmo alguma coisa ou não. Fazia-lhe confusão.

Às cinco lá estava ele sentado no carro à porta do meu trabalho. Entrei no carro. Ele olhou-me e fez um gesto para me cumprimentar. Eu evitei olhá-lo e retrai-me. Ele resmungou qualquer coisa e pôs o carro em andamento.

Foram duas horas de viagem em que o silêncio apenas era cortado pelos ruídos da estrada e pelo rádio que tocava baixinho. Não trocamos uma única palavra o caminho todo.

Chegamos à Lousã pouco passava das sete. Ele saiu do carro, falou com umas quantas pessoas. Eu observei de longe. Depois voltou e arrancamos novamente. Saímos da Lousã e fomos em direcção ao cume da serra. Antes de lá chegarmos paramos novamente naquilo que me parecia um parque de merendas e onde estava um grande aparato de gente.

“É aqui. Vamos.” Disse-me secamente.

Respirei fundo. Não queria estar aqui, mesmo.

As caras das pessoas estavam desanimadas e um casal em particular tinha um ar carregado. Presumi que fossem os pais do rapaz desaparecido. Acompanhei o médico quando ele foi à procura do responsável pelas operações de busca.

Quando encontramos o homem, ele tinha um ar tão desanimado como os outros todos. O médico pediu-lhe algumas informações e ele disse que não havia muitas a dar. Andavam a percorrer a serra, mas não tinham encontrado qualquer vestígio do rapaz. A única coisa que havia era o sitio onde tinham encontrado a bicicleta abandonada. Entretanto o homem perguntou-nos quem éramos.

“Apenas viemos para tentar ajudar no que for possível” respondeu o médico, perguntando em seguida onde é que a bicicleta tinha sido encontrada. Ele deu-nos a indicação do local.

O médico olhou para mim.

“Vamos lá?” perguntou-me.

Eu ia para lhe perguntar “fazer o quê?” mas contive-me. Relembrei a mensagem. Voltei-me para o coordenador das buscas.

“Posso fazer-lhe uma pergunta? Para que lado fica Oeste?”

O homem olhou para mim com uma cara estranha. Mas deu-me a indicação.

“Já agora, outra coisa: onde é que têm procurado o rapaz?”

“Temos procurado a norte daqui…” respondeu o homem.

Agradeci e segui com o médico para o sítio onde tinham encontrado a bicicleta. Quando lá chegamos constatei que a azáfama se concentrava, tal como dissera o coordenador, a norte. Ignorei toda a gente, inclusivamente o meu companheiro de circunstância, e dirigi-me para oeste. Seguimos os dois através de mata serrada no escuro da noite, em total silêncio. Eu não fazia a mínima ideia de para onde ia. Mas ia.

Ao fim de caminharmos por uma meia hora pareceu-me ouvir algo. Parei e escutei.

“Não ouviu nada?” perguntei ao médico.

“Não, por acaso não…”

Ficamos os dois à escuta. Realmente, ao fim de algum tempo chegou-me novamente um gemido ténue. Dirigi-me na direcção do ruído até chegar a um pequeno socalco com uns três metros, mais ou menos. Ao fundo distinguia-se um vulto dobrado em posição quase fetal.

Descemos o socalco e vimos o rapaz. O médico viu-o rapidamente.

“O rapaz tem a perna partida e está desidratado. Temos de o levar daqui”

Improvisamos uma padiola com uns troncos de árvore e voltamos ao ponto de partida. Não é difícil perceber a surpresa e a felicidade de toda a gente quando chegamos ao ponto de onde tínhamos partido.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Matteo Mancuso Demonstrates His Insane Technique

Chuva - XII

 

Mas sabes, ter esta consciência é…

…libertador.

Iria cumprir o meu papel, fosse ele qual fosse, sem hesitações. Afinal, aparentemente, teria de o cumprir de uma maneira ou de outra. Pelo menos tentaria ter algumas das variáveis sob controlo.

No dia seguinte passei por uma loja de material electrónico e comprei o que precisava para fazer um periférico que liguei ao computador. Era um sensor de chuva. Assim, atravéz de um “trigger” o computador gravaria automaticamente a chuva que caísse, fosse a que horas fosse, estivesse eu em casa ou não. Desta maneira garanti que nada me escaparia.

Passei a noite a construir o periférico. Felizmente não choveu.

Ocorreu-me que precisava em definitivo de um disco rígido de maior capacidade e essa foi a compra que passou para o topo das minhas prioridades.

Os dias seguintes foram mais calmos. De facto, se ainda algumas pessoas me olhavam de lado na paragem de autocarro, já poucas o faziam. Voltava ao meu anonimato, ou por outra e sendo mais especifico, à minha invisibilidade. Desapareci novamente dos olhos do mundo, tal como queria.

Entretanto comecei a delinear o que fazer caso houvesse mais mensagens. Agora que tinha decidido um rumo havia que pensar no que viria para a frente. Havia que adaptar a minha mascara a esta nova realidade e tentar calcular com o máximo de precisão possível para onde iria o rumo dos acontecimentos. Mas não era fácil. Afinal eram circunstâncias invulgares, percebes?

Estava, decididamente em território de ninguém, sem referências.

Mas então apercebi-me de que havia referência. No sítio mais insuspeito de todos.

O antigo testamento estava pejado de histórias de profetas, homens que ouviram a voz de Deus e que mesmo contra a sua vontade se sentiram compelidos a agir de determinadas maneiras. E quase todos puseram a vida em risco ao fazê-lo.

Agarrei na bíblia e comecei a ler. Comecei pelo livro do profeta Isaías. Seria, talvez o melhor exemplo.

E aos poucos fui adaptando a minha mascara e fui-me preparando para o que viria.


 

Chuva - XI

 

Quando cheguei a casa, dediquei-me a fazer a minha refeição de micro-ondas, e fiquei a remoer no que se tinha passado.

A verdade é que tinha na mão uma quase certeza de que estas mensagens não eram uma obra do acaso, e mais, referiam-se afinal a situações concretas.

O pior ainda assim era que ainda não tinha decidido como lidar com isto. O risco era grande e eu não queria expor-me, de maneira nenhuma. Mais, as pessoas a quem as mensagens eram dirigidas eram-me, tal como todas as outras, acrescento, completamente indiferentes.

Se havia realmente uma intenção, se havia algo maior a trabalhar por detrás de tudo, então porque é que esse “algo maior” não se havia de revelar a alguém que se importasse? Eu não queria saber. Mesmo. Só queria continuar com a minha vida, tal como ela era. Estava arquitectada de uma maneira perfeita, sem casos nem contradições, com confrontos limitados.

Mas o facto de esse “algo maior” se revelar precisamente a mim dava-me que pensar.

Foi rodeado de incertezas em relação ao rumo que havia de tomar que me deitei e tentei dormir. Sentia-me cansado, verdadeiramente cansado, tanto que nem me apetecia ler. Pus tudo de lado, apaguei as luzes e mergulhei no quase silêncio. Digo quase, porque era impossível não ouvir os barulhos que vinham das casas vizinhas e da rua com os carros e as pessoas a passar constantemente.

Odeio cidades. Devia viver num monte no Alentejo, ou assim. Nunca há paz, nunca há sossego e toda a gente corre para todo o lado. Mas francamente acho que já poucas pessoas sabem porque correm. Limitam-se a correr, percebes? Já não tem objectivos, mas continuam a correr. Chegam a qualquer lado e tem sempre pressa…

…mesmo que seja para não ir a lado nenhum.

É o hábito. Não faz o monge, mas faz com que o monge se pareça com aquilo que de facto é, e se não o for, pelo menos parece-o.

É curioso o quanto gostamos de nos pensar superiores e depois, quando vamos a ver bem, pouco evoluímos em relação a insectos como as formigas ou as abelhas. Estruturas sociais altamente complexas, em que cada um tem a sua função e deve saber o seu lugar. E é bom que assim seja. Elimina-se a necessidade de pensar.

Quando muito a nossa diferença é que temos uma falsa ilusão de controlo sobre o que nos rodeia, uma noção de livre arbítrio, quando na verdade o livre arbítrio é algo que não existe. Estamos tão dependentes de causas externas que, analisando bem no fundo, todas as nossas escolhas num determinado ponto do tempo podem ser estudadas e analisadas e chega-se com facilidade sempre à mesma conclusão.

Não achas? Achas que as tuas escolhas são livres?

Então segue este exemplo. Tu gostas mais de fiambre do que de salame. Logo, se tiveres fome, é provável que queiras a sandes de fiambre. Mas basta haver algo exterior a ti, como por exemplo, o facto de o fiambre ter acabado, para te levar a escolher o salame. Outro factor que te pode levar a escolher o salame é o facto de teres comido fiambre recentemente e teres a necessidade de variar.

Livre arbítrio? Não. Escolhas limitadas por factores. Não és dono de uma verdadeira liberdade. Tens quanto muito a liberdade possível num determinado ponto do tempo.

Vives, portanto, numa ilusão. És tão livre aqui como em qualquer outro lado do mundo. As tuas escolhas são sempre limitadas. Por exemplo, numa democracia, como aquela em que vives, seria lógico que a escolha de quem te governa fosse livre. E diz-me, achas que é?

Tens de escolher entre os líderes dos partidos políticos, o que limita logo as tuas escolhas. Mesmo dentro dos partidos há, com certeza, pessoas muito mais capazes de desempenhar a função, e falo de qualquer partido. Então porquê ter escolhas limitadas?

E não me fales em maiorias ou em representatividade. As massas são mais facilmente influenciáveis do que o indivíduo. Basta olhares para uma claque de futebol. Pessoas pacatas e comuns conseguem ter comportamentos animalescos quando estão integradas num grupo e fazer coisas que jamais fariam normalmente.

A liberdade é a maior das ilusões e quem se julga livre vive iludido.

Eu?

Eu sei que não sou livre. Nunca o fui. Aprendi a lidar com isso. E foi isso que me deixou ainda mais confuso em relação ao que tinha de fazer com estas mensagens que me eram dadas e com a maneira como devia lidar com elas. Sabendo que a minha liberdade de escolha é limitada e que havia intencionalidade, que não era uma mera obra do acaso, sabia que tinha de tomar uma atitude, ainda que não a quisesse tomar.

Sabendo isto, comecei a ver todas as implicações das minhas possíveis atitudes, como se estivesse a planear jogadas de xadrez na minha cabeça. Cada atitude minha levaria a uma nova cadeia de acontecimentos e, inexoravelmente, a um determinado fim. Passei a noite a analisar todas as minhas possibilidades até chegar a uma conclusão.

Mas o pior de tudo foi sentir que a conclusão a que cheguei era a óbvia, a lógica, a única que servia medianamente os meus propósitos, e que era tão óbvia e tão lógica que não tinha qualquer escolha.

Não há escolhas. Não há liberdade. Não há livre arbítrio.

E foi assim que tive a consciência de que me tornei mais uma formiga, mais um dente de uma roda dentada de uma engrenagem de uma maquina que desprezo. E foi toda esta consciência que me trouxe aqui, para diante de ti, e a ti para diante de mim.

Não é casual. Tinhas de estar aí. E eu aqui.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Chuva - X

 

Neste momento senti-me entre a espada e a parede. Se por um lado poderia dizer a verdade e isso implicaria, simplesmente, que mais ninguém, ou praticamente ninguém, me chatearia, a verdade é que se o fizesse ficaria exposto. A minha mascara desintegrava-se ali, e toda a gente olharia para mim de uma maneira diferente. Acabava-se o que meticulosamente tinha construído ao longo dos anos. Por outro lado podia manter toda a gente na ignorância. Havia pelo menos a hipótese de que a história não avançasse muito mais e tudo ficaria mais ou menos na mesma.

Optei pela que me parecia óbvia. A resposta que dei foi a lógica. “Não poderia…”.

O médico ficou a olhar para mim de uma forma penetrante, inquiridora.

“Então tem alguma explicação que me possa dar?” perguntou-me.

“Na realidade, não. Pura e simplesmente sou um mensageiro. Recebo as mensagens e passo-as quando acho que devo passar, é só isso…”.

“Mas recebe as mensagens de onde?” perguntou ele.

“Não sei.”

Este meu “não sei” confundiu-o. Olhou para mim, na esperança de que eu concretizasse algo, coisa que eu não me dispus a fazer.

“Mas ouve vozes? Chegam-lhe pelo correio? Sonha com elas?”. Permaneci calado. Mais valia não dizer nada. Se tentasse inventar ali algo, de repente, poderia dar-me mal, e criar uma mentira que não conseguisse manter mais tarde. Além disso tinha a consciência de que o meu silêncio levantaria mais questões que aquelas a que poderia responder.

Remeti-me ao meu papel.

Ele olhou para mim, desconfiado, o que me fez recolher ainda mais. Percebeu perfeitamente que não conseguiria mais nada de mim. Eu próprio fiz tensões de que isso acontecesse.

“Não deixam de ser estranhas estas coincidências…” disse ele, talvez na esperança de me arrancar mais alguma palavra, ou alguma pista que o levasse a perceber o que ele queria.

Eu, por outro lado comecei a demonstrar-me ausente e indiferente à presença dele.

Ele levantou-se por fim, sempre com os olhos pousados em mim e disse “Gostava de lhe fazer um pedido.”. eu olhei-o. “Caso receba mais alguma mensagem que se relacione comigo, ou que ache que se relacione, podia contactar-me?” e com isto entregou-me o cartão. Recebi-o de uma forma quase apática.

“Bom dia.” Disse ele virando as costas e dirigindo-se à saída. A D. Ana levantou-se para sair a trás dele, olhou para mim e murmurou mais um “Obrigada!” e seguiu-o.

Fiquei com tanta coisa para resolver…

Chuva - IX

 

Mais três dias se passaram sem que nada fora do normal acontecesse. Ainda assim, todos os dias chegava à paragem e ficava desconfortável. As pessoas que ali estavam eram sempre as mesmas, desde há anos e sentia que tinha sido notado e que me observavam com curiosidade.

Não gosto de ser observado. Mesmo.

Mas adiante. Ao fim de três dias a mulher aparece acompanhada por um homem. Era um tipo grande, com um ar algo carrancudo mas sem ser agressivo. Pura e simplesmente muito sério. Chegaram os dois ao pé de mim. O homem olhou para a mulher e ela fez um gesto afirmativo com a cabeça. O homem dirigiu-se a mim.

“O meu nome é Fernandes e queria dar-lhe uma palavrinha…” ao que me apressei a responder “Infelizmente já estou atrasado…”, mas o homem não desarmou.

“Ouça, há algum sitio onde possamos trocar umas palavras?”.

Percebi que ele ia insistir e já me bastava o que bastava. Acabei por lhe dizer

“Bem só se me quiserem acompanhar e podemos falar onde trabalho, não é longe daqui.” Ao que acederam ambos. Apanhamos o meu transporte e seguimos sem trocarmos mais uma palavra.

Durante todo o caminho, de pé, no autocarro, o homem não tirava os olhos de mim. Se é verdade que não gosto de ninguém, dele estava a gostar ainda menos. Apetecia-me dizer-lhe para olhar para outro lado, ou para tirar uma fotografia. Sempre durava mais tempo…

O que vale é que a viagem era relativamente rápida.

Cheguei ao trabalho, acompanhado por eles, dirigi-me ao meu canto, instalei-me e por fim dei-lhes atenção. Ficamos um bocadinho em silêncio. Eu esperei que eles falassem. Não perguntei nada. Não estava curioso…

O Homem acabou por falar.

“Como já lhe disse o meu nome é Fernandes e sou médico. Esta senhora é a D. Ana, e o senhor é?”

“…Alguém que não gosta de ser incomodado!”

O homem encarou-me com o mesmo ar sério, olhos carregados, mas sem uma ponta agressão, antes com uma afirmatividade difícil de encontrar.

“Vamo-nos deixar de coisas e vamos directo ao assunto. Como é que sabia?”.

A minha resposta, como podes calcular, foi cem por cento honesta.

“Sabia o quê?”

Só ai notei alguma ponta de agressividade no homem.

“Mas você está a gozar com a nossa cara?”

“Claro que não.” respondi eu “Apenas não sei do que estão a falar, mas presumo que tenha algo a ver com o que eu disse a esta senhora.”.

O homem pareceu algo surpreso, não com a minha franqueza, que era óbvia, mas com as minhas palavras.

“Você não faz mesmo ideia do que estamos a falar, pois não?” perguntou-me.

“A mínima ideia, sequer.”

“Muito bem,…” continuou ele “…como já lhe disse o meu nome é Fernandes, Álvaro Fernandes. Sou médico. O senhor falou com a D. Ana duas vezes, não foi?”

“Foi.”.

A D. Ana continuava remetida ao silêncio deixando-nos falar, mas olhando para mim de uma forma estranha, quase como que em adoração. Adoração a mim. Conceito estranho…

“Da primeira vez disse-lhe que a remissão dar-se-á e da segunda disse que se tinha dado e daria novamente e falou no quarto vinte e dois…”

“Sim,…” respondi-lhe “…foi isso mesmo.”

“Pois bem, fique sabendo que sou médico num dos hospitais desta cidade, na área de oncologia. O filho desta senhora sofria de uma leucemia grave e dois dias depois de ter falado com ela a criança começou a dar sinais inexplicáveis de melhoras. Ao terceiro dia fizemos testes e analises e a criança que estava já em estado terminal já está em casa. Houve uma remissão completa da doença.”.

Fiquei calado enquanto o ouvia e as palavras que me dizia iam afirmando as minhas suspeitas acerca da intencionalidade.

“Há três dias falou no quarto vinte e dois, e a paciente que está no nosso quarto vinte e dois, também já em estado terminal com um cancro no esófago, começou a dar sinais de melhoras logo a seguir a ter recebido o telefonema da D. Ana. Neste momento está-se a preparar para ir para casa. Remissão total, também.”

Continuei calado.

“Só por si as remissões deste género são algo de raro. Mas duas, em tão curto espaço de tempo, é algo de estranhíssimo. Mas o que mais me intriga é como é que o senhor poderia saber disto?”

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Chuva - VIII

Mas adiante.

Sabes, na semana seguinte não choveu. Ainda assim, nas raras alturas em que dormi tive sempre o cuidado de ligar o gravador, não fosse chover. Claro que tinha uma curiosidade extrema pelo que poderia vir novamente. Não acreditava que o que tinha acontecido fosse um incidente único, obra do acaso. Era demasiado complexo.

Finalmente a chuva veio e eu repeti todo o processo, usei exactamente os mesmos métodos, as mesmas chaves, e lá estava uma mensagem no meio.

 

A remissão deu-se e dar-se-á novamente. Quarto vinte e dois. Passa a palavra.

 

Fiquei novamente a olhar para a mensagem. Mais uma vez o sentido escapava-me por completo. Detesto ficar assim perdido, sem saber o que fazer, sabes. Confunde-me.

Ainda assim, segui a minha rotina, como sempre o fiz.

Nessa manhã, na mesma paragem de autocarro, a mulher que chorava parou a olhar para mim, como que para ter a certeza de que era mesmo eu. Senti o desconforto de ser observado por ela e tentei não ligar. Mas ela, já não chorosa, antes com uma expressão que irradiava boa disposição, alargou ainda mais o sorriso.

“Foi o senhor que me disse aquelas palavras, não foi?”.

Limitei-me a assentir com a cabeça, com o meu desconforto a aumentar por me começar a sentir observado por mais gente.

“Obrigada!” disse ela e com isto agarrou-me nas mãos, que eu tentei libertar de imediato. Não gosto que me toquem.

“Como é que sabia…?”.

Continuei calado. Sabia o quê? Eu não sabia nada. Apenas entreguei uma mensagem.

“Obrigada, obrigada, obrigada…” dizia ela enquanto se tentava chegar mais a mim e as lágrimas lhe começavam a correr pela face, apesar da expressão de felicidade.

Já eu tentava afastar-me sem ser demasiado óbvio. Mas fosse o que fosse que se passava com esta mulher, era obvio que a mensagem que lhe tinha dado tinha tido impacto.

Olhei para ela e percebi. As mensagens não tinham que fazer sentido algum para mim. Apenas tinha de as passar na altura devida.

Posto isto, olhei para ela e disse “A remissão deu-se e dar-se-á novamente. Quarto vinte e dois. Passa a palavra.”

A mulher olhou para mim espantada. Assentiu com a cabeça e afastou-se de imediato, pegando no telemóvel e começou a falar com alguém.

Toda a gente que estava agora na paragem tinha os olhos postos em mim, cheios de curiosidade. Felizmente o meu transporte chegou e eu segui o meu caminho…


Chuva - VII

 

Pensar num significado profundo e religioso? Porquê?

Deus?

Mas o que é que Deus tem a ver com a religião?

Compreendo a dúvida. Na prática aquilo que eu tinha tido seria uma revelação…

…mas não apareceu em sonhos, nem me foi soprada no vento. Apareceu-me de factos concretos. É verdade que a própria intencionalidade me levou a pensar em Deus. Mas chamo-lhe Deus à falta de melhor vocábulo. E não, não pensei minimamente em termos religiosos.

Se o fizesse estaria à partida num beco sem saída. Em que Deus é que teria de pensar? No dos católicos? No dos protestantes e ortodoxos? No dos Judeus? No dos Muçulmanos? Num dos milhares dos Hindus? Ou vou mais atrás ainda e vou aos panteões romanos, gregos, ou até, quem sabe, egípcios?

É-me impossível pensar em termos religiosos. Se o fizer estou sempre condenado ao inferno, de uma maneira ou de outra. Para não estar teria de acreditar nos Deuses todos, e uma vez que eles se contradizem seria impossível fazê-lo.

Pensei sim em Deus enquanto matriz do Universo. O tal que me parece promover o equilíbrio e fá-lo através desta intencionalidade que eu experimentei. Mas eu vi algo de concreto, tangível, comprovável.

Portanto não me perguntes por religiões…


 

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Chuva - VI

 

Já me lembro.

O significado continuava omisso. Havia claramente intencionalidade visto que uma vez uma palavra encontrada na cadeia os espaços eram definidos por afastamentos de cinco caracteres, isto é, contando cinco letras quer à direita quer à esquerda da palavra obtinha-se uma nova. Mas quanto ao que texto podia significar, isso escapava-se-me.

Passei os dias seguintes em busca de uma referência que pudesse por em perspectiva aquele texto. Mas era tudo demasiado vago. Não conseguia relacionar com nada específico. “A remissão dar-se-á”?

Quando chovia gravava sempre o som e tentava repetir o processo, mas, embora nas cadeias de caracteres aparecessem ocasionalmente palavras curtas, a verdade é que eram apenas palavras soltas e desconexas pelo que não havia sentidos aparentes.

Uma semana depois, ainda a minha cabeça fervilhava numa procura de uma razão para aquelas palavras, quando aconteceu.

Estava numa paragem de autocarro numa das mais movimentadas avenidas de Lisboa em plena hora de ponta e onde uma pequena multidão se aglomerava à espera de transporte. Olhei em volta, como sempre costumo fazer, para observar as pessoas que ali estavam. Sabes, divirto-me a observar as pequenas manias, os pequenos rituais…

…há sempre alguém a ouvir música nuns auriculares a um volume tão ridículo que toda a paragem houve…

…há sempre alguém a falar ao telemóvel elevando a voz de tal maneira que mais valia desligar o aparelho, que a pessoa com quem fala, independentemente da distância, ouviria na mesma…

…já para não falar em muitas vezes estar a revelar pormenores pessoais e a partilhá-los com toda a gente que está na paragem.

E foi enquanto observava tudo isto que reparei numa mulher sentada no minúsculo banco do pequeno telheiro da paragem que tentava passar despercebida e chorava de uma forma contida. Mesmo os que reparavam nela fingiam não o fazer e quase que criavam uma pequena clareira em volta dela, como se o choro dela fosse uma doença contagiosa que se pegasse por mera proximidade. É sempre tão bom ver estes exemplos de humanidade…

No entanto, nesta rua cheia a que chorava estava só por entre a multidão. Estaria à procura de luz?

Cheguei-me para perto dela e esperei que ela messe atenção. Ela, ao fim de algum tempo, olhou-me com os olhos rasos de água, notando o meu interesse e talvez procurando alguma compreensão. Não a encontraria em mim, de certeza, fosse qual fosse a razão do seu choro. Mas quando tive a sua atenção disse-lhe:

“A remissão dar-se-á”

E, em seguida virei-lhe as costas e voltei à minha rotina.

Fazia-me sentido o que se passara.

Chuva - V

 

Percebo que não me entendas. Não consegues perceber bem esta história da minha mascara, de eu me esconder. Mas diz-me, serei eu assim tão diferente de ti?

Pensa bem…

…ao fim ao cabo eu tenho o meu “eu” bem definido e delineado. E criei deliberadamente uma mascara para o esconder, porque sei que o mundo ia olhar para mim como olhas agora. Com esse misto de piedade e não entendimento, como se eu fosse algo à parte.

Mas…

…e tu?

Tu acordas de manhã e pões uma mascara mesmo antes de sair da cama, sais de casa e pões outra para que fiquem alheios a ti e para ficares alheio ao mundo. Chegas ao trabalho e pões outra, aliás, várias, consoante a pessoa a quem te diriges. Sais do trabalho e usas outra vez a de manhã até chegares a casa. Depois, se tiveres filhos usas uma para eles e outra para a tua cara-metade. Sais à noite e usas outra. Sais para casa de familiares e usas outra…

…são tantas as que usas que acho que te perdes no meio delas e que algumas se te colam à pele. Saberás tu quem és, na realidade? És uma soma de tudo isso, ou não serás nada disso?

Sabes o que eu acho? Acho que tens medo de olhar para ti, para dentro de ti e descobrires que afinal não és assim tão diferente de mim.

Eu pelo menos sou mais simples, mais honesto, e não tenho medo de me encarar, por isso tira esse olhar da tua face, olha para mim e revê-te. Olha para os teus pensamentos enquanto olhas à volta para a multidão e pensas “Mas que raio faço eu aqui…?”, “Que raio faz toda esta gente aqui…?”

Não te desprezas às vezes por seres apenas mais um dente da engrenagem? Não pensas às vezes o quanto seria interessante seres antes uma pedra para encravar a engrenagem subtilmente? Não o fazes por vezes porque o dia te corre mal e acabas por lixar o juízo a alguém igual a ti?

Quem és tu afinal para me criticar?

Tira esse olhar da tua face. Eu já te desprezo o suficiente. Não tens que te esforçar mais. Mas não me leves a peito. Eu desprezo toda a gente da mesma maneira, por isso…

Assim estamos melhor.

Onde é que eu ia?

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Chuva - IV

 

A minha mascara de normalidade requeria que eu tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra. Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem complicações.

Quando chegava à minha hora saia e tinha o martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem ensinado.

Após uma hora deste martírio chegava a casa, tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há um ano atrás.

Sabes, era uma noite de inverno como qualquer outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma ritmada.

Sempre me reconfortara este ruído. Era calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…

…mas que sentia como apenas aparente. De alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.

Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei no maior silêncio possível a gravar a chuva.

Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos, rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos. Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…

…intencional. Sim, parecia intencional.

Fiz o software tocar o que estava escrito e o computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão ao mesmo tempo que o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.

Durante o caminho para o trabalho não tirei os olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente, qualquer coisa que desse sentido.

Cheguei ao trabalho e liguei o computador. Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas, negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa assim apareceu no monitor:

 

ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógshdnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremissão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF

 

Mais uma vez procurei sentido e só então comecei a descortinar palavras no meio da confusão.

 

“Em ruas cheias a que chora está só por entre a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”

Mas embora houvesse palavras, o significado continuava omisso.

Chuva - III

 

Acho que no meio da minha indiferença ao que me rodeava a única coisa que conseguia sentir mesmo era prazer. Havia algo em mim que se deleitava ao olhar para os outros e ver a ideia que tinham da minha mascara. Dava-me um gozo enorme este jogo em que por vezes me aproximava demais de revelar algo verdadeiramente meu para depois ver a dúvida nas pessoas.

Mas as pessoas que lidavam comigo acabavam sempre por descartar a hipótese de eu ser mais do que aparentava. Afinal, num mundo de aparências, conta o que se parece ser e não o que se é.

Viam-me como um inadaptado pelo simples facto de eu não procurar estabelecer relações próximas. Toda a gente procurava alguém, menos eu. Aos vinte e cinco tive a minha primeira experiência sexual. Não me agradou nem compreendi o porquê de tanta fleuma à volta do assunto. A televisão, a publicidade, a moda, todos respiravam sexo. Era o verdadeiro motor do mundo. Era tão importante que a própria abstinência era vista como um sacrifício, sendo por isso imposta em algumas religiões. E o fundo era algo de tão primário, animal…

Além de não me agradar o acto em si, a proximidade do contacto físico com alguém causou-me repulsa. É algo de aberrante.

Foi essa a única parte que não consegui mascarar na realidade, tal foi a repulsa que senti. Nunca mais procurei chegar-me a alguém nem permiti que alguém chegasse perto de mim. Isso, sem dúvida, contribuiu para me rotularem como um inadaptado.

Mas fora isso levava uma vida normal.A

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Chuva - II

 

Lembro-me claramente daquele dia, um dia em que a chuva miudinha caia de um céu pintado em tons de cinzento-escuro. Lembro-me porque foi o último dia em que realmente senti algo. À medida que o caixão que continha os restos mortais da minha mãe descia à terra e era colocado ao lado de um outro que continha os do meu pai, lembrava-me dele e de como ele dizia “Um homem não chora…”, e apesar do que sentia por dentro, uma vontade enorme de me mandar para cima daqueles caixões e ficar ali, do pânico e do medo do que viria a seguir, da solidão que me invadia, aquelas palavras ressoaram em mim, como um ultimo recado, e as lágrimas secaram nos meus olhos e quis, com toda a força do meu ser, deixar de lado todos aqueles sentimentos. E consegui. Tinha sete anos e foi a última vez que chorei.

Não olhes assim para mim, estou apenas a relatar um facto como qualquer outro. Não espero simpatia ou qualquer outro sentimento da tua parte.

Fui viver com uma tia que tinha já três filhos e eu acabei por ser mais um encargo para ela. Percebi, mesmo antes de entrar à porta de casa que nunca teria nada de meu, verdadeiramente meu, a não ser os meus pensamentos. E resolvi não falar, não dizer nada, também porque não sentia e não havia nada para dizer. Na minha cabeça limitava-me a existir.

Claro que isto levou a uma serie de situações. Os meus primos, cujo mais novo era pouco mais velho do que eu, implicavam comigo e descobriram que podiam fazer fosse o que fosse que eu não diria nada, uma vez que não falava. Claro que abusaram da situação. Maltratavam-me, gozavam-me, na rua nem queriam ser vistos ao pé de mim e fizeram coisas com um requinte de crueldade que apenas uma criança é capaz. Ainda assim não liguei nem quebrei o meu silêncio.

Havia conforto no meu silêncio, como se por não falar houvesse algo exclusivamente meu, os meus pensamentos. O facto de não os partilhar dava-lhes uma força enorme em mim.

Foi também por esta altura que descobri os livros que lia avidamente. A minha tia ia todas as semanas à biblioteca municipal buscar livros para mim. Acho que chegou a uma altura em que nem os escolhia, já só se esforçava por trazer algo que eu não tivesse lido. Ganhou este hábito quando um psiquiatra, um dos muitos que me viu e consultou, notou esse meu interesse e disse que deveria ser encorajado.

À custa de tanto ler, as minhas notas escolares eram altíssimas, mas tinha problemas com os professores, isto já para não falar dos colegas. Mas a verdade é que tudo isto me permitiu criar o meu espaço onde eu era intocável. Era um espaço que não era físico e como tal releguei todos os espaços físicos para segundo plano.

Claro que aos poucos comecei a aperceber-me de que esta “não integração” da minha parte se poderia tornar ainda mais grave no futuro, e na minha cabeça começou a surgir a ideia de criar a minha mascara, a minha fachada, e aos poucos construi-o como uma personagem de um dos livros que lia. Demorei o meu tempo, fui metódico, vi todos os anglos da personalidade que deveria ter, e, quando me senti pronto quebrei o meu silêncio, para surpresa de toda a gente.

Na verdade não o quebrei. Eu continuava em silêncio e hoje, agora enquanto falo contigo, é a primeira vez que o quebro. Mas o facto de a minha fachada falar permitiu-me começar a ter menos problemas e não ter palermas e tentar dar nomes técnicos a coisas que não conseguiam e não conseguem entender. Só por isso valeu a pena criar a minha fachada.

A minha fachada não era brilhante, apenas se pautava pela mediania. As notas escolares desceram para níveis aceitáveis, procurando não desapontar mas não deslumbrar. As relações e as conversas que eram tidas eram as que se esperava ter. Não havia uma única demonstração de brilhantismo ou de estupidez absoluta.

E assim, aos poucos, acabei por me diluir na maré, deixar de ser uma preocupação, deixar de ser notado. Apenas tinha de me certificar que teria sempre a reacção certa no momento certo. Tinha de me rir quando contavam uma piada, mostrar choque num evento ou notícia traumática, mostrar fúria e revolta quando havia algo contra mim…

…mas a verdade é que nada disto foi alguma vez sentido. Na verdade acho que o único verdadeiro sentimento que tive alguma vez foi desprezo por tudo o que me rodeava, mas se calhar nem isso. No fundo acho que não passava de indiferença…