quarta-feira, 27 de março de 2024

Conscientização - XXVI

  

Seguiam a uma velocidade relativamente elevada pela auto-estrada e ele continuava com aquele mesmo sorriso meio enigmático no rosto, o mesmo desde o final da sua actuação, quando ele leva a mão ao bolso interior do casaco, tira a sua cigarreira de prata e lha passa para a mão.

- Não te importas de acender um? Não dava jeito distrair-me a esta velocidade…

Ela abriu a cigarreira e o cheiro da erva invadiu as suas narinas, junto com o resto do carro.

- Tens o isqueiro no bolso de fora do casaco… – e ela leva lá a mão tirando um elegantíssimo isqueiro em metal dourado. Acendeu o cigarro e deu uma passa demorada, engolindo o fumo e prendendo-o por um pouco, expelindo-o em seguida, enquanto olhava com curiosidade para o isqueiro.

- É um Zippo Blu. – Disse ele, esclarecendo-a.

Ela deu mais uma passa e passou-lhe o cigarro, que ele agarrou com a mão esquerda e levou de imediato aos lábios, puxando uma passa enquanto abria uma fresta do vidro do carro de modo a dissipar o fumo no interior. Ela colocou de novo o isqueiro no bolso dele.

Ela encostou-se no banco, recostou-se, aninhou-se, fechou os olhos e sentiu-se a vaguear por um momento. Sentia uma vontade enorme de saber o que lhe ia na cabeça, mas conteve-se. Ele deu mais uma passa e travou, passando-lhe o cigarro novamente.

- Quando é a tua próxima folga?

- Porquê? Tens alguns planos?

- Posso vir a ter. Não está nada certo…

Ainda bem que falas nisso. Estava para te dizer que precisava ir a casa nesse dia. Tenho lá algumas coisas que quero ir buscar, e dava-me jeito ir directo para lá, quando sair, se não te importares, claro.

- Não, claro que não me importo, mas quando é?

- Daqui a três dias.

- Mas se aparecer alguma coisa para o fim do dia…?

- Claro que não há problema. Era mais para me dispensares da tarde com a Andreia…

- Não há problema. Acho que a Andreia até vai gostar da folga. Ela sorriu.

- Acho que sim, vai.

Ela passou-lhe o cigarro de volta. Ele deu uma passa longa.

- Ela está diferente… disse ele.

- A Andreia?

- Sim.

- Pois, com a ginástica começa a ter o corpo mais firme, tem mais postura…

- Não era nisso que estava a falar…

- Então?

- Está muito mais assertiva. Já consegue manter uma posição firme em relação às outras pessoas. Não se intimida com tanta facilidade. Tenho-a visto a lidar com as tarefas que lhe dou com uma confiança muito grande. Não estava à espera de uma evolução tão grande em tão pouco tempo…

Ela viu ali a sua oportunidade de puxar a conversa para onde queria.

- Sim, é verdade. Tenho reparado nisso também. Ainda assim, só queria que visses a cara dela esta tarde quando me viu a ensaiar o número desta noite.

Ele levantou o sobrolho, não tirando os olhos da estrada, mas não fez qualquer comentário, ao contrário do que ela esperava. “Que sacana de um raio” pensou e como que em resposta aos seus pensamentos o sorriso dele ficou mais… trocista?!

“Estas mesmo a provocar-me!” pensou. “Mas olha que este jogo é para jogar a dois.” E com este pensamento, tirou a mala de cima das pernas e cruzou-as, passando a esquerda por cima da direita, deixando-se depois descair até encostar a cabeça no vidro expondo todo o seu lado e pondo em evidência a sua coxa e as suas pernas magnificamente desenhadas. Ele ligou o pisca, anunciando a saída da auto-estrada e levantou o pé, fazendo a velocidade diminuir, saindo depois pela rampa lateral. Já a andar bem devagar, abriu o cinzeiro do carro e apagou o cigarro, passando subtilmente a vista pela visão que lhe era oferecida, mas a sua expressão manteve-se inalterada enquanto conduzia devagar na estrada secundária.

Para sua desilusão ele manteve-se em silêncio o resto do caminho, sem que no entanto o sorriso lhe deixasse os lábios.

Saíram do carro na garagem e sentiram de imediato o ar quente e abafado da noite, puro contrate com a temperatura controlada dentro do SLS. Dirigiram-se à porta das traseiras e quando estavam prestes a entrar ele perguntou:

- Estás cansada e queres ir deitar-te já ou queres beber alguma coisa?

- Não, estou bem. Um bocado “lá em cima” mas estou bem. Posso fazer-te companhia.

- Não quero que te sintas obrigada a ficar.

- Não, não sinto. Ele sorriu.

- E o que vais querer? – Perguntou ele enquanto ela pousava a mala numa cadeira e se sentava numa espreguiçadeira.

- Aquilo que tu fores beber.

- E queres correr novamente esse risco?

Ela pausou um pouco, tentando fazer um ar pensativo mas divertido.

- Ontem acabei por não me dar assim muito mal, que me lembre. Ele franziu o sobrolho, divertido também.

- Como queiras. – Disse, retirando-se, e deixando-a esticar-se na espreguiçadeira. Ela, fazendo jus ao nome da peça de mobília, espreguiçou-se como uma gata com cio, o que não andava muito longe da verdade.

Ele voltou, já sem casaco, com as mãos cheias pela mesma garrafa de whisky de ontem, um balde com gelo, e dois copos. Pousou tudo na mesa ao lado dela, arrastou uma espreguiçadeira para o outro lado da mesa, serviu dois copos, entregando-lhe um a ela, tirou a cigarreira e o isqueiro do bolso das calças, que pousou na mesa, esticou-se na espreguiçadeira, soltou a camisa das calças, desabotoando-a em seguida, bebeu um gole da bebida, abriu a cigarreira, tirou um cigarro que acendeu com uma passa longa, e deixou-se ficar. Depois deu outra passa e esticou o braço para ela, passando-lhe o cigarro.

Enquanto ela dava uma passa ele perguntou:

- Acreditas em Deus?

Ela virou-se de imediato para ele, tentando perceber o sentido da pergunta, de tal forma inesperada que ela ficou alguns segundos sem reacção.

- Sim. Não é que seja religiosa, ou assim, mas acredito em algo…

- Gostavas de o conhecer?

- Deus?

- Sim.

- Mas estas a falar do quê, mais concretamente?

- Daquilo que acabei de dizer. Gostavas de conhecer Deus?

- Hipoteticamente?

- Sim, claro.

- Acho que sim. Dás-te bem com Ele? – Perguntou passando o cigarro de volta.

- Tenho dias… – disse ele com o seu ar a tornar-se um pouco mais grave num breve vislumbre, num lampejo, voltando o sorriso que tinha estado no seu rosto a noite toda quase de imediato enquanto recebia o cigarro e o levava aos lábios dando uma passa profunda.

- Como é que ficou a miúda quando te viu esta tarde?

“Irra… até que enfim!” pensou ela, sentindo-se secretamente satisfeita com a sua pequena vitoria e decidiu provoca-lo mais um pouco, adiando a resposta.

- Tens noção que já me podias ter feito essa pergunta há meia hora atrás…

- Tenho, mas qual seria a piada? Afinal, não és tu quem gosta de dançar o Tango?

Ela fez uma cara irritada, fingiu-se furiosa, virou-se para o lado e anunciou:

- Nem me digno a responder-te.

- Porquê?

- Porque estas a provocar-me e isso não se faz a uma senhora.

- Pois não. Nisso tens razão. – Respondeu ele com um desinteresse notável.

Fez-se um silêncio em que era óbvio que ela esperava que ele cedesse. Ainda não se tinha decidido se a ultima resposta dele era a sério, a brincar, ou um misto das duas. Mas ele parecia absolutamente indiferente à decisão dela. Ia para lhe passar o cigarro novamente, mas ela recusou. Ele deu mais uma passa, bebeu o resto da sua bebida de um trago.

- Como preferes continuar a dança, eu aproveito para me retirar graciosamente. – Disse com um sorriso, deixando o rosto dela grave de desapontamento. Ele virou as costas e começou a caminhar para a casa. Ouviu-a dizer:

- Ficou afogueada.

Ele parou, virou-se com um sorriso quase malévolo estampado no rosto e assentiu em aprovação. Depois continuou, deixando-a sem saber o que pensar na espreguiçadeira.


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