quinta-feira, 7 de março de 2024

Conscientização - V

  

Desengane-se quem ache que uma sociedade se consegue conhecer observando o que tem de melhor. É precisamente o contrário. Conhece-se a sociedade conhecendo os seus vícios, as suas indulgências, a facilidade e o facilitismo com que se acede a certas comodidades…

E pode-se desenganar quem pense que elas estão omissas seja onde for; o espírito humano é demasiado inventivo… E, normalmente, quanto mais baixo for o preço, maior o grau de degradação dessa mesma sociedade. A perda de valores leva a que tudo tenha um preço e, ditam as leis de mercado, quanto maior a procura, mais alto o valor. Depois, a concorrência trata de manter o valor, estabilizando assim um mercado.

Convenhamos que, num sítio onde haja muitos Ferraris, estes deixam de ter valor, uma vez que é um exemplo de algo de que só alguns, poucos, podem usufruir. Alguém que não tivesse um, seria imediatamente notado. Assim, o valor é sempre relativo…

Mas, por exemplo, nos Ferraris existem carros de séries especiais, dos quais apenas se produz um número limitado, sendo que alguns deles nem são postos à venda, é a fábrica que convida potenciais compradores. Estes tornam-se produtos elitistas por natureza e o seu valor, mesmo no meio de uma multidão de Ferraris, será sempre elevado.

César ponderava tudo isto sentado numa cadeira de um material sintético a imitar pele, num bar com uma luz ténue, sendo que as luzes se centravam no palco onde uma jovem dançava em movimentos lentos e sensuais enquanto provocava os olhares de lascívia nos presentes na plateia, tirando as peças de roupa com a mestria de quem provoca, de quem se sabe e sabe usufruir do facto de ser o centro das atenções, de se sentir esse item único e saboreia o momento sabendo que daí a pouco, depois da dança, será apenas uma memória que se esvanece na visão do próximo corpo, mas agora, neste momento, vê-se reflectida naquela pequena multidão sem rosto e aprecia o seu reflexo num acto puramente narcisista, enquanto aquelas pessoas, com reacções distintas mas todas focadas em si, avançavam toda uma panóplia de sentimentos e sensações que vão desde a luxúria pura até à quase indiferença…

Um clube destes era perfeitamente elitista apenas pelos preços que cobrava à porta. Logo, havia aqui apenas dois tipos de pessoas: as que aqui estavam num devaneio de “uma-vez-na-vida” e os clientes regulares. E não eram difíceis de destrinçar, visto que as reacções mais exteriorizadas vinham dos primeiros. Os segundos são os que têm encaixe financeiro suficiente para que as visitas a estas casas não passem de trocos, dinheiro que não faz falta e tanto ele sabia disto, como todos os outros o sabiam também. Hoje limitar-se-ia a estar, sabendo que, se estivesse durante alguns dias acabaria por conhecer todo o tipo de gente com poder. Não o poder político, embora esse também, mas o poder verdadeiro: o poder do dinheiro. Passaria a fazer parte do clube dos que tinham acesso a isto e acabaria por conhecer alguém que lhe desse acesso a um patamar superior, e depois outro…

Além disso, consegue-se mais conhecendo as pequenas fraquezas dos nossos possíveis opositores… Acaba por fazer deles aliados. Os grandes negócios resolvem-se e desbloqueiam-se entre putas e vinho verde, criando graus de confiança, e não à mesa dos conselhos de administração. Aí só terminam…

Todas estas pessoas aqui estavam porque, de uma maneira ou outra se sentem vazias, sentem falta de carinho, de compreensão, de alguém que lhes diga que os ame, ainda que seja um amor pago e com hora marcada, que é, por vezes, o único lenitivo de uma alma dorida, por mais empedernida que possa parecer. Isto torna algumas comodidades procuradas por muitos, e a mais desejada e cobiçada, é a que é mais difícil de obter. Aqui, neste ambiente, a mulher mais cobiçada é a mais difícil de alcançar, aquela que é desejada por todos e só se entrega a quem puder pagar o preço mais alto, não há amor com hora marcada, há um preço alto, tão alto, que apenas um pode pagar, e quando esse for suplantado aparece o novo alvo de admiração, uma vez que o homem que a consegue, se bem que invejado, é admirado por poder tê-la. E havia que perceber qual a mulher com o preço mais elevado aqui.

…E eis que ela entra, vestida com um fato de homem, suspensórios por cima da camisa imaculadamente branca, um chapéu de coco, saltos vertiginosamente altos, mas onde se desloca com uma leveza e suavidade tal que parecia flutuar e a sala parou para contemplar a extraordinária feminilidade que irradiava daqueles trajes masculinos e que era impossível esconder enquanto eram incendiados por uns olhos de um verde intenso que parecia reflectir a pouca luz que existia, fazendo-a assim ter um brilho próprio, magnético, de onde era impossível fugir e que mesmerizava enquanto o casaco deslizava dos ombros num movimento penosamente lento, angustiantemente extraordinário de observar enquanto se tinha a certeza de que se via desnudar a perfeição de uma estátua feita por um qualquer dos mestres do iluminismo, o mais perfeito elogio à beleza feminina e se via os movimentos ritmados ao som de um jazz lento e clássico com o Elvis a proclamar que ela lhe dá febre, sendo que, a verdade é que o próprio César, por um momento fugaz a sentiu, mas que se esfumou com o primeiro impacto, e isso tornou-o diferente de todos os outros que ali estavam e a compreensão desse facto trouxe a César a revelação da sua superioridade, pois era o único ali que não desejava o inalcançável e isso tornava-a acessível a ele.

Esperou que o número dela acabasse, dirigiu-se a um empregado e perguntou como poderia falar com ela, sendo a resposta negativa logo à partida, mas algumas notas que foram sendo trocadas flexibilizaram a situação e ele acabou por terminar a sua bebida de um trago e seguiu o empregado em direcção a um corredor lateral…


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