terça-feira, 19 de março de 2024

Conscientização - XVIII

  

César abriu a porta do Mercedes SLS a Andreia, segurando-lhe a mão para a ajudar a entrar, fechou a porta e em seguida e deu a volta ao carro, instalando-se no lugar do condutor.

Seguiram pela segunda circular de uma forma lenta, até ao seu final, apanharam a saída para a A5, onde César pisou o acelerador levando o carro a uma aceleração repentina, como se fosse um animal selvagem que tivesse sido espicaçado. César sorriu e tirou a sua cigarreira de prata do bolso do casaco, deixando Andreia a olhar curiosa para ele, uma vez que não o vira, até ali, fumar, embora já tivessem passado consideráveis períodos de tempo juntos.

Ao abrir a cigarreira o cheiro familiar do cânhamo invadiu o carro. Tirou um cigarro, cheirou-o, pô-lo na boca, fechou e guardou a cigarreira tirando depois um Zippo de prata gravada de dentro de um outro bolso, acendeu o cigarro soltando uma baforada de fumo com o cheiro característico, agridoce, da erva, e depois perguntou:

- Então, o que achou da noite?

- Da actuação dela?

- De tudo…

Ela parou para tentar organizar as ideias.

- Achei a actuação artística. Tanto que me esqueci que estava a ver strip-tease. Foi elaborado, bonito e feito com tal leveza que ela parecia desafiar a gravidade…

César deu mais uma passa e passou-lhe o cigarro.

- Não, obrigada, não fumo…

- …E ainda bem, mas isto não é tabaco. É uma estirpe especial de cânhamo holandês. Prove… Prometo que não a vai deixar prostrada…

Ela hesitou, mas olhou para ele que lhe lançou um olhar encorajador, pegou no cigarro, deu uma passa profunda, engasgou-se, passou o cigarro a César, tossiu e ficou sem respiração, abriu a janela para apanhar ar e tentar atenuar o reflexo de regurgitar enquanto as lágrimas lhe corriam dos olhos. Quando finalmente se recompôs e conseguiu respirar lá se atreveu a dizer um entrecortado “desculpe”, e César ria-se.

- Não se preocupe, é normal. Foi muito ambiciosa para uma primeira passa… Já se recompôs?

Ela acenou que sim e ele passou-lhe novamente o cigarro.

- Dê uma passa pequena e depois inspire devagar, prenda a respiração… isso. Agora expire.

Ela expirou e já não se sentiu tão mal. Deu outra passa pequena e passou o cigarro a César.

- Mas dizia…

Ela olhou para ele tentando recordar onde estavam na conversa, lembrando-se em seguida e continuando.

- Dizia que tinha achado muito artístico e elaborado. A música conferiu um grau de dramatismo muito grande a todo o número. A nudez dela deixou de ser…

- …Vulgar!

- …Sim, isso, vulgar. A nudez dela era necessária à beleza do movimento. Já dela… Não sei que pensar… Já a conhecia?

- Na primeira noite que passei cá, em Portugal, conheci-a. O jet lag não me deixou dormir e fui àquele bar. Percebi, assim que entrei, que estava no sítio certo para conhecer algumas pessoas com quem terei de tratar mais dia, menos dia. São quase todos homens de negócios ou políticos, outros são investidores. E quando a vi percebi que ela era a chave para a confiança daqueles homens. Paguei-lhe uma bela quantia para sair de lá com ela, e fiz questão que todos vissem. Depois deixei-a numa suite de um hotel sem lhe tocar, sequer. Creio tê-la baralhado.

- É, tem esse efeito nas pessoas… – disse Andreia sem pensar, minimamente, só se apercebendo do que tinha dito quando já era tarde, consequência, talvez, de ter a cabeça leve. O tempo parecia-lhe ter ficado… lânguido.

César soltou uma gargalhada.

- Se calhar tenho mesmo.

Andreia sorriu ao sentir que ele não a tinha levado a mal.

- Achei-a dura, contrariando a leveza que tem quando dança…

- Se vir o mundo da perspectiva dela talvez ache essa “dureza” necessária. Imagine o que já lhe disseram, as propostas que já lhe fizeram, as mentiras que já lhe contaram para a levar para a cama.

- O que já lhe pagaram…

- Sim, mas isso, pelo menos, é honesto. Não cria espectativas além do simples pagamento de um serviço.

César deu mais uma passa e passou-lhe o cigarro novamente. Ela deu mais uma passa, e outra, e passou o cigarro, no fim, a César.

- Não tem emoção…

- Não tem desapontamento.

Andreia olhou para César e perguntou-se quantas histórias, quantas desilusões não se ocultavam por detrás daqueles olhos. Depois, olhou para a estrada e deixou o seu espírito começar a diluir-se no recorte cada vez mais próximo da serra de Sintra contra o horizonte longínquo, e reparou no luar intenso que deixava ver toda a paisagem com um brilho fantasmagórico e pintava as nuvens de branco quando passavam em frente à lua e percebeu que, apesar de se sentir alterada, nunca estivera tão consciente do que a rodeava…

Fizeram o resto da viagem em silêncio. Quando chegaram, cada um seguiu, naturalmente, para o seu quarto. Lá chegada, Andreia olhou-se ao espelho e reparou na maquilhagem completamente borrada das lágrimas no carro e achou-se cómica, riu-se, despiu-se, tomou um duche, deitou-se e esperou pelo sono que não aparecia e os pensamentos corriam em catadupa e vinha-lhe à memória as expressões de César, e a dança…

A dança fixou-se-lhe na memória, e reviu cada instante, e pensou na sensualidade, e sentiu um formigueiro no corpo e as suas mãos soltaram-se e tocou-se…


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