quarta-feira, 13 de março de 2024

Conscientização - XIII

 

 

Andreia dera por si, a meio da dança daquela mulher, a ficar fascinada pelos movimentos, pela graciosidade, percebendo numa única assentada o porquê de algumas pessoas afirmarem que o Strip-Tease é uma arte. Realmente, executado daquela maneira, com elegância, fluidez, por uma mulher que apenas podia ser apelidada de “perfeita” bem o podia ser… E por momentos desejou ser aquela mulher que se exibia sem pudor, com uma personalidade que emanava dos seus movimentos e recolher a admiração e o desejo de todos aqueles homens que a admiravam num silêncio quase reverencial.

O número acabou e ela foi arrancada do torpor dos seus pensamentos pela ovação generalizada na sala, tendo a bailarina agradecido a ovação e saído do palco tão graciosamente como tinha dançado, não sem antes ter lançado um olhar breve mas carregado na sua direcção… Ou seria na de César?

- Agora já posso acabar de lhe dizer. Ela assentiu.

- Como pôde ver, apesar do objectivo ser pôr mulheres em exposição, a verdade é que isso é feito com classe. Não é qualquer mulher, nem é de qualquer maneira. Ou seja, se o produto já é apetecível por si – afinal “sex sells” – a embalagem em que é entregue tem pormenores e preços que o torna ainda mais apetecível e desejado. Uma noite aqui sai muito cara para o comum dos Portugueses. Mas, olhando em volta, quase não existem aqui exemplares desses. Está aquele grupo de jovens ali ao fundo, provavelmente numa despedida de solteiro, ou seja, um evento único, há mais meia dúzia de pessoas que estão obviamente deslocadas. Mas a esta casa não poderia ser montada e sobreviver apenas com uma clientela tão flutuante. A maior parte das pessoas que aqui estão são “regulars”. Ora, se uma noite aqui sai muito cara, isso quer dizer que estes “regulars” não são o Português médio.

Andreia olhou em volta e percebeu isso.

- Quem aqui está e vem cá mais que uma vez por semana tem que ter dinheiro. E pessoas com dinheiro em sítios deste género querem passar desapercebidas, não gostam de alarido. Ora o ambiente que aqui está criado quase inibe qualquer alarido. É elegante. O gosto é discutível, claro, mas não deixa de ser elegante. O som nunca está demasiado baixo, mas também nunca está alto ao ponto de ter que se gritar para se ser ouvido do outro lado da mesa. E se há aqui muito dinheiro e um ambiente onde se propiciam as conversas…

Esperou um pouco para que a ideia assentasse, olhando-a e esperando que ela entendesse. De repente o rosto dela iluminou-se.

- Este sítio acaba por ser propício a muitos negócios… – disse Andreia.

- Claro. E a maior parte deles são jogadas de amigos de copos. Movimentam-se milhões. E há uma regra que é universal – Onde está o dinheiro, está o poder.

Ela acenou, compreendendo de imediato a razão de estarem ali.

- Convém, obviamente, entrar neste círculo, ganhar a confiança destes “regulars”. E como fazê-lo?

Ela limitou-se a esperar a resposta, que sabia que ele lhe daria em seguida. Ele assim o fez.

- Conseguimos aquilo que eles mais cobiçam, sem afrontar ninguém, e o resultado é demonstrar que se tem poder e isso pode fazer com que não gostem de nós, mas respeitam-nos.

Ela assentiu.

- Compreendo.

- Aqui, dentro desta sala vigoram as mesmas leis que em todo o mundo, e as leis de mercado aplicam-se. Agora diga-me: Qual a comodidade que acha ter mais valor aqui?

Ela parou um pouco para pensar. Olhou em volta, olhou para as expressões dos homens que ainda tinham um brilho nos olhos pelo que tinham acabado de ver. César continuou.

- Qualquer um destes homens podia estar noutro lado qualquer. Num casino, não tenho dúvidas que alguns deles devem ter iates estacionados na marina de Cascais, numa discoteca… Porquê, então, aqui? Embora a decoração seja do mais alto nível, a elegância impere, o ambiente seja distinto e controlado, de tal forma que até os moços da despedida de solteiro estão comedidos no seu canto, como que intimidados, mas a verdade é que não se pode dizer que este local seja o mais edificante do planeta… Porquê aqui?

Andreia compreendeu.

- Pelo sentido de transgressão. Eles podem estar aqui. E pela luxúria.

- Exacto. E qual o bem de valor mais alto aqui?

Andreia teve de pensar um pouco antes de dar a sua resposta.

- A bailarina que acabou de dançar? César sorriu e concordou com a cabeça.

- Nem mais.

Virou-se para o balcão, deixando Andreia a remoer nas possíveis implicações disto, enquanto pedia mais duas bebidas, sentindo-se algo satisfeito pelo facto da avaliação que tinha feito dela anteriormente ser acertada. Era inteligente e de raciocínio rápido. E tinha uma enorme vontade de aprender.

As bebidas chegaram. Ele bebeu um gole, como que para refrescar a garganta e continuou.

- Sabe, Andreia, no fundo não somos assim tão diferentes dos chimpanzés,… ou dos lobos! Temos uma estrutura social que se rege pela detenção do poder. Todos estes homens que aqui estão sabem o seu lugar na hierarquia e sabem que só poderão ascender quando os que estão acima desaparecerem. No entanto, uma vez que todos ganham com este tipo de estrutura, tudo acaba por ser um jogo de interesses, e aquilo que se vê aqui, espalhado pelas mesas, são macacos a catar macacos: “Eu cato-te e tu catas-me”.

- Parece conhecer muito bem o jogo…

Passei a vida a jogá-lo. Fui aprendendo e percebendo, fui ganhando vantagens, fazendo acordos, procurando informações, passando-as, e ganhei uma rede de favores de tal maneira que acabei por ascender ao topo da minha hierarquia.

- E posso saber o que fazia?

César olhou-a, para medir a sua reacção e depois afirmou:

- Especulava.

Ela olhou para ele, não entendendo muito bem o que ele queria dizer. Ele percebeu e continuou.

- Nadei no meio do mais profundo capitalismo… E já deve ter percebido que num meio onde o sucesso é quantificado pelo dinheiro que conseguimos amealhar, pelo que valemos, tive mesmo muito sucesso…

Ela fez, por apenas um breve instante, um ar reprovativo, mas que ele captou.

- Sabe,… – continuou ele – …há apenas três tipos de pessoas no mundo: As falsas, as verdadeiras e as que equilibram as características anteriores consoante as situações em que se encontram, ou seja, o resto do mundo. Destas, apenas pertencentes aos dois primeiros conseguem amealhar dinheiro e escalar socialmente, mas apenas o segundo tipo consegue um sucesso duradouro. Eu sempre me pautei por me incluir nos segundos.

- Mas se era um especulador deve ter a noção de que para subir teve de passar acima de muita gente…

- Tenho! E sou honesto em relação a isso. Não se chega ao topo sem derrubar pessoas pelo caminho… Mas normalmente, as que caem são do primeiro tipo.

- As falsas?! Não me parece… Pelo que vejo todos os dias nas notícias…

Isso é a impressão que dá. Repare, as pessoas falsas são as que se apresentam diante de determinada pessoa da maneira que querem que essa pessoa as veja. São uma ilusão, são actores a representar papéis. No entanto, acabam por cair frequentemente em contradições. E as pessoas que as rodeiam e suportam percebem isso. Para se chegar ao topo tem de haver muita gente a suportar-nos, e essas pessoas podem até nem gostar de nós mas, se nos respeitam, continuarão a suportar-nos. As falsas chegam ao topo, mas, por via das suas acções, a sua base de suporte vai sendo erodida. E mais tarde ou mais cedo caem perante a competição, porque não têm base suficiente para se manterem. Isto é o que acontece no capitalismo entre empresas e organizações, portanto o capitalismo é perfeito…

- Perfeito?! – Perguntou Andreia com uma nota de indignação na voz – E a exploração a que alguns povos estão sujeitos por causa do consumismo desenfreado?

César riu.

- Não serão explorados porque se deixam explorar?

- Têm outra hipótese?

- Claro que têm. Podem revoltar-se, elevar-se e forçar a uma mudança de paradigma na sua sociedade.

- Isso é fácil de dizer…

- …E embora seja difícil de acreditar, já foi feito inúmeras vezes ao longo da história. Portanto não é impossível. Tome o exemplo de qualquer país com governos totalitários, por exemplo. Acha que há algum que, se toda a sua população se levantasse, conseguiria manter o regime político? Sempre que há suficiente pressão popular, os regimes caem.

- Ainda assim, em muitos locais as pessoas não conseguem levantar a voz, e os que tentam são silenciados.

- Claro. São poucos. Nada se faz sem uma massa crítica, e afrontar o poder exige coragem, coisa que a mais comum das pessoas não tem. Como resultado, podem estar a ver o mundo a ruir em volta delas, mas não se mexem. E se não se mexem, porque é que deveriam ter o direito de reivindicar alguma melhoria nas suas vidas? Contam com a providência divina? Se escolhem submeter-se, sem voz, às situações, então pactuam com quem os oprime. Perdem o direito a reivindicar seja o que for. Permitem que quem está acima tire partido da sua fraqueza, o que nos remete de volta ao facto de não estarmos assim tão distantes dos chimpanzés…

Andreia não conseguia encontrar argumentos para rebater César. Acabou por dizer apenas:

- Mas isso é injusto…

- É. – Concordou César – Tal como o próprio mundo. Mas se pensar bem, a injustiça é uma óptima ferramenta de evolução. Se o mundo não fosse injusto, não evoluía.

Ela calou-se, pensativa. Desejava com todas as fibras do seu ser que ele não tivesse razão, mas a verdade é que a vida, a sua própria vida, contrariava o seu desejo.

- No entanto, a justiça faz-se sentir naquilo que disse há pouco. As pessoas falsas, assim como sobem, normalmente, de forma meteórica, também se despenham com a mesma velocidade.

Ela assentiu.

- E agora que lhe disse isto tudo, percebe porque estamos aqui?

- Para tentar infiltrar esta estrutura?

- Exacto. A especulação é um jogo, mas, como em qualquer jogo apenas os tolos apostam contra as probabilidades. Os jogadores profissionais sabem que mais vale ganhar pouco e seguro do que arriscar e perder muito. E, claro, só os estúpidos fazem “bluff”. Ora eu, para ir a jogo tenho de ter um bom naipe, e esse naipe está aqui. São os homens que aqui estão. Para conseguir o naipe, preciso de ganhar o respeito deles e até mesmo a sua admiração e quando isso estiver ganho posso ir a jogo com uma certeza absoluta de um retorno elevado. E a maneira mais fácil é ter algo que todos eles cobiçam.

Andreia abriu os olhos.

- A bailarina?!

- Sim.

- Mas quer comprar uma pessoa? César sorriu.

- Digamos antes aliciar a pessoa a utilizar parte do seu tempo segundo as minhas linhas de orientação em troca de um valor monetário que seja considerado justo por ambas as partes… Mais ou menos como a Andreia…


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