quinta-feira, 28 de março de 2024

Conscientização - XXVII

 

 

Fecha os olhos. – Disse ele quando ela saiu da porta do prédio.

- Porquê?

- Porque sim! Fecha os olhos.

Ela respirou fundo, encolheu os ombros e fechou os olhos. Sentiu-o a passar para trás de si, e em seguida algo que era colocado sobre os seus olhos.

- Mas que estas tu a fazer?

- Bem, aparentemente, a vendar-te.

- Mas porquê?

- Porque sim. Queres confiar em mim? Ela resignou-se.

No dia a seguir àquela conversa que acabou abruptamente sem ela entender bem porquê, ele limitou-se a anunciar-lhe que daí a dois dias, ao fim da tarde do seu dia de folga a iria buscar ao apartamento em Lisboa e que não se preocupasse com o carro que alguém o iria buscar. Ah, e para ela se produzir “a matar”, na expressão que ele utilizou. Depois quase não o voltara a ver, até agora.

Ele guiou-a cuidadosamente até ao carro, ajudou-a a entrar e entrou em seguida, arrancando.

- Mas para onde é que vamos? – Perguntou ela, sentindo-se um pouco insegura.

- É surpresa.

Ela calou-se e foi apreciando a música. Foram indo, sem grandes conversas. Deu pelo facto de saírem de Lisboa e passarem na ponte sobre o Tejo. O ruído característico dos carros a rodar nas faixas centrais é inconfundível. Mas depois da ponte, o carro acelerou e seguiram auto-estrada fora.

Ao fim de um bom bocado ela não se conteve.

- Mas ainda falta muito?

- Um bocado. – Respondeu ele – Mas porquê? Estás com pressa? Não estás confortável?

- Não… é que ir aqui, vendada, sem saber para onde vou…

- E o que é que interessa saber para onde vais? Estás comigo. Confia. Uma coisa te prometo: A viagem só começa quando chegarmos ao destino.

- Que é que queres dizer com isso?

- Exactamente o que disse.

- O Sr. Enigmático contra-ataca.

- É, estou misterioso. É para ver se fico com um pouco mais de charme que o costume…

- Isso implicaria já teres, normalmente, charme.

- Pois, tens razão. Má escolha de palavras… – disse ele soltando uma gargalhada.

- Mas gostava de saber para onde vou. Pedes-me para vir assim, toda produzida, vens de fato, e depois levas-me assim, vendada…

- Já te disse, é surpresa.

- Mas não podes ao menos revelar um pouco?

- Está bem. Vamos para um sítio solene.

- Um sítio solene?

- Sim!

- Que sítio?

- Isso agora… Quando lá chegares vês. Ela estava a ficar visivelmente aborrecida.

- Então, quando lá chegarmos, avisa.

Calou-se e encostou-se para trás no banco. Ele riu com o amuo dela e lançou o carro ainda mais depressa na auto-estrada em direcção a sul.

Voltou a dar conta de si quando um solavanco na estrada fez o carro abanar. Pela irregularidade que sentia, já não estavam na auto-estrada. Tinha perdido por completo a noção do tempo. Provavelmente tinha adormecido sem sequer dar por isso.

- Fizeste uma soneca jeitosa? – Perguntou ele. Ela espreguiçou-se, bocejou, e perguntou:

- Estamos a andar há muito tempo?

- Há algum…

- E ainda falta muito para chegar aonde quer que vamos?

- Não. É perto.

- Ainda bem…

O carro parou. Sentiu-o a sair, deixando o carro ligado. Depois voltou a entrar, o carro avançou alguns metros, parou novamente, voltou a sair, voltou a entrar e seguiram devagar por uma estrada acidentada.

- Seja lá onde for que isto é, é longe…

- É. Mas já cá estamos.

Andaram mais uns cinco minutos até o carro parar definitivamente. Ele saiu e ela sentiu a porta ser aberta logo depois. Ele pegou-lhe pela mão e ajudou-a a sair. O silêncio era tal que se conseguia ouvir a brisa. Ouvia-se também o restolhar de folhas em árvores próximas. O ar estava fresco, com uma humidade que se sentia, mas que era agradável. Ele guiou-a, segurando-a pelo braço, andando ambos devagar e ela sentia e ouvia as folhas secas a serem esmagadas pelos sapatos de ambos. Depois começaram a andar em cima de pedra, direita mas não muito regular. Por fim, ouviu-o a abrir uma porta pesada, ouviu as dobradiças a protestar, rangendo, e ele guiou-a novamente passando a porta.

Havia um cheiro muito familiar no ar, como se fosse incenso, mas diferente, mais espesso, igualmente adocicado e que ela reconheceu de imediato, mas não disse nada. Avançou guiada por ele e ouviu o ressoar dos passos num espaço amplo.

“Mas onde raio estamos?” Perguntou-se ela. Ele parou-a.

- Estamos cá. – Disse – Estás preparada? Ela assentiu com a cabeça.

Ele pôs-se por detrás dela, desapertou a venda e tirou-lha. Ela olhou.

À sua frente, iluminada apenas por velas, estava a nave de uma igreja antiga com um altar completamente trabalhado em talha dourada que reflectia a luz bruxuleante das velas e enchia o lugar de reflexos dourados. Os painéis de azulejos que rodeavam toda a igreja até ao altar, finamente desenhados com motivos da vida e paixão de Cristo elevavam-se até aos pedestais que deviam ter servido de repouso a estátuas de santos, agora inexistentes. O tecto, abobadado, estava decorado com frescos que haviam perdido o fulgor original, tendo em alguns sítios caído o estuque, e noutros havia manchas de humidade que atestavam a antiguidade do sítio. Os bancos corridos, de madeira, estavam decorados com rosas encarnadas, bem como o tapete da mesma cor que corria ao longo da nave até ao altar. O altar era uma enorme mesa dourada, da qual ela apenas conseguia ver os pés, uma vez que estava coberta com uma toalha de linho de um branco imaculado, também coberta com pétalas de rosa encarnada. O fumo que ocupava todo o espaço, fazendo o ar parecer espesso vinha de um incensário que estava por detrás do altar, pendurado num suporte.

O fumo, do cânhamo que queimava livremente, inebriava-lhe os sentidos, distorcia o espaço e o tempo cada vez mais, e ela ficou simplesmente parada a contemplar tudo o que tinha à sua frente.

- Gostas da tua surpresa? – Perguntou ele, observando a sua reacção.

- Onde é que estamos afinal?

- Numa igreja.

- Bem isso eu já vi, mas como…?

- É uma igreja privada. Estamos no meio de uma herdade e esta igreja pertence à herdade, mas já está desactivada há muito tempo. As estátuas foram oferecidas e vendidas a coleccionadores, mas sobra este espaço que continua magnífico, pelo menos enquanto não acabar de se degradar por completo.

- E como é que tu…?

Ele simplesmente sorriu e olhou-a bem nos olhos.

- Ainda não me respondeste. Gostas?

Ela deixou-se ficar mais um pouco, embasbacada a olhar para todo aquele cenário montado para ela. Só depois respondeu:

- Adoro!

- Ainda bem. – Respondeu ele, agarrando-lhe a mão e levando-a ao longo do tapete encarnado em direcção ao altar.

Caminharam devagar ao longo da nave, com o tapete a abafar o som dos passos que ainda assim reverberavam nas pedras seculares. Cada vez mais os sentidos de ambos se distendiam no tempo, culpa daquele fumo espesso que invadia todo o espaço, e cada vez mais as sensações ficavam vívidas e vibrantes. O mero toque da pele enquanto ele a levava pelo braço, parecia lançar um formigueiro ao longo do corpo dela. A sensação de frio quando entrara desvanecia-se, e o seu lugar era ocupado por um conforto do espírito.

Chegaram junto do altar. Pararam, viraram-se um para o outro, ficando ambos de olhos nos olhos, fixos, sem saberem sequer durante quanto tempo. Apenas numa atitude contemplativa e calma. Depois abraçaram-se finalmente, colaram os corpos, uniram os lábios num beijo que teve um sabor intemporal, as línguas a tocarem-se devagar, a procurarem-se, a darem-se…

Com uma calma de quem tinha todo o tempo do mundo ele começou a abrir o fecho do vestido e ao mesmo tempo que o fazia, acariciava-lhe as costas enviando sensações pelo corpo dela que se reflectiam na calma voraz do beijo onde estavam presos. Ele quebrou o beijo, contra a vontade dela, apenas para a libertar do vestido que caiu até ao chão, deixando-a apenas com um fio dental e os saltos altos, o que lhe provocou um agradável arrepio na pele, voltando depois a colar os lábios aos dela e a perder-se na sensação de abraçar o seu corpo quase nu.

Ao fim de um tempo que pareceu imenso e ao mesmo tempo um instante fugaz, os lábios separaram-se. Ficaram abraçados de pé em frente ao altar, cabeças a repousar sobre o ombro um do outro. Depois separaram-se finalmente. Ela olhou para ele com um ar inquiridor. Ele sorriu, deu-lhe a mão guiando-a e equilibrando-a para cima de um degrau que estava em frente ao altar. Depois de ela subir, fez-lhe descer o fio dental ao longo das pernas e ajudou-a a equilibrar-se, ora numa perna, ora noutra, enquanto lhe tirava a última e minúscula peça de roupa. Depois, agarrou-a pela cintura e sentou-a no altar.

Ela deixou-se guiar por ele enquanto, sem palavras, ele a levava ao centro daquela enorme pedra fria coberta de linho e pétalas de rosa, fazendo-a deitar-se em seguida.

Depois, sempre com uma calma que lhe fazia parecer a ela que ele se movia em câmara lenta, ata-lhe os pulsos e os tornozelos aos pés do altar com tiras de veludo “bordeaux” escuro.

Quando acabou de a atar, chegou-se perto do rosto dela, deu-lhe um suave beijo nos lábios e saiu por uma porta lateral ao altar…

Ela perdeu a noção do tempo, ali quieta num silêncio reverberante, inundada pelo fumo e o cheiro do cânhamo que queimava no incensário que estava um pouco além e abaixo de si, para que o fumo que se soltava subisse directamente na sua direcção, passando por si, inebriando-a, intensificando qualquer sensação, o contacto frio e veludoso das pétalas e do linho esfriado pela pedra, desorientando-a, a vontade de se querer mexer e estar constrangida, de movimentos limitados, exposta, em cima de uma pedra de altar em frente a um massivo altar-mor de talha dourada onde outrora estivera pendurada uma cruz, com os ouvidos preenchidos por um silêncio amplo, e de repente o simples ranger de uma porta dá significado a tudo aquilo e ela volta-se e vê-o voltar com um habito de monge, cingido pela cintura por uns cordões largos, com uma taça dourada na mão, a representação do graal, da taça da ultima ceia, e aproxima-se dela com um ar sério, ela sorri e ele faz-lhe uma festa suave pelo rosto, passa-lhe a mão no cabelo com doçura, com ternura, põe-lhe a mão na nuca, ampara-lhe a cabeça, aproxima a taça, dá-lhe a beber e ela fá-lo sem hesitação provando uma textura algo amarga, estranha, que à medida que lhe desce da garganta provoca um calor que se espalha do centro do seu corpo para fora, fazendo-a aquecer, deixar de sentir a pedra fria, electrizar, uma sensação quente e suave que a faz mergulhar num estado de quase sono e ele retira a taça dos seus lábios e derrama parte do resto do conteúdo no seu peito que corre ao longo do seu corpo e que ele lambe devagar e dedicadamente, cada pequena gota do líquido que ela vê finalmente, apercebendo-se da cor esverdeada, e compreende o sabor do absinto misturado com algo mais que ela não reconhece e sente o corpo solto, leve, deixa de se sentir constrangida ou amarrada, simplesmente está, sentindo a espaços o liquido a fluir sobre a sua pele e o contacto da língua macia a retirar cada gota que escorre de si e percebe o porquê da fada verde, mergulha num abandono e felicidade infinita, mas que bem longe ela consegue intuir que terminará, mas não importa, nada importa a não ser as sensações que sente, que lhe transmite a ele que pousa a taça e a saboreia pedaço a pedaço, descendo ao longo do seu corpo, ocupando cada espaço, cada milímetro da sua pele, como se quisesses absorver a sua essência, o que ele faz quando começa a beijar o interior das suas pernas subindo até às virilhas e começa pura e simplesmente a envolver o clítoris com a sua boca, com os seus lábios, sugando-a e provocando como que uma descarga eléctrica que sobe direita ao seu cérebro, fazendo com que o seu corpo se contorça num espasmo, uma sobrecarga de sensações e deixa de ouvir, deixa de ver e sente apenas o continuado cheiro do cânhamo e sente o sabor do absinto ainda na sua boca e nem sente o corpo, sente apenas um pulsar que sobe da sua vulva de uma forma tão intensa que quase a faz esquecer de respirar e quando o faz obriga-a a soltar o ar dos pulmões num grito intenso que clama pelo orgasmo que ainda não chegou e ela tem um lampejo de se perguntar como será quando chegar e deseja-o, quer, muito, com todas as suas fibras sentir o prazer supremo e o seu corpo acede, faz-lhe a vontade e ela vem-se entre espasmos, gritos que preenchem o espaço e parecem continuar e durar para sempre e os seus sentidos despertam e sente-se, vê-se, sente-o, vê-o, sente o seu corpo, a sua boca a envolve-la, os suaves toques da língua no seu recanto mais secreto, ondas de choque que varrem o seu corpo umas atrás da outras e tudo desaparece por um instante, a mente apaga-se…

…e ilumina-se de novo, descendo do êxtase mas mantendo-se no limbo e olha e vê-o subir para cima do altar, em frente a si, às suas pernas abertas, à sua vulva pulsante de onde escorre todo o prazer que sentiu e continua a sentir, vê-o ficar de joelhos e subir o habito mostrando a sua erecção pulsante, estendendo-se sobre ela em seguida e toca-a, não com as mãos mas com o corpo, afaga-a, fá-la sentir o seu peso, sente o corpo em brasa, entregue ao prazer de ambos, roça o seu sexo no dela, comprime-se contra o seu clítoris arrancando-lhe mais gemidos de prazer e não aguentando mais a tortura que lhe faz, mas que é feita a ambos, começa a penetrá-la como que numa oferta ritual, deixando-se deslizar milímetro a milímetro, querendo que ela o sinta sem pressas e sente-a a acolhê-lo enquanto a vai penetrando, os seus músculos a pulsar em torno do seu membro e sente o quanto ali, naquele momento, ela o quer, e dá-se para que ela sinta o quanto ele a quer, vais deslizando até as suas púbis se tocarem, até estar pleno dentro dela e olha-a, observa-a, deixa-se estar assim dentro dela, ela geme, contorce-se debaixo dele como uma gata no cio e depois começa a sair devagar, a sentir a textura dela na sua glande enquanto se puxa para fora, a sentir o seu sexo a sugá-lo, como que a querer puxá-lo novamente para dentro, sempre com uma lentidão agoniante para ambos, atrasando o orgasmo dela, atrasando o seu enquanto as gotas de suor lhe invadem o rosto e começam a pingar como gotas de chuva refrescante sobro o corpo dela, até ficar apenas com a glande dentro dela, ondulando as ancas devagar para provocar um ligeiro vaivém que lhe estimula o ponto G, que a deixa louca de tesão e ele sente-a, mais do que isso, sabe-a naquele momento e ambos se olham nos olhos, sabem-se um do outro para além de qualquer dúvida e com isto ele penetra-a fundo, forte, de uma forma quase brutal, quase animalesca, ela grita, sente-o a invadi-la, quer-se invadida, tomada por ele, oferece-se, vê o esgar de prazer no seu rosto enquanto ele sente a corrente eléctrica que lhe percorre o corpo, que ele sabe que ambos sentem enquanto se entregam a um orgasmo pleno de sensações que parecem ir além do espaço onde estão e, inebriados, desfalecem os dois em cima do altar, como uma oferenda, como que detentores de um sacro ofício, livres…

quarta-feira, 27 de março de 2024

Conscientização - XXVI

  

Seguiam a uma velocidade relativamente elevada pela auto-estrada e ele continuava com aquele mesmo sorriso meio enigmático no rosto, o mesmo desde o final da sua actuação, quando ele leva a mão ao bolso interior do casaco, tira a sua cigarreira de prata e lha passa para a mão.

- Não te importas de acender um? Não dava jeito distrair-me a esta velocidade…

Ela abriu a cigarreira e o cheiro da erva invadiu as suas narinas, junto com o resto do carro.

- Tens o isqueiro no bolso de fora do casaco… – e ela leva lá a mão tirando um elegantíssimo isqueiro em metal dourado. Acendeu o cigarro e deu uma passa demorada, engolindo o fumo e prendendo-o por um pouco, expelindo-o em seguida, enquanto olhava com curiosidade para o isqueiro.

- É um Zippo Blu. – Disse ele, esclarecendo-a.

Ela deu mais uma passa e passou-lhe o cigarro, que ele agarrou com a mão esquerda e levou de imediato aos lábios, puxando uma passa enquanto abria uma fresta do vidro do carro de modo a dissipar o fumo no interior. Ela colocou de novo o isqueiro no bolso dele.

Ela encostou-se no banco, recostou-se, aninhou-se, fechou os olhos e sentiu-se a vaguear por um momento. Sentia uma vontade enorme de saber o que lhe ia na cabeça, mas conteve-se. Ele deu mais uma passa e travou, passando-lhe o cigarro novamente.

- Quando é a tua próxima folga?

- Porquê? Tens alguns planos?

- Posso vir a ter. Não está nada certo…

Ainda bem que falas nisso. Estava para te dizer que precisava ir a casa nesse dia. Tenho lá algumas coisas que quero ir buscar, e dava-me jeito ir directo para lá, quando sair, se não te importares, claro.

- Não, claro que não me importo, mas quando é?

- Daqui a três dias.

- Mas se aparecer alguma coisa para o fim do dia…?

- Claro que não há problema. Era mais para me dispensares da tarde com a Andreia…

- Não há problema. Acho que a Andreia até vai gostar da folga. Ela sorriu.

- Acho que sim, vai.

Ela passou-lhe o cigarro de volta. Ele deu uma passa longa.

- Ela está diferente… disse ele.

- A Andreia?

- Sim.

- Pois, com a ginástica começa a ter o corpo mais firme, tem mais postura…

- Não era nisso que estava a falar…

- Então?

- Está muito mais assertiva. Já consegue manter uma posição firme em relação às outras pessoas. Não se intimida com tanta facilidade. Tenho-a visto a lidar com as tarefas que lhe dou com uma confiança muito grande. Não estava à espera de uma evolução tão grande em tão pouco tempo…

Ela viu ali a sua oportunidade de puxar a conversa para onde queria.

- Sim, é verdade. Tenho reparado nisso também. Ainda assim, só queria que visses a cara dela esta tarde quando me viu a ensaiar o número desta noite.

Ele levantou o sobrolho, não tirando os olhos da estrada, mas não fez qualquer comentário, ao contrário do que ela esperava. “Que sacana de um raio” pensou e como que em resposta aos seus pensamentos o sorriso dele ficou mais… trocista?!

“Estas mesmo a provocar-me!” pensou. “Mas olha que este jogo é para jogar a dois.” E com este pensamento, tirou a mala de cima das pernas e cruzou-as, passando a esquerda por cima da direita, deixando-se depois descair até encostar a cabeça no vidro expondo todo o seu lado e pondo em evidência a sua coxa e as suas pernas magnificamente desenhadas. Ele ligou o pisca, anunciando a saída da auto-estrada e levantou o pé, fazendo a velocidade diminuir, saindo depois pela rampa lateral. Já a andar bem devagar, abriu o cinzeiro do carro e apagou o cigarro, passando subtilmente a vista pela visão que lhe era oferecida, mas a sua expressão manteve-se inalterada enquanto conduzia devagar na estrada secundária.

Para sua desilusão ele manteve-se em silêncio o resto do caminho, sem que no entanto o sorriso lhe deixasse os lábios.

Saíram do carro na garagem e sentiram de imediato o ar quente e abafado da noite, puro contrate com a temperatura controlada dentro do SLS. Dirigiram-se à porta das traseiras e quando estavam prestes a entrar ele perguntou:

- Estás cansada e queres ir deitar-te já ou queres beber alguma coisa?

- Não, estou bem. Um bocado “lá em cima” mas estou bem. Posso fazer-te companhia.

- Não quero que te sintas obrigada a ficar.

- Não, não sinto. Ele sorriu.

- E o que vais querer? – Perguntou ele enquanto ela pousava a mala numa cadeira e se sentava numa espreguiçadeira.

- Aquilo que tu fores beber.

- E queres correr novamente esse risco?

Ela pausou um pouco, tentando fazer um ar pensativo mas divertido.

- Ontem acabei por não me dar assim muito mal, que me lembre. Ele franziu o sobrolho, divertido também.

- Como queiras. – Disse, retirando-se, e deixando-a esticar-se na espreguiçadeira. Ela, fazendo jus ao nome da peça de mobília, espreguiçou-se como uma gata com cio, o que não andava muito longe da verdade.

Ele voltou, já sem casaco, com as mãos cheias pela mesma garrafa de whisky de ontem, um balde com gelo, e dois copos. Pousou tudo na mesa ao lado dela, arrastou uma espreguiçadeira para o outro lado da mesa, serviu dois copos, entregando-lhe um a ela, tirou a cigarreira e o isqueiro do bolso das calças, que pousou na mesa, esticou-se na espreguiçadeira, soltou a camisa das calças, desabotoando-a em seguida, bebeu um gole da bebida, abriu a cigarreira, tirou um cigarro que acendeu com uma passa longa, e deixou-se ficar. Depois deu outra passa e esticou o braço para ela, passando-lhe o cigarro.

Enquanto ela dava uma passa ele perguntou:

- Acreditas em Deus?

Ela virou-se de imediato para ele, tentando perceber o sentido da pergunta, de tal forma inesperada que ela ficou alguns segundos sem reacção.

- Sim. Não é que seja religiosa, ou assim, mas acredito em algo…

- Gostavas de o conhecer?

- Deus?

- Sim.

- Mas estas a falar do quê, mais concretamente?

- Daquilo que acabei de dizer. Gostavas de conhecer Deus?

- Hipoteticamente?

- Sim, claro.

- Acho que sim. Dás-te bem com Ele? – Perguntou passando o cigarro de volta.

- Tenho dias… – disse ele com o seu ar a tornar-se um pouco mais grave num breve vislumbre, num lampejo, voltando o sorriso que tinha estado no seu rosto a noite toda quase de imediato enquanto recebia o cigarro e o levava aos lábios dando uma passa profunda.

- Como é que ficou a miúda quando te viu esta tarde?

“Irra… até que enfim!” pensou ela, sentindo-se secretamente satisfeita com a sua pequena vitoria e decidiu provoca-lo mais um pouco, adiando a resposta.

- Tens noção que já me podias ter feito essa pergunta há meia hora atrás…

- Tenho, mas qual seria a piada? Afinal, não és tu quem gosta de dançar o Tango?

Ela fez uma cara irritada, fingiu-se furiosa, virou-se para o lado e anunciou:

- Nem me digno a responder-te.

- Porquê?

- Porque estas a provocar-me e isso não se faz a uma senhora.

- Pois não. Nisso tens razão. – Respondeu ele com um desinteresse notável.

Fez-se um silêncio em que era óbvio que ela esperava que ele cedesse. Ainda não se tinha decidido se a ultima resposta dele era a sério, a brincar, ou um misto das duas. Mas ele parecia absolutamente indiferente à decisão dela. Ia para lhe passar o cigarro novamente, mas ela recusou. Ele deu mais uma passa, bebeu o resto da sua bebida de um trago.

- Como preferes continuar a dança, eu aproveito para me retirar graciosamente. – Disse com um sorriso, deixando o rosto dela grave de desapontamento. Ele virou as costas e começou a caminhar para a casa. Ouviu-a dizer:

- Ficou afogueada.

Ele parou, virou-se com um sorriso quase malévolo estampado no rosto e assentiu em aprovação. Depois continuou, deixando-a sem saber o que pensar na espreguiçadeira.


Lilith (the audiobool) - Prologue


Pois que é verdade!
Na altura em que escrevi isto queria fazer qualquer coisa assim... 
...em Português...
...mas era demasiado complicado e o projecto foi deixado de lado.

No entanto, resolvi traduzir o livro para inglês e depois de traduzir resolvi experimentar fazer isto em inglês com vozes geradas por inteligências artificiais... E o resultado não é perfeito, mas é bom (do meu ponto de vista)
Pena que não dê para fazer em Português (as poucas vozes disponíveis em Português têm o sotaque Brasileiro).
Fica aqui o prologo. Quem quiser pode ir ouvindo e vendo no Youtube. Os videos vão sendo carregados conforme posso.

Bem haja!

Conscientização - XXV

 

 

Estava em frente ao espelho observando cada pormenor do seu reflexo, desde os seus sapatos Gucci Elisabeth open toe, as suas calças de homem que acompanhavam de forma justa o contorno da sua anca e coxa, mas que caiam em seguida a direito mais compridas um pouco que a perna por forma a esconder parcialmente o sapato e criando a ilusão de que ela era ainda mais alta, sendo que, quando se mexia o tecido fino e solto tomava as suas formas criando mais fluidez no seu movimento, a camisa imaculadamente branca, de homem também, mas justa às suas formas vincadamente femininas e realçando-lhe o peito, a maquilhagem suave que apenas conferia alguma suavidade extra à sua pele e cujas sombras realçavam os seus traços e faziam sobressair o carregado batom rouge satin, bem como o intenso dos seus olhos, e se eles estavam intensos hoje, o seu cabelo comprido apanhado e escondido por um chapéu Fedora da Gucci também, e verificou que estava como se sentia,… De arrasar, completamente! E sentia-se bem por se sentir assim.

Esta tarde, enquanto ensaiava o número pediu a Andreia para parar, ver e lhe dar uma opinião no fim, uma vez que não estava muito segura em relação a toda a rotina. Entregou-se ao fazê-la, animada talvez pela sensibilidade que ainda sentia na pele, fruto da noite anterior, com César. Quando acabou olhou para Andreia e a expressão dela dizia tudo. Estava completamente afogueada e envergonhada. Não tinha dito nada em relação a isso à pobre moça, fingiu misericordiosamente que ela não transparecia tudo o que sentia e limitou-se a perguntar o que ela tinha achado, ao que recebeu um tímido “gostei muito” articulado numa voz insegura e trémula.

Ainda assim não tinha a certeza se faria este número hoje, mas a conversa com César, quando estavam quase a sair do carro, ao chegarem, tirou-lhe qualquer dúvida que tivesse.

- Tu hoje, simplesmente, usaste-me… – tinha-lhe dito em jeito de desabafo, como um pensamento solto que lhe saiu pela boca antes de ser registado pela mente.

- Desculpa?

- No jantar… Simplesmente, usaste-me. Ele sorriu.

- Sim, e é para isso que te pago.

- Apenas um meio para atingir um fim.

- Claro como qualquer outro funcionário meu, independentemente do que ele faça. Eu uso o jardineiro e pago-lhe para isso. Mas porquê essas perguntas? Julgava que isso estava devidamente contratado…

- E está, não ligues. Apenas lamento não me teres levado a jantar ali apenas porque sim…

César soltou uma gargalhada.

- Se eu estou a perceber bem, estás em… “chick mode”… – disse César, meio atrapalhado à procura de uma tradução.

- Modo de gaja. Sim, tens razão, esquece.

Cesar não respondeu, mas continuou com um sorriso divertido. Entretanto chegaram, ele estacionou o carro abriu a porta para sair, mas hesitou, voltou-se para ela e disse:

- Lembras-te de aqui há uns dias, antes de eu ir a L.A., da tasca pequenina onde jantamos aquele bacalhau com batatas e talos de couve?

- Sim, claro…

- Bem, esse sou eu. O jantar de hoje estava delicioso, mas o ambiente, o luxo… Não combinam com a minha personalidade.

- E dizes isso dentro de um SLS de trezentos mil euros. És um tipo coerente.

- Uma coisa é quem eu sou e outra bem diferente é quem eu mostro ser.

Saiu do carro deu a volta, abriu-lhe a porta, deu-lhe a mão para ela se apoiar enquanto saía e fê-la seguir à sua frente enquanto fechava a porta e trancava o carro e, alcançando-a logo em seguida, perguntou:

- Sinceramente e excluído o vinho, que era mesmo excepcional, gostaste mais do jantar de hoje ou do bacalhau com batatas?

A pergunta apanhou-a desprevenida.

- Gostei mesmo muito da refeição de hoje…

- Eu também. Estava tudo delicioso.

- Mas o bacalhau com batatas foi tão mais… Nem sei…

- Simples?

- Sim, é isso. Igualmente saboroso, acompanhado por aquelas azeitonas temperadas com orégãos e alho, e o molhar o pão alentejano no azeite… Simples.

- A simplicidade nunca é vulgar. Apenas não é ostentativa. Jamais te levaria a um restaurante daqueles sem ser por tua vontade expressa. Acho-te melhor do que isso.

- Melhor?

- Sim. O suficiente melhor para eu poder usufruir de ser eu na tua companhia.

Ela ficou muda.

Entretanto entraram, ele levou-a ao camarim, sem mais uma palavra. La chegados, ele virou-se para ela e disse:

- E agora vamos lá ser quem o mundo acha que eu devo ser por mais um bocadinho… – e piscou-lhe o olho e saiu porta fora deixando-a só com os seus pensamentos e com o eco das palavras dele a reverberar, apercebendo-se gradualmente do enorme elogio que ele acabara de lhe fazer, com uma elegância tal que quase nem dera por isso e sorriu. Decidiu nesse momento que hoje ele, depois do que lhe fizera ontem, merecia sofrer e ela fá-lo-ia sofrer com requintes de malvadez. Começou a preparar-se para fazer a sua actuação.

E ei-la aqui e agora, pronta para sair para o palco e com vontade de o fazer salivar e deixá-lo sedento.

Entrou no palco, caminhando de forma absolutamente felina, sem sequer olhar para o público e quando chegou ao centro, um local onde estava o único foco de luz do palco, parou, ergueu a cabeça e o braço direito, envolvendo o corpo com braço esquerdo, e deixou-se envolver pelo som do bandoneón de Piazolla deixando que o seu corpo se abandonasse ao ritmo e à melodia de Oblivion. Sentia-se a arder por dentro e passou toda a intensidade do que sentia para os seus movimentos, ora fluídos, ora abruptos e rígidos, entrando em simbiose com a música.

Quando a sua actuação acabou, junto com a música, sentia-se ofegante mas viva e olhou para o público, procurando a única pessoa que lhe interessava, viu-o, sério como sempre costumava estar, mas desta vez com uma expressão no olhar que ela ainda não lhe tinha visto. Ele levantou o copo que tinha na mão e fez-lhe um suave aceno da cabeça ao mesmo tempo que os seus lábios se redesenhavam num sorriso enigmático, mas que lhe dizia tanta coisa…

Ela sorriu também e devolveu o aceno. Depois saiu do palco com a mesma graça felina com que tinha entrado enquanto pensava para si “Touché, Mr. César”.

terça-feira, 26 de março de 2024

Conscientização - XXIV

 

 

João Saraiva sentiu uma vertigem súbita, como se o chão tivesse desaparecido de debaixo da sua cadeira quando viu Veronika” a seguir na direcção da sua mesa. Felizmente para ele até a sua esposa, sentada ao seu lado, ficou suspensa nos movimentos felinos e na graciosidade de “Veronika”, não reparando por isso que ele tinha ficado lívido, como se o sangue lhe tivesse fugido por completo. César seguia logo atrás dela, dando-lhe a primazia.

Chegados à mesa, João e a sua esposa levantaram-se e César cumprimentou João cordialmente, enquanto este tentava agir naturalmente.

- Espero que não tenham esperado muito por nós. Apanhamos algum trânsito na entrada de Lisboa.

- Chegamos há pouco tempo, também. – Disse João, sentindo uma nota tremula na sua voz – Permita-me que lhe apresente a minha mulher, Ana. – E ela esticou de imediato a mão para Cesar, num cumprimento formal.

César apertou-lhe a mão enquanto a olhava nos olhos de uma forma que provocou um pequeno arrepio. Um olhar firme e sério que pareceu trespassá-la. Para piorar a situação, César não se limitou a apertar-lhe a mão, antes virou-lhe as costas da mão para cima e, com uma vénia rápida, mas sem desviar os olhos dos dela, levou as costas da sua mão aos lábios, beijando-a apenas muito superficialmente.

- Encantado. – Limitou-se a dizer em seguida com um pequeno sorriso nos lábios. Depois, continuou ele com as apresentações.

- Esta é a Veronika.

As duas mulheres cumprimentaram-se encostando ambas as faces e soltando uma ameaça de beijo a cada encosto e em seguida Céu estendeu a mão para João, que tentou atabalhoadamente imitar o gesto de César, para óbvio divertimento dela.

João e Ana sentaram-se e César ajeitou a cadeira de Céu, sentando-se em seguida.

Cesar voltou-se para João:

- Fico satisfeito por ter aceitado o meu convite para jantar.

- Um convite seu seria irrecusável – apressou-se João a responder.

- Já pediram?

- Não, estávamos à vossa espera…

- Vamos pedir então. – Disse Cesar fazendo um sinal que foi rapidamente entendido, aparecendo as ementas quase de imediato.

Enquanto todos desfilavam os olhos pela ementa, Céu reparava no quanto João tentava esconder-se dela e no quanto Ana olhava por cima da ementa tentando observar César, que parecia absolutamente compenetrado no facto de estar a escolher a sua refeição e alheio a todo o resto.

A sua mente reviu rapidamente a noite anterior e isso trouxe-lhe alguma irritação. Depois do que se tinha passado, nem uma única palavra dele. Aliás, passou o dia inteiro sem o ver, uma vez que ele saíra cedo, e só apareceu ao final da tarde, informando-a que iriam jantar ao Feitoria com outro casal e dizendo-lhe para se preparar.

Mal teve tempo para o fazer, resolvendo-se por um vestido leve em cores que ela sabia que a fariam realçar naquela sala onde predominam as madeiras escuras e uns sapatos de salto a condizer, maquilhando-se e prendendo graciosamente o cabelo.

Ainda assim, quando se viu ao espelho não pôde deixar de dar um sorriso ao imaginar qual seria a reacção de César. Estava um arraso e sabia disso. Mas, ao contrário daquilo que esperava, César não teve qualquer reacção visível, ficando imperturbável quando a viu, limitando-se a apressá-la para o carro. Abriu-lhe a porta e deu-lhe a mão para ela entrar, como sempre fazia, uma vez que o Mercedes SLS é extremamente baixo, dando a volta ao carro e entrando em seguida. Arrancaram sem uma palavra. César ligou o rádio e vieram até Lisboa a ouvir música, sem trocarem uma palavra que fosse até chegarem à mesa do restaurante.

Depois do que se tinha passado, ela não esperava, de todo, esta reacção por parte dele! Mas pensando bem, também não estava à espera que ele saísse da sala quando saiu, deixando-a satisfeita, mas a querer mais, muito mais.

Ele era cada vez mais um mistério para ela. Confundia-a, propositadamente ou não. E agora estava aqui nesta sala magnífica e elegante com ele e com um casal em que o marido era já um conhecido de longa data, cliente habitual do seu local de trabalho e a sua mulher parecia ter ficado mesmerizada por César, sem ter a mínima ideia do porque de aqui estar.

Todos se decidiram pelo que queriam. Ana e João escolheram como entrada a salada de polvo com água de tomate e coentros, vinagrete de miso e algas, Céu optou pela vieira corada com puré de couve-flor e Cesar optou por um falso ravioli de camarão com dashi, coentros, lótus e jasmim. Como prato principal Ana escolheu um tamboril confitado em azeite negro de lúcia-lima, Céu pediu o robalo selvagem de mar corado com cuscos de lingueirão e João e César pediram vão de vitela mirandesa com dôme de batata e queijo Terrincho. César tomou a iniciativa de escolher os vinhos e pediu duas garrafas de Esporão Private Selection, uma de branco e outra de tinto, para acompanhar os peixes e as carnes, respectivamente.

Entretanto, João parecia já refeito do choque inicial de ver “Veronika” ali, na sua mesa, e assim que os menus foram levantados voltou-se para César:

- Sempre vai para a frente com o seu projecto?

- Sim, tenho feito algumas démarches nesse sentido. E sei que só terei uma produção em condições daqui a algum tempo, mas quero assegurar-me da sua distribuição logo que a tenha.

- E é por isso que estamos aqui?

- É. – Respondeu César secamente, não deixando espaço para dúvidas. Aquele não era, de todo, um jantar informal entre amigos. Era um jantar de negócios.

- E o que é que pretende de mim? – Perguntou João, olhando-o meio de lado.

- A sua companhia. – Disse, olhando fixamente para Ana, que ao ouvir estas palavras se encolheu um pouco na cadeira. Céu olhou para César sub-repticiamente, perguntando-se o que estava ele a fazer. César continuou – Quero comprar a sua empresa.

João olhou-o com um ar grave, enquanto tentava perceber se o trocadilho de palavras que ele tinha usado era intencional, pondo de lado esse pensamento de imediato. Aliás, bastava olhar para “Veronika”, a mulher que ele próprio cobiçava há anos e, em todo esse tempo, o mais perto que estivera dela era este momento, sentado a esta mesa.

- A minha empresa não está à venda. – Respondeu com um ar sério.

- Tudo está à venda. Tudo tem um preço.

- Acha mesmo isso? – Perguntou Ana, curiosa.

- Acho. Claro que o preço não tem sempre de ser traduzido em valor monetário. Há coisas mais importantes que o dinheiro.

- Bem, a minha empresa não está. – Apressou-se João a dizer.

As entradas chegaram, interrompendo a conversa. Todos iniciaram a refeição, deliciando-se com os sabores requintados que puseram a conversa em pausa. De qualquer forma, o anuncio da intenção de César tinha deixado a atmosfera um pouco mais tensa do que antes, pelo que as palavras que se foram trocando tinham mais a ver com a comida do que com negócios. Quando terminaram as entradas, foram servidos os pratos principais, continuando todos a deliciar-se, quer com a comida, quer com os vinhos, absolutamente deliciosos.

Logo que terminaram, foram pedidas as sobremesas. Ana escolheu um Parfait de Baunilha e alfazema, Céu escolheu rosas, líchias, lima e amêndoa, João pediu toucinho-do-céu com citrinos e César pediu a selecção de queijos nacionais.

César pediu um café, no que foi imitado por todos, menos pela Céu e enquanto aguardava rodava o copo com o que restava do vinho tinto por debaixo do nariz, soltando assim o seu aroma.

- João, sabe o quanto é raro entrar num restaurante de luxo em L.A. e encontrar vinhos Portugueses nas cartas? Não digo que eles não tenham lá bons vinhos, e Napa Valley tem produções de excelente qualidade. Mas, há cá vinhos considerados medíocres que são melhores do que o melhor de lá… Sabe, então, porque é que os nossos vinhos não estão lá?

- Não… – respondeu João sendo sincero.

- Porque ninguém em L.A. ouviu falar de Portugal, e quando ouviu pensam que é uma cidade ou região espanhola. Ou seja, para eles vinho Espanhol ou Português é a mesma coisa.

- Mas não é. Não tem nada a ver… – disse João com uma ponta de indignação.

- Eu sei disso. Os Portugueses que lá vivem também. Mas, de resto, mais ninguém sabe. E isso, para lhe ser franco, chateia-me.

João assentiu com a cabeça, concordando. César continuou:

- Quero a sua companhia para integrar num grupo de empresas que detenho. Será expandida, criando mais postos de trabalho. As minhas condições para si são simples: um ordenado que lhe permitira manter ou até melhorar o seu estilo de vida actual e uma participação nos lucros directos da sua empresa como bonificação anual. Eu tenho a vantagem de poder controlar todo o processo desde a produção, armazenamento e distribuição interna e externa e a sua empresa ganha uma posição única em relação ao mercado internacional a que não pode almejar sozinha. Esta é a minha proposta.

João ficou em silêncio enquanto considerava o que César lhe tinha dito. Foi Ana quem se adiantou:

- E se não vendermos?

- Essa não é uma opção. – Disse César calmamente com um sorriso nos lábios e uma certeza absoluta. Encarou Ana, olhando-a firmemente nos olhos, com uma expressão suave, colocou uma mão na perna de Céu e continuou, num tom de voz grave e carregado de assertividade – Eu consigo sempre o que quero, seja de que maneira for. – E virou-se, olhando para a Céu, profundamente nos olhos e perguntou – Não é?

Céu limitou-se a acenar com um sorriso, fazendo o seu papel, que percebia agora perfeitamente qual era, não sem uma pequena pontada de tristeza. César voltou de novo o seu olhar para Ana:

Se eu decidir comprar outra empresa dentro da vossa área vou expandi-la como farei com a vossa se a comprar, e vou começar a açambarcar o mercado, até chagar a um ponto em que vocês estejam a lidar com lucros marginais e estejam sobredimensionados. Portanto, ou ficam comigo e lucram com isso, ou escolhem não ficar e arriscam-se a perder o que têm. No fundo é assim tão simples.

Ana, talvez pelo que foi dito, pelo tom de voz absolutamente calmo e sedutor, pela expressão divertida de César ou, se calhar e sobretudo, por causa da força que aquele olhar tinha estava ligeiramente corada, e não era do vinho. Já João fazia os possíveis para não olhar para a mão de César pousada um pouco acima do joelho de Céu.

- Mas não quero uma resposta vossa hoje, nem vamos estragar a refeição pelo teor da conversa… além disso, temos de ir. Tenho de levar a “Veronika” ao trabalho.

Ana ficou curiosa:

- A sério? A esta hora? O que faz, Veronika? Céu sorriu.

- Sou bailarina.

- A sério? Ballet clássico?

- Não, mais contemporâneo.

- Que inveja. – Continuou Ana com o rosto perfeitamente iluminado de admiração – Eu sempre quis ser bailarina, mas nunca tive a oportunidade…

- Estamos sempre a tempo, ainda que seja só para nós próprios. Há academias que lhe podem dar aulas. Nunca chegará, de certeza, à categoria de uma profissional, mas pode sempre aproveitar para se exercitar um pouco…

- E conhece algum sítio que recomende?

- De certeza que lhe poderá dar algumas referências para a próxima. – Interrompeu César de forma quase indelicada. E virou-se para a Céu – Temos mesmo de ir.

Sim, temos. – Assentiu Céu, levantando-se, no que foi imediatamente imitada por César e João. César afastou a cadeira, cavalheiro como sempre, dando-lhe mais espaço para sair da mesa, ela despediu-se de Ana, que continuou sentada e de João, tendo César feito o mesmo em seguida, beijando as costas da mão de Ana, como tinha feito à chegada, e selou o encontro com um aperto de mão a João.

Já no carro, Céu não se conteve:

- Porque é que tenho a sensação de ter passado a noite a ver dois miúdos a comparar o tamanho das pilas?

- Porque foi isso mesmo que aconteceu.

- E o que é que achas que ficou demonstrado?

- Que a minha era claramente maior. Ele soube disso assim que te viu, e ela descobriu por ela própria.

- Estavas a seduzi-la?

- Não. – Respondeu César, o que lhe valeu um olhar que dizia claramente não-brinques-comigo-que-eu-estava-lá-e-vi – Mas quis que ela se sentisse seduzida, e acho que atingi o meu objectivo. Não achas?

- Acho que se quisesses a levavas para casa…

- Já tenho gente que chegue em casa.

Céu sorriu. Sabia que ele estava a ser sincero. Aliás, ele era sempre sincero com ela, tanto que às vezes até doía.

- Achas que eles vão vender-te a empresa que queres?

- Tenho a certeza. Vão preferir ter algo certo a ficar na dúvida se ainda terão algo daqui a dois ou três anos.

- Deixa-me dizer-te uma coisa: César Caetano, tu és um grande sacana!

- Eu sei… – respondeu César com um sorriso.