A tarde abrasava a
encosta, e o alcatrão ondulava sob o calor, como se respirasse. A estrada
serpenteava pela montanha acima, estreita, ladeada por pinheiros altos e
falésias de pedra seca. Ao longe, as linhas azuis das montanhas pirenaicas
começavam a erguer-se, ameaçadoras e serenas.
Uma rapariga caminhava
de costas. Passos ritmados, cautelosos, olhos atentos à curva seguinte, o
polegar estendido na esperança vã de que alguém parasse.
Não devia ter mais de
dezoito anos. Ou talvez nem isso. O cabelo castanho preso num rabo-de-cavalo
desalinhado, colado à nuca com suor. T-shirt branca já manchada de pó e
esforço. Calções de ganga curtos, botas de caminhada já bem gastas. Às costas,
uma mochila pequena — daquelas que não são feitas para travessias, mas que ela
levava como se não tivesse escolha.
O rosto estava tenso.
Um misto de exaustão, frustração e teimosia. As bochechas queimadas pelo sol,
os lábios secos. Já perdera a conta aos carros que tinham passado por ela —
alguns nem abrandavam. Outros desviavam o olhar como se ela fosse parte da
paisagem. Um mosquito. Uma sombra.
Então ouviu o som
diferente.
Não o rugido comum de
um utilitário ou carrinha velha, mas um ronco grave, abafado e metálico. Um
carro caro. Um carro rápido. Um carro que não devia estar ali.
O Corvette C8 apareceu
na curva com o brilho do sol a bater no capô inclinado. Vermelho. Brilhante.
Moderno. O tipo de carro que devia estar a rolar junto à praia, não a subir uma
estrada de montanha onde mal cabia.
Ela virou-se com um
gesto automático e ergueu o braço.
O carro passou por
ela.
E, por um momento,
pareceu igual aos outros.
Mas vinte metros
adiante, as luzes de travão acenderam-se. O carro imobilizou-se com um sopro de
potência contida. Ela ficou parada durante um segundo, incrédula. Depois
começou a andar, rápida mas sem correr. O alcatrão queimava, e as solas já
estavam gastas.
Dobrou-se ligeiramente
para alcançar a janela do passageiro, que se abriu com um estalido elétrico.
Lá dentro, um homem.
Tinha talvez cinquenta
e poucos anos, barba curta com alguns fios grisalhos e cabelo escuro penteado
para trás. Usava óculos escuros com armação grossa, e uma t-shirt cinzenta que
deixava ver braços bronzeados, ainda fortes. O carro cheirava a couro e
desodorizante de estrada.
— Para onde vais? —
perguntou, sem tirar os olhos dela. A voz era grave, mas sem dureza.
Ela deu um meio
sorriso, encolhendo os ombros.
— Se me deixar na
próxima cidade, já é bom.
O homem assentiu, como
se fosse óbvio.
— Entra.
Ela abriu a porta com
cuidado, tirou a mochila e sentou-se. O banco era baixo, apertado. Um carro
feito para curvas, não para conforto. A mochila foi para o colo — não havia
espaço para mais nada.
O homem engatou a
mudança. O motor ronronou com prazer, e o Corvette voltou a lançar-se estrada
acima.
No rádio, os Led Zeppelin tocavam. “Whole Lotta
Love”. O volume estava alto, e ele cantarolava por cima, batendo os dedos
no volante com ritmo, indiferente à presença dela. Como se ela fosse apenas
mais um elemento do cenário. Como a estrada. Como a música.
Ela encostou a cabeça
ao vidro, os olhos semicerrados pela luz, deixando o som envolvê-la enquanto as
curvas se sucediam. Pela primeira vez naquele dia, não estava a caminhar. E
isso, por si só, já era quase um alívio.
Conduziram durante um bom bocado, em silêncio, entre curvas
apertadas e vales profundos onde o sol se filtrava pelas copas dos pinheiros. O
rugido do motor preenchia tudo, mas não era um ruído incómodo. Era constante.
Quase reconfortante. A rádio, sempre ligada, alternava entre baladas antigas e
riffs suados de uma geração passada. Ele parecia conhecer todas as letras.
Ela, calada, com a mochila ainda ao colo, os olhos a seguirem os
contornos da estrada que subia e descia em laços, não dizia nada. De quando em
quando, lançava-lhe um olhar furtivo — à boca semicerrada a cantar, à forma
como as mãos seguravam o volante com leveza, à linha de sombra por baixo dos
óculos escuros.
O carro desviou-se para uma estação de serviço discreta, encaixada
na berma de uma curva ampla. O letreiro dizia Área de Servicio El Serrat,
letras a desfazerem-se sob o sol. Um toldo gasto cobria duas bombas de
combustível. Havia uma loja anexa e duas mesas de madeira, numa zona de terra
batida. Um camião TIR dormitava ao fundo, e dois turistas reformados tomavam
café em copos de papel.
Quando o Corvette entrou no recinto, foi como se uma estrela de
cinema tivesse interrompido o enredo quotidiano. As cabeças viraram-se com um
reflexo automático. Um dos empregados parou de varrer e ficou estático. Os
olhos de todos prenderam-se ao carro, ao brilho metálico do capô, ao contraste
com a poeira acumulada no chão.
Ele desligou o motor e virou-se para ela, pela primeira vez em
quilómetros.
— Tens fome?
Ela abanou a cabeça, rápida, sem pensar.
— Não... estou bem. Obrigada.
O tom era baixo, quase culpado. O estômago apertava-lhe, mas havia
vergonha nas palavras. Ele olhou-a por um segundo. Não insistiu com voz. Apenas
abriu a porta e saiu, fechando-a com um estalido firme.
Caminhou até à loja com passo tranquilo, mãos nos bolsos. Parou ao
balcão e disse, com um sorriso meio irónico:
— Posso atestar?
O funcionário, um miúdo magro de cabelo oleoso, ficou a olhar para
ele sem reação.
— ¿Perdón?
Ele franziu o sobrolho, recompôs-se e repetiu, desta vez com um
sotaque quase cómico:
— ¿Puedo... llenar el depósito?
Um sorriso nasceu nos lábios do rapaz, que acenou e carregou num
botão.
— Sí, claro. Gasolina, señor.
Ele saiu, pegou na mangueira e começou a abastecer. O som do
combustível a entrar no depósito misturava-se com o zumbido das abelhas por
perto. Quando terminou, voltou ao interior da loja e estendeu algumas notas ao
rapaz, que agradeceu num castelhano automático.
— Y también — disse, apontando — duas destas.
Pegou em duas sanduíches plastificadas, com etiqueta colorida a prometer "delicias
del mar". A seu lado, agarrou duas garrafas grandes de água.
Pagou sem pressa, saiu com os itens no saco de papel pardo, e
regressou ao carro. Ela continuava sentada com a mochila ao colo, a olhar o
mundo pela janela como quem olha um país estrangeiro.
Ele entrou, pousou o saco no colo dela.
— Toma.
Ela olhou-o como se fosse um gesto inesperado, quase suspeito.
Pegou na sanduíche com ambas as mãos, num cuidado de cerimónia. Murmurou:
— Obrigada...
O carro arrancou devagar para sair da bomba, mas em vez de seguir
caminho, virou imediatamente à direita e parou numa zona de terra batida, junto
a uma mesa de piquenique.
Sem dizer palavra, ele saiu do carro. Esticou os braços ao sol.
Esperou.
Ela hesitou, depois abriu a porta com lentidão, ainda com a
mochila e a sanduíche na mão, e seguiu-o até à mesa.
Sentaram-se frente a frente. Ele destapou a própria sanduíche e
deu uma dentada casual, como quem cumpre um ritual sem importância.
Ela, por outro lado, demorou-se. Olhou para o plástico, depois
para ele, como se pedisse permissão uma segunda vez. Finalmente abriu a
embalagem e, no primeiro trago, mostrou uma fome que já vinha de longe. Comeu
rápido, como quem teme que lhe tirem o direito de o fazer. Depois parou,
embaraçada, os olhos fixos nele.
Ele sorria, discreto. Não havia troça naquele sorriso. Apenas a
constatação silenciosa de uma verdade simples: há dores que não se dizem — mas
que se percebem.
Voltaram ao carro com gestos lentos, como se o calor da tarde e o
silêncio da refeição improvisada tivessem deixado marcas nos músculos. Ela
limpou as mãos ao fundo da t-shirt, tentando não sujar o assento. Ele colocou o
cinto, ligou o motor, e o rugido familiar do Corvette devolveu-lhes a ilusão de
movimento — como se, ao acelerar, pudessem deixar para trás não só o lugar, mas
tudo o que traziam colado à pele.
A estrada voltava a enroscar-se na montanha como uma serpente
velha e sábia. Curva após curva, a altitude subia e com ela o mundo parecia
afastar-se mais e mais do que era terreno. Penhascos despontavam do lado
direito, vales profundos do lado esquerdo, e o céu começava a tingir-se de
laranja e azul escuro. Lá ao fundo, como uma pintura acidental, Andorra
prometia luzes e frio.
Durante largos minutos, apenas o som do motor e do vento a embater
nos espelhos.
Foi ele quem quebrou o silêncio, com uma pergunta casual, mas
lançada como um anzol:
— Então... vais mesmo só até à cidade mais próxima?
Ela hesitou. Depois abanou a cabeça.
— Não. Quero ir até Paris.
Ele lançou-lhe um olhar breve por trás dos óculos escuros, mas não
disse nada logo.
— Paris, hein?
— Sim. — O tom dela era firme, mas havia algo de frágil a vibrar
por baixo da voz. — Quero tentar ser modelo.
A resposta caiu no interior do carro como uma gota num prato
quente.
Durante um segundo ele ficou calado.
Depois riu-se. À gargalhada. Uma risada verdadeira, ruidosa, sem
filtro. A estrada estreita obrigava-o a manter os olhos à frente, mas o riso
sacudia-lhe os ombros.
Ela virou-se para ele com a cara carregada de indignação.
— O que foi? Acha que não sou bonita o suficiente?
Ele inspirou fundo, ainda com um sorriso nos lábios, mas a voz já
sem gozo:
— Não é isso, miúda. Bonita... és. Mas raparigas como tu há às
dúzias. Em cada esquina, em cada casting, em cada agência. E quase nenhuma
chega a lado nenhum. E mesmo as que chegam... pagam caro.
— Eu acho que tenho o que é preciso. — respondeu ela, num tom mais
seco, defensivo. — Não quero ser mais uma. Quero mesmo tentar.
Ele olhou-a de lado por um instante mais longo do que devia. Os
faróis do carro cruzaram uma curva e iluminaram brevemente um rebanho de casas
dispersas, enterradas no vale. Depois disse, sem ironia:
— Só se estiveres disposta a vender a alma ao diabo.
Ela não respondeu logo. Respirou fundo. Baixou os olhos.
Quando falou, foi em tom baixo, mas firme. Cada palavra pesada
como uma pedra.
— Talvez já seja a única coisa que tenho para trocar.
Ele ficou em silêncio. O volante entre as mãos tornou-se, por um
momento, algo para se agarrar mais do que para conduzir. O motor continuava a
cantar, impassível, mas dentro do carro o ar ficou mais denso. Como se, de
repente, tivessem entrado num túnel invisível.
Não falaram mais.
O céu escurecia à medida que subiam. As primeiras estrelas
começavam a rasgar o pano da noite, e nas encostas, luzes dispersas surgiam
aqui e ali, como constelações de aldeias esquecidas. Andorra aproximava-se. No
horizonte, os postos de controlo da fronteira brilhavam como promessas ou
ameaças — era difícil dizer qual.
Ele não a olhava. Ela não o olhava. Mas, por um instante, o
silêncio entre os dois era a única coisa que fazia sentido.
A fronteira surgiu como um corte discreto no tecido da montanha.
Sem filas, sem pressas. Passaram com um aceno de cabeça, os guardas mais
interessados no Corvette do que nos passageiros. O carro seguiu, mergulhado na
noite cada vez mais densa. As luzes tornavam-se escassas, e a estrada parecia
uma fita de sombra enrolada nas encostas.
Foi ele quem quebrou o silêncio.
— Se quiseres… levo-te a Paris.
Ela virou-se devagar, como se tivesse ouvido mal.
— A sério? Porquê?
Ele deu de ombros, com um leve sorriso nos lábios.
— Nunca fui a Paris. Parece-me uma boa ideia.
Ela ficou a observá-lo. Queria perguntar mais, mas não perguntou.
Voltou o olhar para a estrada. As mãos apertaram ligeiramente as correias da
mochila, ainda ao colo.
— Está bem. — disse por fim, num tom quase neutro.
Seguiram por mais alguns quilómetros até a estrada os deixar numa
vila adormecida, quase emboscada pela escuridão. Três ruas cruzadas, um coreto
vazio, um café com as cadeiras já empilhadas. No final de uma subida íngreme,
um letreiro apagado anunciava: Hostal Mont Vell.
Pararam. Ele desligou o motor. O calor do dia ainda se sentia na
carroçaria do carro.
Dentro, a receção cheirava a madeira velha e desinfetante. Uma
senhora idosa de olhos atentos e bata florida olhou-os com uma amabilidade
prática.
— Só há um quarto disponível — disse, como quem apresenta um facto
inegociável. — Os outros estão ocupados desde a tarde.
Ele não hesitou. Puxou da carteira.
— Fico com o quarto.
Ela manteve-se alguns passos atrás, em silêncio, a olhar para os sapatos.
Subiram as escadas estreitas até ao primeiro andar. O quarto era
pequeno, aquecido por um candeeiro de parede e uma luz ténue vinda de uma
janela entreaberta. No centro, uma cama de casal estreita, coberta por uma
colcha antiga. Ao lado, uma mesa de cabeceira com um abajur, e encostado à
parede oposta, um sofá gasto de três lugares.
Ela ficou imóvel à entrada, com a mochila ainda às costas, os
olhos fixos na cama.
Ele pousou as chaves sobre a mesa e disse, num tom simples:
— Vai tomar um duche. Eu vou buscar qualquer coisa para comermos.
Sem esperar resposta, pegou na carteira de novo e saiu, fechando a
porta com um clique seco.
Ela ficou sozinha.
O quarto era modesto, mas limpo. O som do motor do carro morria ao
longe. Encaminhou-se devagar para a pequena casa de banho. No espelho oval por
cima do lavatório, viu o rosto cansado, o cabelo desgrenhado, os olhos que
pareciam mais velhos do que eram.
Fechou a porta atrás de si, num gesto quase solene.
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