terça-feira, 26 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 6



Voltaram à estrada com o sol já a baixar sobre os telhados inclinados de Foix. O almoço terminara com gargalhadas tímidas — ela a gozar com o sotaque dele ao tentar pronunciar “cassoulet”, ele a contar-lhe como quase ficou preso no castelo por ter passado por uma porta com o aviso “accès interdit” por curiosidade.

O ambiente no carro estava diferente. Mais leve. Mais solto. Falavam de detalhes da visita, da vista do alto da torre, do espadachim reformado que fazia demonstrações no pátio, da loja de souvenirs onde Óscar quase comprou uma espada de brincar “só para provocar a filha”.

A estrada era agora um fio tranquilo que os levava em direção a Toulouse, onde Óscar anunciou com naturalidade:

— Hoje ficamos lá a dormir.

Ela não contestou. Limitou-se a olhar a paisagem a passar.

— Não tens mais roupa? — perguntou ele, como quem lembra algo no fim de uma lista.

Ela encolheu os ombros.

— Tenho outros calções. E mais duas t-shirts. Uma delas é aquela larga... com que durmo.

— Só isso?

Ela assentiu.

Ele não disse mais nada. Mas, ao chegarem à cidade — ruas largas, prédios em tijolo avermelhado, trânsito a abrandar o ritmo da tarde — dirigiu-se a uma zona comercial sem dar explicações.

Acabaram por entrar numa loja de roupa.

Ela ficou parada à entrada.

— Não posso comprar nada.

— Podes sim. — respondeu ele, já a andar pelos corredores. — És minha convidada. Não discutas.

Ela protestou, mas ele não lhe deu margem. Acabou por escolher umas calças de ganga, uma camisa leve, mais duas t-shirts, roupa interior, meias e um par de ténis. No provador, Benedita olhou-se ao espelho com um desconforto novo: não estava habituada à sensação de merecer nada daquilo.

Ele também comprou roupa — uns jeans escuros, duas camisas, cuecas, meias.

Ela reparou, com estranheza, que até então ele não trouxera bagagem alguma. Nem mochila, nem mala, nem saco de viagem. Nada.

A constatação ficou por dizer, mas instalou-se no fundo do pensamento.


No hotel, pediram um quarto com duas camas individuais.

— Só isso? — perguntou a rececionista.

— Só isso. — respondeu Óscar, com um meio sorriso.

No quarto, cada um levou a sua roupa para o armário sem grande cerimónia. Ela foi tomar banho primeiro. Quando saiu, com o cabelo húmido preso numa toalha, vestida com a t-shirt larga e os calções, Óscar entrou com o necessaire improvisado que acabara de comprar. Disse apenas: “Dois minutos” — e desapareceu para a casa de banho.

Quando ele saiu, o vapor escapava-se pela porta entreaberta e o som do secador já preenchia o quarto. Ela estava em frente ao espelho, a secar o cabelo com um ar distraído. Só quando se virou e o viu, congelou por um instante.

No peito dele, ligeiramente à mostra por entre os botões da camisa entreaberta, estava uma cicatriz longa e recente, ainda com tons de rosa escuro. Um sulco vertical, limpo, cirúrgico. Um corte de bisturi, não de vida selvagem.

— O que foi isso? — perguntou ela, já com o secador desligado.

Ele olhou para ela com um sorriso matreiro.

— Morri.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Morreste?

— Sim. Mas nem Deus me quis no céu, nem o Diabo no inferno. Acabei por ficar por cá.

Ela sorriu, apesar de si mesma.

Mas ele ficou sério. Sentou-se na beira da cama e, com um gesto lento, abotoou a camisa.

— Tive problemas cardíacos. Graves. Deram-me três meses se não fizesse a cirurgia. E mesmo com cirurgia, as probabilidades eram más.

Ela ficou calada. O cabelo ainda pingava um pouco, a toalha agora esquecida nas mãos.

— Fiz a operação há poucos meses. Ainda me estou a habituar à ideia de estar vivo.

Ela sentou-se na cama em frente, sem dizer nada. Como se a revelação criasse um novo território, mais íntimo, mais frágil, entre os dois.

Ele deitou-se devagar, de lado, voltado para a parede.

— Boa noite, Benedita.

— Boa noite, Óscar.

A luz apagou-se. O quarto ficou em silêncio.

E entre as duas camas, naquela zona invisível onde as palavras já não chegam, havia agora uma coisa nova: confiança.


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!