|
O ambiente no
carro estava diferente. Mais leve. Mais solto. Falavam de detalhes da visita,
da vista do alto da torre, do espadachim reformado que fazia demonstrações no
pátio, da loja de souvenirs onde Óscar quase comprou uma espada de brincar “só
para provocar a filha”.
A estrada era
agora um fio tranquilo que os levava em direção a Toulouse, onde Óscar anunciou com naturalidade:
— Hoje
ficamos lá a dormir.
Ela não
contestou. Limitou-se a olhar a paisagem a passar.
— Não tens
mais roupa? — perguntou ele, como quem lembra algo no fim de uma lista.
Ela encolheu
os ombros.
— Tenho
outros calções. E mais duas t-shirts. Uma delas é aquela larga... com que
durmo.
— Só isso?
Ela assentiu.
Ele não disse
mais nada. Mas, ao chegarem à cidade — ruas largas, prédios em tijolo
avermelhado, trânsito a abrandar o ritmo da tarde — dirigiu-se a uma zona
comercial sem dar explicações.
Acabaram por
entrar numa loja de roupa.
Ela ficou
parada à entrada.
— Não posso
comprar nada.
— Podes sim.
— respondeu ele, já a andar pelos corredores. — És minha convidada. Não discutas.
Ela
protestou, mas ele não lhe deu margem. Acabou por escolher umas calças de
ganga, uma camisa leve, mais duas t-shirts, roupa interior, meias e um par de
ténis. No provador, Benedita olhou-se ao espelho com um desconforto novo: não
estava habituada à sensação de merecer nada daquilo.
Ele também
comprou roupa — uns jeans escuros, duas camisas, cuecas, meias.
Ela reparou,
com estranheza, que até então ele não trouxera bagagem alguma. Nem mochila, nem
mala, nem saco de viagem. Nada.
A constatação
ficou por dizer, mas instalou-se no fundo do pensamento.
No hotel,
pediram um quarto com duas camas individuais.
— Só isso? —
perguntou a rececionista.
— Só isso. —
respondeu Óscar, com um meio sorriso.
No quarto,
cada um levou a sua roupa para o armário sem grande cerimónia. Ela foi tomar
banho primeiro. Quando saiu, com o cabelo húmido preso numa toalha, vestida com
a t-shirt larga e os calções, Óscar entrou com o necessaire improvisado que
acabara de comprar. Disse apenas: “Dois minutos” — e desapareceu para a casa de
banho.
Quando ele
saiu, o vapor escapava-se pela porta entreaberta e o som do secador já
preenchia o quarto. Ela estava em frente ao espelho, a secar o cabelo com um ar
distraído. Só quando se virou e o viu, congelou por um instante.
No peito dele,
ligeiramente à mostra por entre os botões da camisa entreaberta, estava uma cicatriz longa e recente, ainda com
tons de rosa escuro. Um sulco vertical, limpo, cirúrgico. Um corte de bisturi,
não de vida selvagem.
— O que foi
isso? — perguntou ela, já com o secador desligado.
Ele olhou
para ela com um sorriso matreiro.
— Morri.
Ela ergueu
uma sobrancelha.
— Morreste?
— Sim. Mas
nem Deus me quis no céu, nem o Diabo no inferno. Acabei por ficar por cá.
Ela sorriu,
apesar de si mesma.
Mas ele ficou
sério. Sentou-se na beira da cama e, com um gesto lento, abotoou a camisa.
— Tive
problemas cardíacos. Graves. Deram-me três meses se não fizesse a cirurgia. E
mesmo com cirurgia, as probabilidades eram más.
Ela ficou
calada. O cabelo ainda pingava um pouco, a toalha agora esquecida nas mãos.
— Fiz a
operação há poucos meses. Ainda me estou a habituar à ideia de estar vivo.
Ela sentou-se
na cama em frente, sem dizer nada. Como se a revelação criasse um novo
território, mais íntimo, mais frágil, entre os dois.
Ele deitou-se
devagar, de lado, voltado para a parede.
— Boa noite,
Benedita.
— Boa noite,
Óscar.
A luz
apagou-se. O quarto ficou em silêncio.
E entre as
duas camas, naquela zona invisível onde as palavras já não chegam, havia agora
uma coisa nova: confiança.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!