A porta abriu-se com um rangido discreto. Ele entrou com dois
sacos de papel nas mãos, o cheiro a batatas fritas e gordura doce a invadir de
imediato o quarto. A luz continuava acesa, e a janela deixava entrar uma réstia
da noite lá fora — uma brisa leve, fresca, montanhosa.
Ela estava sentada na cama, pernas cruzadas, com o cabelo ainda
húmido a escorrer em fios pelos ombros. Trazia vestida uma t-shirt larga demais
para o seu corpo — uma daquelas que se vendem em postos de estrada com slogans
esquecíveis — e que lhe caía como um vestido improvisado, tapando-lhe quase até
aos joelhos. A roupa do dia secava num cabide improvisado à porta da casa de
banho.
Ela olhou para ele quando entrou, mas não disse nada.
Ele pousou os sacos sobre a mesa de cabeceira e, com um gesto
prático, abriu-os.
— Trouxe o menu completo. Batatas, hambúrguer, refrigerante… o
pacote todo. — disse, com um meio sorriso. — Não me culpes se estiver frio.
Ela esboçou um agradecimento quase imperceptível, pegando na caixa
mais próxima com um cuidado que destoava do contexto. Desta vez, comeu devagar.
Comedida. Como se cada dentada fosse medida e controlada. O apetite voraz da
tarde desaparecera, substituído por uma contenção quase cerimonial.
Entre eles, a televisão presa à parede debitava o som abafado de
uma série americana dobrada em espanhol — vozes com pouco nexo, cheias de
clichés e gargalhadas de estúdio.
Comeram assim: um ao lado do outro, mas cada um no seu espaço. Ele
sentado no sofá. Ela na beira da cama. A luz amarela do abajur fazia sombras
suaves nas paredes.
Quando terminaram, ele recolheu os restos — caixas de cartão,
guardanapos manchados, copos de refrigerante a meio. Levantou-se, colocou tudo
no pequeno caixote do lixo ao lado da cómoda, limpou as mãos aos jeans e voltou
a sentar-se.
Ela ficou em silêncio, os olhos pousados na televisão sem
realmente ver.
Ele olhou-a, levemente inclinado para a frente, e disse, num tom
neutro mas claro:
— Podes ficar com a cama à vontade. Eu fico no sofá.
Ela virou-se para ele, como quem esperava ouvir outra coisa. Os
ombros relaxaram, quase imperceptivelmente.
— Obrigada. — disse, baixo.
Sem cerimónias, ela deitou-se, puxando a colcha até à cintura.
Enrolou-se devagar, como quem se protege do mundo com tecido alheio. Voltou-lhe
as costas.
Ele apagou a luz da mesa de cabeceira, deixando apenas a da casa
de banho, entreaberta, a iluminar o quarto com um tom pálido e frio.
Encostou-se no sofá. Não era confortável, mas era suficiente.
Cruzou os braços, olhou o tecto durante alguns minutos. Depois fechou os olhos.
O ruído da televisão, agora quase murmúrio, enchia o espaço entre
eles. E durante muito tempo, foi tudo o que se ouviu.
O quarto mantinha-se mergulhado numa penumbra macia. Só a luz da
casa de banho, difusa, azulada, se filtrava pela porta entreaberta. Lá fora, o
som longínquo de um carro passava pela estrada. A televisão, agora em volume
quase inaudível, continuava a debitar episódios que ninguém via.
Ela já se deitara, o corpo enrolado sob a colcha, de costas para
ele. O sofá rangia sob o peso dele, que se mantinha imóvel.
Passaram-se alguns minutos até ele falar.
— Não tenhas ideias esquisitas durante a noite.
A voz saiu seca, sem rodeios. Não abriu os olhos. Não mudou o tom.
Como quem avisa, não como quem teme.
— Tenho sono leve. E tudo o que tenho de valor está trancado no
carro. E não vais conseguir acesso.
O silêncio que se seguiu foi denso. Ela respirou fundo antes de
responder.
— És sempre assim tão… pessimista?
Ele abriu um olho, devagar. Depois o outro. Virou ligeiramente a
cabeça na direção dela, embora a luz mal lhe revelasse o rosto.
— Pessimista?
— Sim. — disse ela, com a voz ainda baixa. — Pelo que disseste
agora. E também pela forma como reagiste quando eu falei de ir para Paris.
Ele soltou uma gargalhada breve, rouca.
— Isso não é pessimismo. É realismo.
Ficou um instante calado, e depois acrescentou, num tom que se
tornou mais grave, mais cansado:
— Quando tinha a tua idade, também era um idealista. Durante muito
tempo, aliás. Via o mundo com lentes cor-de-rosa. Acreditava em coisas boas, em
planos, em finais felizes. Mas depois… há uma altura em que tiras os óculos.
Ela não disse nada.
Ele continuou, quase como se falasse para o escuro:
— E quando isso acontece… vês o mundo como ele é. E o mundo é
feio. Não quer saber dos teus sonhos. Nem dos teus sentimentos. Podes passar a
vida a cuidar de alguém, a despejar tudo o que tens nessa pessoa, e ainda assim
descobrir que para ela… foste só útil. Como uma ferramenta. Uma ponte. E uma
ponte não se ama. Usa-se.
A voz dele endureceu, mas não subiu.
— Mesmo quem diz que te ama… pode não te respeitar. E sem
respeito… nada vale a pena.
Do outro lado do quarto, ela não respondeu de imediato. A colcha
mexeu-se ligeiramente. Talvez estivesse a tentar encontrar nova posição. Talvez
só estivesse a digerir as palavras.
Depois disse, num fio de voz:
— Boa noite.
Ele fechou os olhos outra vez.
— Boa noite. — murmurou.
O quarto ficou de novo em silêncio. Mas agora havia algo mais espesso
no ar — uma memória partilhada sem nomes, uma dor sem explicação, uma trégua
silenciosa entre dois desconhecidos que talvez, naquela noite, se tenham
compreendido um pouco mais.
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