terça-feira, 12 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 2


 

A porta abriu-se com um rangido discreto. Ele entrou com dois sacos de papel nas mãos, o cheiro a batatas fritas e gordura doce a invadir de imediato o quarto. A luz continuava acesa, e a janela deixava entrar uma réstia da noite lá fora — uma brisa leve, fresca, montanhosa.

Ela estava sentada na cama, pernas cruzadas, com o cabelo ainda húmido a escorrer em fios pelos ombros. Trazia vestida uma t-shirt larga demais para o seu corpo — uma daquelas que se vendem em postos de estrada com slogans esquecíveis — e que lhe caía como um vestido improvisado, tapando-lhe quase até aos joelhos. A roupa do dia secava num cabide improvisado à porta da casa de banho.

Ela olhou para ele quando entrou, mas não disse nada.

Ele pousou os sacos sobre a mesa de cabeceira e, com um gesto prático, abriu-os.

— Trouxe o menu completo. Batatas, hambúrguer, refrigerante… o pacote todo. — disse, com um meio sorriso. — Não me culpes se estiver frio.

Ela esboçou um agradecimento quase imperceptível, pegando na caixa mais próxima com um cuidado que destoava do contexto. Desta vez, comeu devagar. Comedida. Como se cada dentada fosse medida e controlada. O apetite voraz da tarde desaparecera, substituído por uma contenção quase cerimonial.

Entre eles, a televisão presa à parede debitava o som abafado de uma série americana dobrada em espanhol — vozes com pouco nexo, cheias de clichés e gargalhadas de estúdio.

Comeram assim: um ao lado do outro, mas cada um no seu espaço. Ele sentado no sofá. Ela na beira da cama. A luz amarela do abajur fazia sombras suaves nas paredes.

Quando terminaram, ele recolheu os restos — caixas de cartão, guardanapos manchados, copos de refrigerante a meio. Levantou-se, colocou tudo no pequeno caixote do lixo ao lado da cómoda, limpou as mãos aos jeans e voltou a sentar-se.

Ela ficou em silêncio, os olhos pousados na televisão sem realmente ver.

Ele olhou-a, levemente inclinado para a frente, e disse, num tom neutro mas claro:

— Podes ficar com a cama à vontade. Eu fico no sofá.

Ela virou-se para ele, como quem esperava ouvir outra coisa. Os ombros relaxaram, quase imperceptivelmente.

— Obrigada. — disse, baixo.

Sem cerimónias, ela deitou-se, puxando a colcha até à cintura. Enrolou-se devagar, como quem se protege do mundo com tecido alheio. Voltou-lhe as costas.

Ele apagou a luz da mesa de cabeceira, deixando apenas a da casa de banho, entreaberta, a iluminar o quarto com um tom pálido e frio.

Encostou-se no sofá. Não era confortável, mas era suficiente. Cruzou os braços, olhou o tecto durante alguns minutos. Depois fechou os olhos.

O ruído da televisão, agora quase murmúrio, enchia o espaço entre eles. E durante muito tempo, foi tudo o que se ouviu.

O quarto mantinha-se mergulhado numa penumbra macia. Só a luz da casa de banho, difusa, azulada, se filtrava pela porta entreaberta. Lá fora, o som longínquo de um carro passava pela estrada. A televisão, agora em volume quase inaudível, continuava a debitar episódios que ninguém via.

Ela já se deitara, o corpo enrolado sob a colcha, de costas para ele. O sofá rangia sob o peso dele, que se mantinha imóvel.

Passaram-se alguns minutos até ele falar.

— Não tenhas ideias esquisitas durante a noite.

A voz saiu seca, sem rodeios. Não abriu os olhos. Não mudou o tom. Como quem avisa, não como quem teme.

— Tenho sono leve. E tudo o que tenho de valor está trancado no carro. E não vais conseguir acesso.

O silêncio que se seguiu foi denso. Ela respirou fundo antes de responder.

— És sempre assim tão… pessimista?

Ele abriu um olho, devagar. Depois o outro. Virou ligeiramente a cabeça na direção dela, embora a luz mal lhe revelasse o rosto.

— Pessimista?

— Sim. — disse ela, com a voz ainda baixa. — Pelo que disseste agora. E também pela forma como reagiste quando eu falei de ir para Paris.

Ele soltou uma gargalhada breve, rouca.

— Isso não é pessimismo. É realismo.

Ficou um instante calado, e depois acrescentou, num tom que se tornou mais grave, mais cansado:

— Quando tinha a tua idade, também era um idealista. Durante muito tempo, aliás. Via o mundo com lentes cor-de-rosa. Acreditava em coisas boas, em planos, em finais felizes. Mas depois… há uma altura em que tiras os óculos.

Ela não disse nada.

Ele continuou, quase como se falasse para o escuro:

— E quando isso acontece… vês o mundo como ele é. E o mundo é feio. Não quer saber dos teus sonhos. Nem dos teus sentimentos. Podes passar a vida a cuidar de alguém, a despejar tudo o que tens nessa pessoa, e ainda assim descobrir que para ela… foste só útil. Como uma ferramenta. Uma ponte. E uma ponte não se ama. Usa-se.

A voz dele endureceu, mas não subiu.

— Mesmo quem diz que te ama… pode não te respeitar. E sem respeito… nada vale a pena.

Do outro lado do quarto, ela não respondeu de imediato. A colcha mexeu-se ligeiramente. Talvez estivesse a tentar encontrar nova posição. Talvez só estivesse a digerir as palavras.

Depois disse, num fio de voz:

— Boa noite.

Ele fechou os olhos outra vez.

— Boa noite. — murmurou.

O quarto ficou de novo em silêncio. Mas agora havia algo mais espesso no ar — uma memória partilhada sem nomes, uma dor sem explicação, uma trégua silenciosa entre dois desconhecidos que talvez, naquela noite, se tenham compreendido um pouco mais.


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