Saíram do quarto pouco depois das oito, ambos já vestidos e com os
rostos ainda meio apagados pela noite mal dormida.
Ela trazia novamente a roupa do dia anterior, agora seca e
ligeiramente amarrotada. O cabelo apanhado de forma apressada, os olhos ainda
cansados. Ele mantinha o mesmo tom prático de sempre: t-shirt escura, jeans,
óculos de sol já no rosto antes mesmo de saírem para a luz.
Trocaram poucas palavras na receção. Apenas o necessário. Um bom dia
murmurado à senhora idosa, um obrigado seco no momento do pagamento. Saíram para a
rua fria e silenciosa, onde o Corvette os esperava como um animal inquieto ao
sol.
A estrada serpenteava ainda entre montes e aldeias pequenas quando
pararam num restaurante à beira da estrada — desses com toldo esbatido, mesas
de ferro e cheiro persistente a café queimado.
Sentaram-se junto à janela, de frente um para o outro, cada um com
a sua chávena e o seu prato — croissants, pão com manteiga, sumo de laranja.
Comeram em relativo silêncio. Ela parecia ainda meio ausente, os olhos
vagueando pela janela como se procurassem qualquer coisa na paisagem. Ele, por
seu lado, parecia prisioneiro de um mau acordar: sobrancelhas carregadas,
movimentos curtos e secos, o café bebido em goles bruscos.
As únicas frases trocadas foram funcionais:
— Queres açúcar?
— Não, obrigado.
— Vais comer isso?
— Sim.
Nada mais.
Voltaram à estrada já perto das dez. O sol começava a subir,
quebrando o frio da manhã. A paisagem tornava-se mais suave, menos agreste. A
linha invisível da fronteira passou por eles com um pequeno sinal azul onde se
lia FRANCE,
ladeado pelas estrelas da União Europeia.
Foi só ali, depois de quilómetros partilhados e palavras evitadas,
que ela se virou finalmente para ele.
— Chamo-me Benedita.
Ele olhou-a de relance, sem surpresa, e depois deixou que um
pequeno sorriso se desenhasse nos lábios.
— Óscar. — respondeu. — Muito prazer, Benedita.
Ela voltou o rosto para a frente, mas esboçou um sorriso discreto.
E naquele breve instante, entre uma curva e outra, havia qualquer coisa de novo
no ar — como se tivessem finalmente atravessado não só uma fronteira geográfica,
mas outra mais funda, mais difícil de nomear.
O silêncio voltou, mas já não era o mesmo. Havia nele agora uma
espécie de trégua tácita, uma aceitação de presença. A estrada tornava-se mais
plana, os campos abriam-se em tons de trigo e verde claro, e o sol, subindo, ia
secando o que restava da noite.
Ela olhou pela janela durante algum tempo, depois voltou-se de
novo para ele:
— Já ias para Paris?
Ele abanou a cabeça, sem tirar os olhos da estrada.
— Não.
Ela esperou um momento antes de perguntar:
— Então... por que vais?
— Para te deixar lá.
A resposta saiu num tom simples, como quem diz um facto. Sem
floreados, sem pose de salvador.
Ela ficou a observá-lo, talvez a tentar perceber o que havia por
trás daquela disponibilidade. Depois perguntou:
— E depois?
Ele deu uma leve risada, mas não respondeu de imediato. O motor
ronronava com gosto, embalado pela estrada lisa.
— Depois… quero ir até Nürburg.
— Nürburg?
— Sim. — disse ele, finalmente virando-se ligeiramente para ela. —
Para experimentar este carro no circuito de Nürburgring.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— A sério?
— A sério. — confirmou, agora com um brilho nos olhos que não
tinha mostrado antes. — E além disso… sempre posso aproveitar para esticar o
carro nas Autobahns. Na Alemanha há troços sem limite de velocidade. E este
bicho foi feito para correr.
Ele pousou brevemente a mão sobre o volante, como quem afaga um
animal de estimação.
Ela ficou em silêncio. Olhava-o agora com uma curiosidade nova —
como se, pela primeira vez, visse nele alguém que também estava em fuga, mesmo
que não dissesse. Não fugia de ninguém em particular. Mas fugia de ficar
parado.
Talvez fosse isso que os ligava sem saberem.
Dois corpos em trânsito.
O carro deslizava pela autoestrada com uma suavidade quase irreal.
O ronco do motor, mesmo contido, fazia-se sentir mais no peito do que nos
ouvidos. O mundo lá fora parecia correr devagar ao lado deles, enquanto tudo
dentro do Corvette se mantinha em suspensão — um fragmento de estrada, um
momento suspenso no tempo.
Ela quebrou o silêncio de novo, com uma pergunta aparentemente
inocente:
— Tens este carro há muito tempo?
Ele esboçou um sorriso, como se a pergunta o divertisse.
— Dois dias.
Ela virou-se para ele, surpreendida.
— Dois dias?
— Sim. — assentiu, mantendo o olhar fixo na estrada. — Comprei-o e
decidi fazer esta viagem. Sem destino certo. Só para o conduzir. Para o
conhecer.
Fez uma pausa curta, e depois acrescentou:
— A maior parte das pessoas compra carros destes para os mostrar
aos amigos ao fim de semana. Tirar umas fotos, dar umas voltinhas, parecer bem
no Instagram. — Encolheu os ombros. — Eu comprei-o para o usar. Para o ouvir.
E, se possível, para andar depressa.
Ela não respondeu logo. Havia uma sinceridade crua nas palavras
dele. Não era vaidade. Era outra coisa. Um tipo de prazer solitário. Um gesto
de afirmação tardia.
Passaram mais alguns quilómetros em silêncio, até ele lançar-lhe
um olhar de lado, quase casual:
— E tu? De onde é que és?
— De perto de Leiria. — respondeu ela, depois de uma pequena
hesitação.
Ele soltou um assobio curto.
— Estás longe de casa.
Ela não disse nada, mas os olhos perderam-se de novo na paisagem.
Campos planos, fileiras de árvores, a sombra azulada de colinas distantes.
— E tu? — perguntou, depois de algum tempo. — De onde és?
— Braga. — respondeu ele, sem hesitar.
— Também vieste longe.
Ele deu uma leve risada.
— Quando sais sem destino, qualquer lugar pode ficar longe.
Ela assentiu devagar, sem sorrir. Talvez pensasse o mesmo —
embora, no caso dela, o lugar de onde viera não fosse apenas geográfico.
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