A paisagem francesa abria-se como uma sucessão de postais em
movimento. Colinas suaves, campos de girassóis, pequenas aldeias de telhados
vermelhos adormecidas sob o sol. O Corvette seguia pela estrada nacional com o
motor contido, como se respeitasse o silêncio que pairava dentro do carro.
Óscar mantinha-se concentrado na estrada, mas os olhos iam e
vinham, alternando entre o horizonte e o rosto dela, à sua direita. Por fim,
perguntou, com a voz calma de quem não quer ferir:
— E a tua família?
Ela demorou a responder. Não foi um silêncio de dúvida — foi o
silêncio de quem precisa recuar no tempo, buscar uma resposta demasiado antiga.
— Não tenho. — disse, simplesmente.
Ele lançou-lhe um olhar de soslaio, rápido. Depois voltou a
focar-se no volante.
Ela continuou, com a voz nivelada:
— Fiquei órfã aos seis anos. Os meus pais morreram num acidente de
carro.
Ele não esperou que ela desenvolvesse.
— Lamento.
— Não faz mal. — respondeu ela logo, sem hesitação. — É só um
facto. Já foi há muito tempo. Nem sequer me lembro do rosto deles.
Houve algo de seco e definitivo naquelas palavras. Como se ela não
tivesse dito aquilo para provocar pena, mas apenas para pôr ordem na cronologia
da conversa.
— Fui criada num orfanato. — prosseguiu, após uma pausa. — Lá
pelos arredores de Leiria. Não era mau, mas também não era casa. Quando fiz
dezoito, tive de sair. Deram-me um emprego e um quarto. Coisa modesta. Salário
mínimo. Só percebi depois que, depois da renda, mal tinha dinheiro para comer.
Fez uma pausa curta e suspirou.
— Então... mandei tudo para trás. Peguei na mochila e decidi vir
para Paris. Tentar a sorte.
Óscar manteve-se em silêncio durante alguns segundos. Depois
disse:
— Foi por isso que estavas à boleia?
Ela assentiu levemente.
— Não tinha dinheiro. E... também gosto da aventura.
Ele esboçou um sorriso.
— Já te meteste em alguma situação chata?
A expressão dela mudou. Não abruptamente — foi mais como uma
sombra a passar pelo rosto. Ficou calada por uns segundos, olhando a estrada
como se o alcatrão pudesse oferecer-lhe outra resposta.
— Já. — respondeu enfim. A voz agora era menos firme. — Mas não
importa.
Ele não insistiu.
O carro continuou a rodar, veloz e silencioso, entre campos
abertos e memórias que se ficavam por dizer.
Durante algum tempo, o carro seguiu em silêncio. As perguntas
pairavam no ar como folhas secas que ninguém queria apanhar.
Mas foi ela quem acabou por retribuir a curiosidade, com voz
calma:
— E a tua família?
Ele encolheu os ombros, sem desviar o olhar da estrada.
— Devem estar em casa. Provavelmente. Ou então não.
Ela franziu o sobrolho, ligeiramente confusa.
— Então por que é que estás aqui... sozinho?
Ele soltou uma risada breve e sem alegria.
— Porque mais vale só do que mal acompanhado.
A resposta ficou a ecoar durante alguns segundos. Ela olhou-o de
esguelha, hesitante.
— Há... problemas familiares?
Ele curvou os lábios num sorriso amargo.
— "Problemas familiares" é um termo simpático. Não
abarca o que se está a passar.
Ela ficou calada por um momento, como se ponderasse até onde podia
ir.
— Estás a fugir de alguma coisa?
Desta vez, ele não respondeu logo. Continuou a conduzir por mais
uns bons quilómetros, o silêncio entre eles de novo preenchido apenas pelo
motor, pelo som abafado da estrada a passar sob as rodas.
Depois disse:
— Conheces os aborígenes australianos?
Ela abanou a cabeça.
— Têm uma coisa chamada walkabout. É uma espécie de ritual... quando um jovem
chega a certa idade, larga tudo e vai sozinho para o deserto. Dias, semanas, às
vezes meses. Sem rumo. Para se encontrar, ou para perder-se. Às vezes as duas
coisas são a mesma.
Ele respirou fundo. A estrada seguia plana à frente, e o céu
começava a mudar de tom — um azul mais pálido, com nuvens longas como
pinceladas.
— Estou a fazer mais ou menos isso.
Ela olhou-o durante alguns segundos, como quem vê uma peça de
puzzle a encaixar-se. Depois voltou-se para a frente.
— Faz sentido. — murmurou.
E ficaram assim, lado a lado, duas solidões em movimento. Ele em
busca de alguma coisa que talvez não queira encontrar. Ela à procura de tudo o
que ainda não tem.
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