sábado, 30 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 9

 




Quando Benedita abriu os olhos, a luz suave da manhã já atravessava as cortinas. Óscar estava de pé, junto à pequena janela do quarto, a olhar para a rua lá em baixo. Tinha as mãos nos bolsos e um ar distante.

— E agora? — perguntou ela, num tom quase tímido, ainda ensonada.

Ele voltou-se apenas o suficiente para lhe lançar um olhar breve.

— Agora vamos tomar o pequeno-almoço.

O tom seco não a surpreendeu. Já tinha percebido que ele não era propriamente um homem de manhãs calorosas.

Poucos minutos depois, estavam sentados numa mesa de canto, no café modesto que ficava junto ao hotel. O aroma a pão quente misturava-se com o cheiro intenso de café acabado de moer. Comeram em silêncio. Benedita manteve-se discreta, enquanto ele devorava uma torrada com manteiga e bebia um café curto e escuro. Só depois de dar o último gole, Óscar pareceu finalmente “acordar” para o dia.

— Preciso da tua identificação — disse, limpando a boca com o guardanapo.

Ela franziu o sobrolho.

— Para quê?

— Só preciso — respondeu, sem mais explicações.

Hesitou por um momento, mas acabou por pegar na carteira e tirar o cartão de cidadão, empurrando-o pela mesa. Foi então que ele tirou do bolso, pela primeira vez desde que estavam juntos, um smartphone.

O ecrã acendeu-se e, de imediato, foi inundado por notificações: mensagens, chamadas não atendidas, alertas de e-mail. O som constante de avisos ecoou na mesa, até que ele, com um gesto rápido, os silenciou sem sequer olhar.

— Parece que andam à minha procura — comentou, num tom que não revelava qualquer urgência.

Colocou o cartão dela em cima da mesa e, com a câmara do telemóvel, tirou duas fotografias — frente e verso. Em seguida, percorreu a lista de contactos e ligou para um número, levando o telemóvel ao ouvido.

— Bom dia — disse quando foi atendido. A voz dele ficou mais grave e séria. — Sim, sou eu.

Pausou, ouvindo o que vinha do outro lado.

— Sei que toda a gente anda à minha procura. Não, não estou perdido… nem desaparecido. Estou bem.

O tom no telefone parecia carregado de preocupação.

— Não, não preciso de nada para mim. Mas quero que trates de uma coisa. — Fez uma breve pausa, lançou um olhar rápido a Benedita e continuou: — Tenho comigo uma rapariga. Pode estar dada como desaparecida.

Houve silêncio do outro lado. Ele retomou:

— Sim… Benedita Almeida, portuguesa. Quero que informes as autoridades de que está segura e comigo. Que será entregue em segurança em Portugal.

Escutou por mais alguns instantes.

— Exactamente. Quero que isso fique registado oficialmente, para evitar problemas na fronteira.

O tom dele suavizou ligeiramente.

— Obrigado. Sabia que podia contar contigo.

Terminou a chamada, abriu o e-mail, enviou as fotografias do cartão e guardou o telemóvel no bolso, sem dar qualquer atenção às dezenas de notificações que ainda piscavam no ecrã.

Por fim, olhou para ela com um meio-sorriso, mas os olhos denunciavam que falava a sério:

— Os teus planos para Paris… vão ter de mudar.

Benedita franziu o cenho, inclinando-se ligeiramente sobre a mesa.

— O que é que estás a fazer?

Óscar recostou-se na cadeira, passando a mão pela barba curta.

— A evitar complicações legais por te ter comigo… e, ao mesmo tempo, a tirar-te da lista de jovens procuradas.

Ela manteve-se em silêncio por um momento, tentando processar a ideia.

— Procuradas?

— Se desapareceste de casa e tens dezasseis anos, é quase certo que alguém reportou. Podia ter problemas por atravessar fronteiras contigo. Assim, fica tudo claro para quem mandar parar o carro.

— E depois?

— E depois seguimos a viagem — disse ele, como se fosse a coisa mais simples do mundo.

Ela respirou fundo, mexendo distraidamente no guardanapo.

— E Paris?

Ele pousou o olhar nela, sério.

— O que é que esperas realmente encontrar lá?

A pergunta apanhou-a de surpresa. Mordeu o lábio, pensativa, antes de responder.

— O melhor cenário possível? — perguntou, como quem precisa de confirmar que podia sonhar alto.

— O melhor cenário possível — assentiu ele.

Ela endireitou-se ligeiramente, com um brilho nos olhos.

— Chegar lá, arranjar um quarto pequeno, talvez dividir com alguém. Conhecer pessoas ligadas ao mundo da moda. Ser chamada para castings. Conseguir trabalhos… bons trabalhos, que me abram portas. Pouco a pouco, ganhar nome, tirar fotografias para revistas, viajar. E um dia… um dia ser reconhecida na rua.

Óscar ouviu tudo em silêncio, sem interromper. Quando ela terminou, ficou a observá-la por alguns segundos, como quem pesa cada palavra antes de falar. Mas o que viesse a seguir, ficaria para o resto do caminho.

Acabaram o pequeno-almoço em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos, e saíram do hotel. O Corvette aguardava no parque, brilhando ao sol da manhã, como se a viagem que os esperava fosse tão simples como seguir o asfalto até ao horizonte. Óscar guardou o telemóvel no bolso, abriu a porta do condutor e, sem trocar mais palavras, pôs o motor a ronronar com um som grave e reconfortante.

A estrada em direcção a Rocamadour estendia-se diante deles, serpenteando por colinas e campos que começavam a despertar com a luz dourada. O carro avançava suave, como se cada mudança de velocidade fosse uma respiração medida.

— Então — disse Óscar, rompendo finalmente o silêncio — já me disseste qual é o teu melhor cenário. Qual seria, na tua cabeça, o pior?

A pergunta caiu sobre ela como uma pedra na água. Benedita desviou os olhos para a paisagem, seguindo com o olhar um bando de pássaros que cruzava o céu. Demorou alguns segundos a falar.

— O pior cenário? — repetiu, mais para si do que para ele. Respirou fundo. — Ficar na rua… sem dinheiro. Depender de estranhos para comer. E… — hesitou, como se fosse preciso atravessar um terreno perigoso para chegar às palavras — e acabar por me envolver em coisas que não quero. Drogas. Gente errada. E… redes de prostituição.

O carro seguiu firme na faixa, a paisagem a deslizar lentamente pelas janelas. Quando ela terminou, um silêncio pesado instalou-se. Não havia mais nada para dizer naquele momento. Apenas o som constante e grave do motor preenchia o habitáculo, um ruído quase hipnótico, que convidava a pensar no que tinha sido dito — e no que não tinha.

Óscar acabou por quebrar o silêncio.

— E qual achas que é o cenário mais provável? — perguntou, sem tirar os olhos da estrada.

Benedita mordeu o lábio inferior e demorou a responder.

— Não sei… — admitiu, finalmente.

A estrada continuava calma, até que, perto de uma povoação maior, o trânsito foi afunilado por cones e sinais de paragem. Vários polícias controlavam os carros, e um deles ergueu a mão na direção do Corvette, mandando parar.

O agente aproximou-se, de uniforme impecável, e pediu os documentos em francês:

— Bonjour, vos papiers, s’il vous plaît.

Óscar inclinou-se ligeiramente para a frente e respondeu, num francês carregado de um sotaque que beirava o cómico:

— Désolé… je ne parle pas français… do you speak English?

O polícia assentiu com um pequeno sorriso.

— Yes, I speak English — respondeu, mas com um sotaque tão carregado que fez com que os cantos da boca de Óscar se erguessem. Por um instante, quase esperava ouvir uma frase saída da série cómica ‘Allô, ‘Allô!’.

O agente pediu-lhe que aguardasse e afastou-se com os documentos. Benedita olhou para Óscar, inquieta, lembrando-se do que ele dissera sobre possíveis complicações por estar com ela. Quando o polícia regressou, a expressão era séria.

— Sir, could you step out of the vehicle, please?

Óscar obedeceu sem hesitar. Benedita sentiu o estômago apertar. Os dois afastaram-se alguns metros e conversaram num tom baixo, mas ela conseguiu apanhar algumas palavras. O polícia mencionara um alerta de pessoa desaparecida em nome de Óscar. Com uma calma imperturbável, ele explicou que não estava desaparecido, que viajava por iniciativa própria e que não havia motivo para alarme. Depois de alguns minutos e de verificar a documentação, o agente devolveu-lhe os papéis, desejou boa viagem e deixou-os seguir.

O carro voltou à estrada, cortando o ar fresco da tarde, até que, por volta do meio da tarde, chegaram finalmente a Rocamadour.

A visão era arrebatadora: a vila erguia-se em socalcos íngremes na encosta de um penhasco, como se desafiasse a gravidade. As casas de pedra clara encaixavam-se umas nas outras, subindo até ao santuário que coroava a falésia. Ao longe, as torres e muralhas destacavam-se contra o azul intenso do céu, enquanto o vale do Alzou serpenteava lá em baixo, verde e luminoso.

Pararam o carro e subiram a pé pelas ruas estreitas, ladeadas por lojas de artesanato e pequenas esplanadas. O som das badaladas ecoava entre as paredes de pedra, criando uma atmosfera intemporal.

Benedita olhava em redor, maravilhada.

— É como se tivesse saído de um postal… — disse, quase num sussurro.

Óscar, menos dado a expressões poéticas, assentiu apenas com um leve sorriso, mas não conseguia esconder que estava igualmente impressionado. A combinação de história, fé e geografia tornava aquele lugar único. Era impossível não sentir que, ali, o tempo tinha um ritmo diferente, mais lento, quase sagrado.

Decidiram subir até ao santuário. A escadaria era longa e irregular, composta por degraus gastos por séculos de peregrinações. Óscar subia com passo constante, enquanto Benedita, curiosa, parava de vez em quando para espreitar pequenas capelas laterais e ler as placas de pedra gravadas com mensagens de devoção.

Quando chegaram ao topo, encontraram a esplanada principal do santuário, aberta sobre o vale. A basílica erguia-se com uma imponência silenciosa, as paredes em pedra clara marcadas pelo tempo, as janelas estreitas filtrando a luz dourada da tarde. Entraram em silêncio, quase instintivamente.

Lá dentro, o ar era fresco e cheirava a cera e incenso. O som dos passos ecoava no pavimento de pedra. Benedita deteve-se diante de uma estátua antiga da Virgem Negra, o olhar fixo nos traços austeros e na cor escura que contrastava com o dourado do trono.

— É mais pequena do que imaginei… — murmurou, como se falar alto pudesse quebrar o encanto.

Óscar não respondeu. Limitou-se a observar o interior, reparando nos vitrais que deixavam entrar raios de luz multicolorida e na forma como essa luz se projetava nas paredes, como manchas vivas.

Saíram por uma porta lateral e seguiram por um caminho estreito até ao miraCávado. A vista dali era arrebatadora: o vale do Alzou estendia-se em curvas suaves, salpicado de campos e pequenas aldeias. O vento leve trazia o som distante dos sinos e o farfalhar das folhas nas árvores que se agarravam às encostas.

— Dá para perceber porque é que este lugar ficou sagrado para tanta gente — disse Óscar, apoiado na mureta de pedra.

Benedita limitou-se a acenar, absorvendo o momento.

Ficaram ali durante alguns minutos, sem falar, até que o sol começou a descer, pintando o céu com tons alaranjados. Então, retomaram o caminho para a vila, descendo lentamente as ruelas estreitas.

Ao chegarem novamente ao carro, decidiram que não valia a pena continuar estrada fora naquela noite. Encontraram um pequeno hotel na base do penhasco, com vista para o vale. O interior era simples mas acolhedor, com chão de madeira e paredes caiadas. No balcão, Óscar pediu um quarto com duas camas individuais.

— Alguma bagagem? — perguntou o rececionista.

— Não — respondeu Óscar, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Receberam a chave, subiram ao quarto e pousaram o pouco que traziam. Lá fora, o céu já estava a transitar para o azul profundo da noite, e as primeiras luzes de Rocamadour cintilavam na encosta, como se quisessem marcar presença mesmo no escuro.


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 8

 



quarto era simples: duas camas individuais separadas por uma mesa-de-cabeceira com um candeeiro de luz amarelada. Um sofá gasto encostava-se à parede oposta, e a janela, de caixilharia antiga, deixava entrar um ar fresco e o som abafado da rua estreita lá em baixo.

Benedita pousou a mochila junto à parede, mas não se afastou dela. Ficou ali, de pé, a observá-lo enquanto ele deixava as chaves do carro na mesa-de-cabeceira.

— Porque é que disseste que eu era tua filha? — perguntou, com uma mistura de surpresa e desconfiança.

Óscar endireitou-se e olhou-a de soslaio.

— Querias mesmo que o empregado te pedisse identificação?

Ela corou, baixou o olhar, e ficou em silêncio.

— Tens mesmo dezoito anos? — perguntou ele então, sem rodeios.

O silêncio que se seguiu pareceu mais pesado do que o quarto inteiro. Benedita mexia nas alças da mochila como se quisesse desfazer um nó inexistente.

— Por esta altura… — continuou Óscar, a voz calma mas firme — já podias confiar em mim.

Ela respirou fundo, como quem carrega um peso que já não aguenta sozinha. Quando finalmente ergueu os olhos, a sua expressão tinha uma sombra de vergonha, mas também de desafio.

— Tenho dezasseis.

Óscar não disse nada de imediato. Apenas a fitou, medindo cada gesto, cada mudança no seu rosto.

— Cresci num orfanato — começou ela, com a voz baixa, quase ensaiada, mas carregada de um cansaço antigo. — Fui para lá quando tinha seis anos… depois do acidente.

Hesitou, como se procurasse coragem.

— Os meus pais morreram num carro. Eu estava no banco de trás. Lembro-me do barulho… e de acordar num hospital. Mas não me lembro das caras deles. Nem do toque. É como se tivessem desaparecido de mim.

Fez uma pausa, e o silêncio pareceu comprimir o ar entre os dois.

— Depois… vieram as famílias de acolhimento. Algumas eram simpáticas, davam-me roupa, comida… mas nunca me senti em casa. Outras… — mordeu o lábio inferior, desviando o olhar — outras tratavam-me como se eu fosse um peso morto que tinham de carregar.

Endireitou-se, como se quisesse que as próximas palavras soassem mais fortes.

— A última foi dessas. Chamavam-me preguiçosa, inútil. Mandavam-me fazer tudo e, se não era perfeito, havia gritos… e às vezes pior que gritos.

O tom quebrou um pouco.

— E eu… simplesmente decidi ir embora. Não tinha nada para levar. Peguei nas poucas coisas que eram minhas e saí. Não sabia para onde. Só sabia que não queria voltar.

Por um momento, Benedita olhou-o de frente, quase desafiando-o a julgá-la.

— E foi assim que acabei na estrada.

Óscar passou a mão pela barba curta, olhando-a em silêncio. Não havia traço de reprovação no seu rosto — apenas uma gravidade silenciosa.

— Agora já sabes. — disse ela.

Óscar ficou alguns segundos em silêncio, a olhar para ela. Depois deu um passo lento na direção da cama e sentou-se ao lado dela. Sem dizer nada, puxou-a para um abraço.

Benedita não resistiu. Encostou-se ao peito dele, o rosto contra a sua t-shirt, e começou a chorar — primeiro em silêncio, um soluço quase contido, depois com um ritmo mais intenso, até que o choro se tornou convulsivo.

Ele passou-lhe a mão pelo cabelo, num gesto lento e constante, como quem tenta acalmar um animal ferido. Murmurou palavras baixas, mais pelo tom do que pelo sentido, e deixou que ela esvaziasse aquela dor que parecia antiga demais para caber numa rapariga tão nova.

Aos poucos, o choro foi abrandando. O corpo dela relaxou e o peso contra o peito dele tornou-se o de alguém vencido pelo cansaço.

Óscar manteve-se imóvel, sentindo-lhe a respiração abrandar, até perceber que ela adormecera. Com cuidado, deitou-a na cama, puxou o cobertor por cima dela e ajeitou-o para que a cobrisse bem.

Ficou ali, sentado na beira da cama, a observá-la dormir. O rosto dela, livre da tensão, parecia ainda mais jovem. Sentiu uma pena profunda, não apenas da história que ela lhe contara, mas daquilo que ela nunca lhe disse — o peso silencioso que carregava.

E, por um momento, pensou que, em comparação, a sua própria dor talvez não fosse assim tão grande.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 7

 



A manhã começou como a anterior. Benedita acordou com a luz a entrar pela cortina mal fechada e o som abafado do trânsito de Toulouse. Óscar já estava de pé, mas o seu “bom dia” saiu seco, quase automático, sem entoação. Movia-se pelo quarto com passos decididos e curtos, como quem não vê graça nenhuma em madrugar.

Não trocaram muitas palavras até estarem sentados num café de esquina, com mesas pequenas e toalhas de papel amassadas pelo vento. Ele bebia o café rápido, quase como se fosse remédio, e só ao segundo croissant começou a mostrar sinais de que o humor lhe regressava ao rosto.

— Vamos dar uma volta. — disse, limpando as mãos com um guardanapo.


Acabaram a caminhar lado a lado junto ao Canal du Midi, onde a água refletia as árvores alinhadas e barcos de passeio passavam lentamente. O ar tinha cheiro de folhas húmidas e diesel distante. Caminhavam ao mesmo passo, mas cada um com o olhar fixo em direções diferentes.

Foi ele quem quebrou o silêncio.

— Então… e quando chegares a Paris? Quais são os teus planos?

Ela hesitou, olhando para a superfície do canal como se fosse encontrar lá a resposta.

— Não sei. — disse, por fim, com um encolher de ombros. — Não pensei tanto à frente.

— Onde é que vais ficar? — insistiu ele.

Silêncio.

— Tens alguém lá?

Ela abanou a cabeça.

— Como é que vais ganhar dinheiro?

Ela mexeu nos cabelos, desconfortável.

— Vou arranjar qualquer coisa.

— E para os castings? Vais como? Precisas de te apresentar bem, não é? Roupa, transporte…

As respostas dela foram sempre vagas ou inexistentes. Óscar deixou o silêncio falar por si e não voltou ao assunto.


Abandonaram a margem do canal e seguiram para o centro histórico. A primeira paragem foi na Place du Capitole, onde a fachada imponente do edifício dominava a praça. Passaram algum tempo a observar os detalhes arquitetónicos e a circulação de pessoas. Artistas de rua desenhavam caricaturas, um músico tocava acordeão, e o ar cheirava a café recém-moído das esplanadas.

Seguiram depois para a Basílica de Saint-Sernin, imponente e silenciosa, com vitrais coloridos a projectar manchas de luz no chão de pedra. Benedita percorreu o interior com atenção, enquanto Óscar parecia mais curioso com as linhas da construção do que com qualquer simbolismo religioso.

Ainda antes do almoço, fizeram uma pausa breve no Jardim Japonês de Compans-Caffarelli, um refúgio verde com pontes de madeira e carpas a nadar sob nenúfares. Sentaram-se num banco à sombra, ouvindo o som constante da água de uma pequena cascata.

Ao meio-dia escolheram um restaurante próximo do Marché Victor Hugo. Óscar pediu cassoulet, um guisado de feijão branco com confit de pato e salsichas da terra. Benedita optou por magret de canard com batatas salteadas e molho de frutos vermelhos. Provaram um pouco do prato um do outro e trocaram comentários ocasionais sobre o sabor e a apresentação.

Depois de almoço, caminharam até às margens do Rio Garonne, atravessando a Pont Neuf para apreciar a vista da cidade refletida na água. Ficaram ali alguns minutos, encostados à balaustrada, a ver o movimento lento dos barcos e das gaivotas.

Pouco depois, decidiram regressar ao carro e deixar Toulouse para trás.


A meio da estrada, já a caminho de Albi, Benedita comentou:

— Reparaste que não tens bagagem?

Óscar soltou uma gargalhada curta.

— Reparei, sim.

— Então?

— Então… a decisão da viagem foi um bocado súbita.

Ela virou-se para ele, intrigada.

— Súbita como?

Ele ajeitou a posição no volante, os olhos fixos na estrada.

— Estava num semáforo vermelho, num cruzamento, a caminho do trabalho. E pensei que gostava mesmo de experimentar o carro em Nürburgring. Quando ficou verde, em vez de seguir em frente… virei à esquerda.

Benedita piscou os olhos, sem saber se ele estava a brincar.

— Só assim?

— Só assim.

Ficou a olhá-lo, como se tentasse medir até que ponto ele podia estar a dizer a verdade. Mas não havia sorriso de ironia, nem qualquer esforço para impressionar. Era apenas um facto.


Chegaram a Albi já com a luz a descer. A cidade parecia feita de tijolo cor de terracota, e ao longe a Catedral de Sainte-Cécile erguia-se como uma fortaleza gótica, imensa e sólida contra o céu da tarde.

Subiram a rua estreita que levava à entrada. Por fora, as paredes altas e quase lisas davam-lhe um ar de fortaleza mais do que de igreja. Mas ao entrar, o mundo mudou.

O interior estava mergulhado num silêncio fresco, e o ar cheirava a pedra antiga e cera derretida. Vitrais altos filtravam a luz em manchas azuis, vermelhas e douradas que se projectavam no chão. O tecto abobadado, pintado com frescos minuciosos, parecia tão alto que obrigava o olhar a perder-se. Filas de colunas finas sustentavam a nave como um bosque petrificado. O coro, ricamente talhado em madeira, era um labirinto de detalhes.

Benedita parou a meio do corredor central, a cabeça inclinada para trás, como se tentasse absorver tudo de uma vez. Óscar ficou mais atrás, olhando em volta com um respeito silencioso, quase surpreso com a própria reação.

— É… grande. — disse ele, num tom que não fazia justiça ao que lhe ia no rosto.

— É muito mais que grande. — murmurou ela.

Ficaram ali alguns minutos, cada um imerso na sua própria sensação de pequenez diante daquela construção, antes de saírem para as ruas que começavam a encher-se de sombras.


Jantaram num restaurante local, uma sala de pedra baixa com luzes quentes. Conversaram pouco, mas houve uma leveza nova na forma como partilharam o pão.

Depois do jantar, caminharam até um hotel próximo. Na receção, Óscar pediu um quarto com duas camas individuais. O empregado, preenchendo o registo, ergueu os olhos.

— A identidade da rapariga, por favor?

Óscar respondeu sem hesitar:

— É minha filha. Benedita Campos.

Ela ficou a olhá-lo, surpresa, mas ele apenas assinou o papel e devolveu-lhe a caneta, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 6



Voltaram à estrada com o sol já a baixar sobre os telhados inclinados de Foix. O almoço terminara com gargalhadas tímidas — ela a gozar com o sotaque dele ao tentar pronunciar “cassoulet”, ele a contar-lhe como quase ficou preso no castelo por ter passado por uma porta com o aviso “accès interdit” por curiosidade.

O ambiente no carro estava diferente. Mais leve. Mais solto. Falavam de detalhes da visita, da vista do alto da torre, do espadachim reformado que fazia demonstrações no pátio, da loja de souvenirs onde Óscar quase comprou uma espada de brincar “só para provocar a filha”.

A estrada era agora um fio tranquilo que os levava em direção a Toulouse, onde Óscar anunciou com naturalidade:

— Hoje ficamos lá a dormir.

Ela não contestou. Limitou-se a olhar a paisagem a passar.

— Não tens mais roupa? — perguntou ele, como quem lembra algo no fim de uma lista.

Ela encolheu os ombros.

— Tenho outros calções. E mais duas t-shirts. Uma delas é aquela larga... com que durmo.

— Só isso?

Ela assentiu.

Ele não disse mais nada. Mas, ao chegarem à cidade — ruas largas, prédios em tijolo avermelhado, trânsito a abrandar o ritmo da tarde — dirigiu-se a uma zona comercial sem dar explicações.

Acabaram por entrar numa loja de roupa.

Ela ficou parada à entrada.

— Não posso comprar nada.

— Podes sim. — respondeu ele, já a andar pelos corredores. — És minha convidada. Não discutas.

Ela protestou, mas ele não lhe deu margem. Acabou por escolher umas calças de ganga, uma camisa leve, mais duas t-shirts, roupa interior, meias e um par de ténis. No provador, Benedita olhou-se ao espelho com um desconforto novo: não estava habituada à sensação de merecer nada daquilo.

Ele também comprou roupa — uns jeans escuros, duas camisas, cuecas, meias.

Ela reparou, com estranheza, que até então ele não trouxera bagagem alguma. Nem mochila, nem mala, nem saco de viagem. Nada.

A constatação ficou por dizer, mas instalou-se no fundo do pensamento.


No hotel, pediram um quarto com duas camas individuais.

— Só isso? — perguntou a rececionista.

— Só isso. — respondeu Óscar, com um meio sorriso.

No quarto, cada um levou a sua roupa para o armário sem grande cerimónia. Ela foi tomar banho primeiro. Quando saiu, com o cabelo húmido preso numa toalha, vestida com a t-shirt larga e os calções, Óscar entrou com o necessaire improvisado que acabara de comprar. Disse apenas: “Dois minutos” — e desapareceu para a casa de banho.

Quando ele saiu, o vapor escapava-se pela porta entreaberta e o som do secador já preenchia o quarto. Ela estava em frente ao espelho, a secar o cabelo com um ar distraído. Só quando se virou e o viu, congelou por um instante.

No peito dele, ligeiramente à mostra por entre os botões da camisa entreaberta, estava uma cicatriz longa e recente, ainda com tons de rosa escuro. Um sulco vertical, limpo, cirúrgico. Um corte de bisturi, não de vida selvagem.

— O que foi isso? — perguntou ela, já com o secador desligado.

Ele olhou para ela com um sorriso matreiro.

— Morri.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Morreste?

— Sim. Mas nem Deus me quis no céu, nem o Diabo no inferno. Acabei por ficar por cá.

Ela sorriu, apesar de si mesma.

Mas ele ficou sério. Sentou-se na beira da cama e, com um gesto lento, abotoou a camisa.

— Tive problemas cardíacos. Graves. Deram-me três meses se não fizesse a cirurgia. E mesmo com cirurgia, as probabilidades eram más.

Ela ficou calada. O cabelo ainda pingava um pouco, a toalha agora esquecida nas mãos.

— Fiz a operação há poucos meses. Ainda me estou a habituar à ideia de estar vivo.

Ela sentou-se na cama em frente, sem dizer nada. Como se a revelação criasse um novo território, mais íntimo, mais frágil, entre os dois.

Ele deitou-se devagar, de lado, voltado para a parede.

— Boa noite, Benedita.

— Boa noite, Óscar.

A luz apagou-se. O quarto ficou em silêncio.

E entre as duas camas, naquela zona invisível onde as palavras já não chegam, havia agora uma coisa nova: confiança.