Os olhares que o encararam, olhos azuis e frios em rostos pálidos e angulosos, ao mesmo tempo inquiridores e cheios de desprezo por alguém que certamente não era daquelas paragens.
-Que os teus recipientes de sílica derretida sempre se encontrem cheios. – Rosnou-lhe o que estava mais próximo dele, devolvendo a saudação ancestral de uma forma áspera e seca.
Todos os que estavam no Templo se aproximaram de repente, com os olhares duros e frios, rodeando-o, com caras de poucos amigos, deixando-lhe apenas como via de fuga a porta que dava para a cidade gelada atrás de si.
Nunca Matatturru tinha sido recebido assim em lugar algum. Começava a desconfiar que aquela viagem até Polo podia afinal não ter sido tão boa ideia como lhe parecera quando sufocava de calor em Ashtram, na orla do escaldante deserto de Shamar, o sítio que é tão quente, mas tão quente que se pode estrelar um ovo à sombra, um sítio tão quente que quando um homem vai mictar a urina se evapora antes de tocar no chão, um sítio tão quente que para beber água nos raros poços que há tem de se descer ao poço, porque se se lançar um balde para apanhar água ela evapora antes de chegar à superfície, tão quente que para ferver água para um café depois do jantar basta levantar uma pedra e pôr uma chaleira lá debaixo por dez minutos, e tão desolado, mas tão desolado que nem areia tinha, só pedras escaldantes onde nada, mas mesmo nada crescia! Sair dali para ir para um sítio mais fresco parecera-lhe uma excelente ideia, se bem que quando ainda estava longe de Polo estivesse já a pôr em causa a ideia, mas agora, aqui rodeado por estes vigorosos gigantes pouco amistoso, por pouco não lhe passavam pensamentos pela cabeça. Graças aos três sábios que assim não era!
-Sois um dos Absolutistas?
Pareceu a Matatturru que havia ali alguma animosidade em relação aos Absolutistas. Matutou um pouco e respondeu:
-Mas claro que não! A minha verdadeira fé é o mandamento único do qual homem algum se deve desviar: Não pensarás!
As faces fechadas abriram-se de repente num sorriso largo, e a atitude dos presentes mudou repentinamente e trouxeram-lhe produto da fermentação da cevada em canecas, cujo o nome ele estranhou, visto que nunca lhe passara pela cabeça chamar-lhe outra coisa que recipiente de sílica derretida, o que era normal, visto que não pensava, mas explicaram-lhe que um estrangeiro que por ali tinha passado tinha chamado caneca aos recipientes de sílica derretida e eles acharam muito mais prático chamar áquilo caneca, ao invés de recipiente de sílica derretida e ele gostou do nome e foi recebido como um irmão que chega de longe e se junta ao resto da família que o esperava já há muito, e deram-lhe tremoços e guardanapos de papel e convidaram-no e juntar-se a eles e a contar novas histórias de terras longínquas que eles já estavam fartos sempre das mesmas e já tinham ouvido a história do urso de estimação de Olgaf, o Hirsuto e já não o podiam ouvir mais e celebraram como já não se celebrava há muito.
Muito mais tarde, conversava Matatturru com Olgaf, o Hirsuto, depois de ouvir a história do urso de estimação umas duas vezes quando este lhe disse com genuína alegria no olhar:
-Estou mesmo feliz que sejas um verdadeiro crente! Nós odiamos os Absolutistas!
Matatturru sabia que havia animosidades, mas eram aliados. Era raro um sentimento destes.
-Mas porquê, irmão?
-Porque nos governam! E nos roubam a maior parte daquilo que tanto nos custa a ganhar, a taxa de utilização do Polo!
-Pois! Mas eles são assim tantos para vos dominar desta maneira?
-Não, são um punhado deles!
-Então porque não vos revoltais?
-E porque havíamos de fazê-lo? Vivemos, afinal, numa democracia…
-Numa democracia?
-Então mas não me havíeis dito que eles são poucos…
-De facto são…
-Então quem vota neles?
-Nós, quem mais?
-Mas isso quer dizer que os podíeis substituir em qualquer altura…
Olgaf olhou para ele, estupefacto! Depois de alguns segundos a olhá-lo acabou por dizer:
-Não percebi!
-Então, se é uma democracia, se sois vós que votais, porque os elegeis a eles?
-Porque se não os elegermos e votarmos neles ainda acabamos por votar em alguém pior.
-Então porque os odiais, se sois vós quem lhes dá o poder?
Runlaf, o Bisonte, assim conhecido porque era tão grande como um, ouvia a conversa da mesa ao lado, pousou a sua caneca e encarou Matatturru.
-Irmão, aquilo que fazeis… Essas perguntas… - levantou-se e inclinou-se por cima de Mataturru que se encolheu na cadeira tremendo – Acaso sois vós um espião Absolutista? Não estareis vós a raciocinar?
Outros olhos olharam-no inquiridores.
-Pelos três sábios, acusais-me de tal acto que nem a palavra ouso pronunciar? Pondes em causa a minha palavra? Pela maldição do Grande Olho na Muralha de Stix que assim não é!
-Então porquê as perguntas?
-Sou de fora! Quero saber os costumes locais! Não pretendo ofender algum dos meus irmãos inadvertidamente…
A explicação parecia razoável e os ânimos serenaram!
Mais tarde Mataturru ficou a saber que não tinham limões por ali e, não podendo fazer nada com as Baterias de Bagdad, acabou por rumar a paragens mais quentes…
Quer-me parecer que te inspiraste nos relatos d'O Papalaguí.
ResponderEliminarE, olha, vais por bom caminho, Gil...
...Estou a gostar!
:)
Não digo que não, mas se o foi, foi apenas a um nível inconsciente!
EliminarMas também, a grande verdade é que quando fazemos as mesmas perguntas vamos invariavelmente dar com as mesmas respostas, por isso...
Obrigado. Sei que ler este chorrilho de parvoice não é fácil...
:)