segunda-feira, 8 de abril de 2024

Conscientização - XXXVI

 

 

Mas tu achas que podes, simplesmente, desaparecer do mundo, voltar uns meses depois com uma semi-virgem qualquer que encontraste na Parvónia e que não se passa nada?

- E tu, por acaso, achas que te devo alguma explicação? Quem é que te deu o direito de te meteres na minha vida? E na vida dela?

- Fui eu que te fiz, lembras-te? O que é que tu eras sem mim?

- Exactamente aquilo que sou, mas mais são um bocadinho, provavelmente. O que é que te passou pela cabeça?

- Ora, limitei-me a dar-lhe um incentivo. Estava para ali sozinha, sem saber o que fazer... Queria que ela se soltasse.

- Bem, lá isso conseguiste. Mas porquê? Isso é que eu não percebo…

- Porque te queria provar que a tua semi-virgem não é assim tão inocente. Além disso, a culpa é tua. Tu é que a deixaste sozinha.

- Isso é verdade. Claro que não estava à espera que andasse por ali uma ave de rapina.

Julia ficou furiosa com o comentário.

- És assim tão melhor que eu? Ou será que os ares de Portugal te provocaram amnesia?

- Sei muito bem quem sou. Não precisas de mo recordar.

Houve um silêncio, uma tensão entre os dois. Julia conhecia César o suficiente para saber que, apesar da aparente calma, estava a lidar com um vulcão prestes a explodir. Suavizou a sua expressão e continuou a falar com uma doçura capaz de fazer derreter granito:

- César, tu sabes que nós devemos estar juntos. Somos iguais. O que é que vês nessa rapariga?

- Vejo a minha secretária pessoal e vejo que puseste em risco o negócio com o Levy. Graças a ti tive de sair às pressas e tu conheces o Levy.

Julia ficou sem pinga de sangue.

- Ela é a tua secretária? Desde quando?

- Desde que cheguei a Portugal.

- Porque é que não me disseste?

- Porque não te devo qualquer satisfação, como já disse antes, e chamei-te aqui apenas para te dizer que se voltares a tomar alguma atitude em relação a seja quem for que esteja perto de mim, acredita, vai haver consequências.

O tom de voz baixo e calmo de César era ao mesmo tempo frio como o aço.

- Isso é uma ameaça?

- Não Julia. É uma certeza absoluta. Agora desaparece daqui. Só olhar para ti dá-me nojo.

A fachada implacável e impecável de Julia ameaçou estalar ali. No entanto dominou-se deixando apenas uma sombra passar-lhe pelos olhos. Depois, ergueu o queixo, deu meia volta e saiu.

César respirou fundo. Sabia o quão perigosa aquela mulher podia ser. Como é que era o ditado? “Não há fúria do Inferno maior que a de uma mulher desprezada”. Ele teria de ter extremo cuidado. Sabia que a história não ficaria por aqui. Mas por hoje ficara e pelo menos Andreia já não devia ter nada a recear dela. Isso deixava-o um pouco mais descansado. Sentou-se no sofá, serviu-se de uma dose do seu Yamazaki de vinte cinco anos, encostou-se para trás, relaxou, deu um trago e fechou os olhos. Julia tinha o dom de o irritar a um ponto em que ele nem se sentia bem consigo próprio.

 

***

 

Andreia abriu a porta, finalmente, e entrou na sala. César deu por ela e prontamente abriu os olhos, viu-a, ainda com o cabelo molhado do banho e sorriu.

- Boa noite. Seja bem-vinda de volta.

Só então Andreia notou, olhando pelas enormes vidraças, que era noite cerrada, embora desconfiasse que mesmo que todas as luzes estivessem apagadas a sala continuaria iluminada pelas luzes da cidade. O toque de formalidade na saudação de César indiciava que, se calhar, tudo não passara mesmo de uma ilusão.

- Boa noite! – Disse com esforço sentindo as cordas vocais a despertar – Dormi muito tempo?

- Digamos que ainda acordou a tempo, mas já não é o mesmo dia em que se deitou. Mais ou menos trinta e seis horas, mais coisa, menos coisa.

Andreia nem queria acreditar e colou os olhos ao chão, com vergonha.

- Não fique assim. Afinal a culpa não foi sua. Aliás, até foi, mas por pura ingenuidade, e não levo isso a mal. Tem comida e um suplemento vitamínico na mesa da cozinha. Há comida leve no frigorífico. Coma qualquer coisa e tome o suplemento.

Ela dirigiu-se cabisbaixa à cozinha, abriu o frigorifico tirou qualquer coisa ao acaso para comer e uma garrafa de água fresca e sentou-se na mesa sentindo o estomago dar voltas somente por olhar para a comida. César entrou na cozinha, sentou-se à sua frente. Ela encolheu-se, esperando ser repreendida. Nem se atrevia a encará-lo.

- Acordámo-la com a conversa?

- Não. Já estava acordada e fui tomar um duche. Só me apercebi que estava aqui alguém quando ia para sair do quarto e ouvi vozes, mas já só me apercebi que alguém estava de saída.

- Mas ainda ouviu alguma coisa?

- Sim, mas pouco.

- Também não houve muito que ouvir. Ela só esteve cá uns dez minutos. De qualquer forma, tem a noção do que se passou consigo?

- Sim. Extasy, não foi? César assentiu.

- Que lhe sirva de lição. Nunca, seja onde for, aceite uma bebida de alguém que não seja de absoluta confiança, nem nunca deixe o seu copo abandonado.

Andreia corou de vergonha.

- Não me vou esquecer.

- Óptimo.

Deu uma dentada na comida e mastigou lentamente, sem vontade de engolir. Como se não bastasse, sentia-se intimidada com a presença dele. Trazia-lhe de volta todas aquelas… Recordações? Alucinações? Fossem o que fossem, faziam-lhe o coração acelerar. Acabou por engolir e o seu estomago acordou de repente e agradeceu.

- E afinal, como é que correram as coisas com o… Levy? – Perguntou, tentando forçar o seu cérebro a focar a atenção em algo diferente.

- Correu bem, apesar dos pesares. Teremos uma reunião amanhã para acertar os pormenores, mas temos um acordo de princípio. Trate de se pôr em condições que temos de rever as pastas e tenho de a pôr ao corrente de tudo.

Agora que o estomago tinha acordado, o apetite aparecia voraz, e ela até se esquecia das suas maneiras e comia como… Bem, como se não comesse há dois dias, o que aparentemente era o caso, sob a expressão séria de César, mas onde estava aquele olhar que quase parecia divertido.

Quando acabou de comer pegou na garrafa de água para beber, mas César interrompeu-a, agarrou o frasco de comprimidos, tirou um e deu-lho.

- Já agora, aproveite…

Ela engoliu-o e bebeu a garrafa de litro de água de seguida. Finalmente a sede começava a ficar saciada.

Com isto, o corpo parecia começar a recuperar alguma energia, a cabeça mais clara, e foi percebendo que mais tarde ou mais cedo seria inevitável dar atenção ao elefante que estava sentado na mesa entre eles. Mas não sabia como começar.

- César, ontem,… quer dizer, anteontem…

César olhou-a nos olhos, sorriu, o que lhe deixou as palavras entaladas na garganta.

- Lembra-se do que eu lhe disse quando íamos para lá? Que nada era censurável ou reprovável?

- Sim…

- Nada o é e nada o foi. Além do mais, não só fui eu que o coloquei naquela situação, como foi, contra a sua vontade, drogada. Não tem de ter qualquer problema.

Andreia assentiu, mas continuava sem se sentir bem em relação ao que se tinha passado na mansão.

- César, posso falar francamente em relação ao que se passou lá?

- Sim, claro!

Andreia parou, tentando organizar as ideias e as palavras.

- Vi lá algumas coisas que me deixaram sem saber como reagir…

- Apenas tinha de reagir respeitando a liberdade dos outros, tal como eles respeitariam a sua liberdade. Acredite que, se não fosse o incidente de Julia ninguém a importunaria, visto que essa parecia ser a sua vontade.

- Sim, percebo isso. Mas ainda não entendi o que era que se passava ali…

- Uma festa, uma celebração, mas sobretudo uma fuga à realidade. Onde cada um, independentemente daquilo que é no seu dia-a-dia tem a hipótese de se despir de todas as responsabilidades e papeis e usufruir de uma verdadeira liberdade. No dia a seguir todos voltam às suas vidas sabendo que aquela noite simplesmente não contou.

- E como é que se consegue?

- Facilmente, até. Basta ter essa mesma noção.

- Mas acaba sempre por culminar numa orgia?

Andreia, se há uma coisa que é básica e primária é o desejo. Imagine a liberdade de realizar as suas fantasias por uma noite… – e olhou-a de uma maneira que pareceu entrar além dos seus olhos e ler-lhe a alma – Consegue imaginar, não consegue?

Andreia estremeceu, sem saber se por culpa ou porque um lado escondido de si respondeu afirmativamente com deleite.

- Acho que acabou por ser isso o que aconteceu… – acabou por responder, desafiadora, procurando uma sombra de reconhecimento nele. Não a encontrou.

- Estava drogada!

- Creio que, ainda que não estivesse, depois de ter visto o que vi e com o clima que estava na sala, era o que me apetecia ter coragem para fazer.

César sorriu.

- Não me surpreende.

- Não?

- Não. Qualquer homem com dois dedos de testa tem noção de que em cada mulher há uma santa, uma lady e uma…

- …Puta?

- …Devassa! Há uma enorme diferença nos termos. O que define cada mulher é onde o equilíbrio se estabelece entre estes três ingredientes, mas eles estão sempre lá.

Andreia pensou nas suas anteriores relações.

- Há muitos homens com dois dedos de testa?

- Não muitos… – respondeu César, quase com uma gargalhada.

- Mas porque é que as pessoas fazem isto?

- Andreia, as pessoas não fazem isto. Umas quantas pessoas fazem isto!

- Mas porquê?

- Porque podem.

Andreia fixou o olhar em César.

- É dos que podem?

- Sou. E agora a Andreia também. Tem de perceber de uma vez por todas que está a nadar num aquário limitado. Aqueles com que já lida em Portugal e que lá são tubarões, aqui são um mero aperitivo. E a Andreia vai nadar com eles. Tem de perceber aquilo que por vezes é preciso fazer para fechar um negócio. Daquilo que vão ser capazes de lhe propor em algumas ocasiões no futuro. Portanto, está na hora de crescer. Acredite, tudo o que se passou é “peanuts” por comparação. Além disso,… – fez o sorriso mais sacana de que Andreia se lembrava de ver a alguém – …até gostei de a ver dançar…

E Andreia corou, provocando uma gargalhada em César. O elefante tinha saído da sala.

- Posso saber só mais uma coisa?

- Claro.

- Porquê todo aquele cerimonial? Algum motivo em especial? Algum culto?

- Não, nada de tão sinistro. Apenas porque cria um ambiente diferente e intensifica tudo o que se passa no resto da noite. Cria um outro sabor…

Andreia olhava para ele tentando entender, em concreto, o que ele lhe tentava explicar.

- Andreia, qualquer cerimónia tem por fim realçar algo. Pense, por exemplo na entrega dos Óscares. Se pensar bem, a academia podia, simplesmente, libertar um comunicado a dizer quem eram os vencedores. O objectivo era atingido. Mas o facto de haver toda aquela encenação e “glamour” faz com que se acendam espectativas. Ali é a mesma coisa. A cerimónia cria um ambiente que deixa a atmosfera completamente eléctrica. Depois daquilo, todos sabem que algo se irá passar e preparam-se para isso. Não sentiu isso?

- Sim. Não tinha noção do quê, mas sabia que algo se iria passar.

- E gostou da cerimónia?

- Sim, gostei!

- E que tal um café para acabar de acordar essa cabeça? Temos muito que trabalhar até amanhã.

- Obrigada, aceito. – Respondeu com um sorriso, finalmente, no rosto. A culpa abandonara-a e estava preparada para mais um dia.


 

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