quarta-feira, 17 de abril de 2024

Conscientização - XLVI

  

Julia estava nervosa.

Tentava concentrar-se nas flutuações da bolsa, mas não conseguia.

Esperava por um telefonema, “O” telefonema, que iria mudar toda a sua vida.

Tinha pena de as coisas terem de ser assim. Teria sido escusado, se César não fosse tão teimosamente casmurro. Será que ele não percebia que estaria melhor com ela? Os dois teriam implementado aquele plano genial e podiam ter-se tornado maiores que os maiores.

De qualquer forma, agora era tarde. Ele achava que ela se contentaria com um papel marginal, quieta e calada num canto enquanto o veria subir aos píncaros. Jamais! Ela é que o tinha feito, ela é que o tinha trazido para um mundo onde ele dificilmente teria acesso. Era dela, por direito, tudo aquilo que ele estava a construir.

O dia já tinha amanhecido, depois de uma noite em claro e o telefonema teimava em não chegar. Ele apenas ligaria quando tivesse concluído a tarefa e, dentro em pouco o telefonema chegaria. Era só uma questão de paciência. Uma vez que ele não ia entrar na mansão de Sintra, tinha de esperar que ela saísse.

Sorriu de si para si. Pobre moço… Seria apenas mais uma vítima casual, uma ponta solta para resolver no fim daquilo tudo. Mas também, depois de ter estado com ela, dificilmente teria alguém que lhe desse aquilo que ela lhe deu. Fê-lo subir às alturas, deu-lhe a provar prazeres proibidos… Era melhor assim! Como é que dizia o Jim Morrison? “It’s better to burn than to fade away!”. Ele tinha queimado intensamente. Extinguir-se-ia com a mesma facilidade.

A espera era necessária, mas deixava-a ansiosa. Já passava das dez da manhã e o telefonema não vinha. Decidiu que precisava de relaxar. Foi até à casa de banho, pôs a água a correr para a banheira e espalhou uns sais e umas pétalas de rosa, voltou para o quarto, fez algum tempo para a banheira encher enquanto se despia, agarrou no telemóvel, voltou a entrar na casa de banho, verificou a temperatura da água, arrastou um banco de apoio para o pé da banheira, onde pousou o telemóvel de forma a poder agarrá-lo rapidamente, entrou para dentro da banheira, deixou o corpo submergir na água, ficando deitada com a cabeça apoiada no rebordo, fechou os olhos, sentiu a sensação de leveza provocada pela água, sentiu-se a relaxar e deixou-se ficar, com o cansaço da noite não dormida a pesar e a deixá-la num estado dormente.

Sentiu uma sombra a passar-lhe diante dos olhos e abriu-os ao mesmo tempo que sentia uma mão a tapar-lhe a boca e um objecto frio e metálico a encostar-se à sua testa. À sua frente estava Céu. Os olhos dela estavam em chamas, pareciam arder, a sua face, obviamente transformada pela dor estava diferente. Teve medo.

- Sabes que estes quartos são insonorizados, não sabes? Seria muito desagradável pagar o que se paga aqui e ter o vizinho do lado a ouvir aquilo que se faz em privado. Isto só para te dizer que não te adianta de nada fazer barulho, porque ninguém vai ouvir. Portanto vou tirar a mão da tua boca.

Ela assentiu, a mão foi retirada mas o silenciador da pequena pistola que ela empunhava continuava firme contra a sua testa.

- Como é que entraste aqui?

- Sabes, já estive aqui muitas vezes, inclusive neste mesmo quarto. Aprendi a entrar com descrição. Além disso, estas portas não são assim tão difíceis de abrir, sobretudo quando se conhece as pessoas certas…

- O que é que queres?

- Erradicar um problema da minha vida. E esse problema, neste momento, és tu.

- E o que é que eu tenho a ver contigo?

Céu levantou a mão esquerda, mostrando-lhe o anel.

- Sabes, tenho este anel só há umas horas, mas acho que não me desfarei dele por nada deste mundo, pelo menos até ser substituído. Infelizmente, dez minutos depois de me ter sido oferecido, a pessoa que mo ofereceu levou um tiro no peito, no meio da rua. Como calculas, é caso para chatear uma pessoa.

- E o que é que eu tenho a ver com isso? – Perguntou ela, já bastante nervosa e a tentar ver as saídas possíveis. Olhava para o telemóvel que estava tão perto, à distância da sua mão, e ao mesmo tempo lhe parecia tão longe.

- Tudo! Sabes o problema dos rapazes? É que mulheres como nós conseguem fazer deles o que quisermos. Conseguimos controlá-los, manipulá-los, sabemos perfeitamente quais os botões que devemos apertar e quando… E um contentor de hormonas masculinas completamente apaixonado faz tudo o que for preciso para manter a paixão. O problema é que também quebram com facilidade!

O miúdo tinha sido apanhado! E, aparentemente, tinha falado!

- Acho que já percebeste o que aconteceu, não?

Ela assentiu, a sua cabeça a dar voltas em busca de uma fuga, algo que pudesse usar em seu favor.

- Queres saber o que é que me intriga mais? Tu já tens tanto. Se tivesses ficado quieta verias a tua fortuna aumentar ainda mais… Porquê?

Ela olhou para Céu e viu que a pergunta era tão genuína quanto a sua resolução.

- Porque ele é meu! Porque me desprezou e ninguém me despreza. Porque fui eu que o fiz, por isso também posso destruí-lo. Porque o que ele está a fazer é meu por direito. E eu quero tudo. Tudo!

Céu olhou para ela, olhar fixo, sério, como se quisesse percebê-la.

- Diz-me uma coisa: alguma vez o amaste?

Não fora pela arma encostada à sua testa e teria largado uma gargalhada. Limitou-se a dizer:

- O amor é para os fracos de espirito!

Céu assentiu. Baixou-se, sem tirar os olhos dela, apanhou algo de dentro de um saco pousado no chão, um pequeno “tablet” e passou-lho para as mãos.

- O miúdo baleou o César, mas foi apanhado quando tentava chegar à Andreia. Vê.

Ela desbloqueou o “tablet”, começou a ler o que estava no ecrã. Páginas após página, todas diziam a mesma coisa. Tudo o que ela tinha estava literalmente a esfumar-se diante dos seus olhos.

- O dinheiro é uma treta, não é? Tão depressa se tem tudo, como de repente não se tem nada… Sobretudo nestes mercados especulativos… Ela olhava, com o pânico espelhado no rosto, enquanto se via, de repente, a braços com dívidas de milhões.

- Mas, como se diz por cá por Portugal, quem tudo quer… tudo perde!

Ficou em silêncio. Se os olhares matassem, Céu teria caído ali, morta.

- Deixa-me explicar-te bem as coisas: neste momento não tens absolutamente nada e estás a dever milhões às pessoas mais poderosas do planeta. Todo o poder que poderias ter esfumou-se. Ninguém te virá ajudar. Os teus pretensos amigos são predadores, como tu, e neste momento o cheiro a sangue que lhes chega às narinas é o teu. Em suma, nem sequer tens dinheiro para contratar um advogado decente. Em cima disto tens uma acusação por tentativa de homicídio. Daqui a pouco vais ter a polícia Portuguesa a bater à porta do quarto. Vão levar-te algemada e vão enfiar-te numa cela de uma prisão. Mais tarde ou mais cedo alguém vai chegar até ti. Este é o panorama que te resta.

Os olhos dela destilavam ódio em direcção a Céu. Mas aquilo que ela dizia era verdade. A vida dela tinha acabado.

- Ainda assim, – continuou Céu – apesar de tudo sinto-me generosa para contigo.

Baixou-se novamente para o saco, tirou uma garrafa de champagne Pernod-Ricard Perrier-Jouët que lhe passou para as mãos.

- Abre – disse secamente. Ela obedeceu, fazendo a rolha saltar com aquele som tão característico. Algum do precioso líquido perdeu-se dissolvido na água da banheira. Depois Céu passou-lhe uma flute. Ela derramou o líquido da garrafa para a flute. Entretanto Céu baixou-se novamente, passando-lhe um pequeno frasco de comprimidos para a mão.

- E agora, a tua escolha.

Ela sabia que estava encurralada. Sabia que a sua vida estava por um fio e que ninguém daria nada por ela. Os seus conhecimentos tinham acabado junto com o seu dinheiro. As dívidas fariam muitos virem atrás de si. Alguém a apanharia. Mas antes disso viria toda a humiliação…

Olhou para Céu, com o coração a destilar ódio.

- Ele morreu? – Atreveu-se ainda a perguntar.

- Não. – Respondeu Céu sem dar mais pormenores. Respirou fundo.

Agarrou no frasco, abriu-o, levou-o à boca despejando o conteúdo e, engolindo, mandou o frasco fora, pegou na flute, empurrou os comprimidos com o champagne, mandou a flute contra a parede, estilhaçando-a em mil pedaços pelo chão, agarrou na garrafa, levou-a à boca e despejou-a em dois ou três fôlegos.

Encostou-se novamente na banheira sentindo-se tonta, não sabia se só do álcool ou também já do efeito dos comprimidos. Já Céu continuava sentada, observando-a, sempre de arma apontada. Ao fim de uns minutos o champagne, os comprimidos e a noite sem dormir começaram a fazer efeito, os olhos começaram a pesar-lhe, sentia-os a fechar-se contra a sua vontade e sentia-se a deslizar para dentro da banheira, sendo a falta de respiração, quando submergia a despertá-la parcialmente.

Viu Céu a levantar-se, chegar bem perto de si e dizer-lhe ao ouvido:

- Podias ser a maior cabra do pedaço, mas a única puta aqui sou eu! – e sentiu a sua consciência a apagar-se e viu num instante a sua vida à sua frente em flashes rápidos, embora lhe parecesse que tinha todo o tempo do mundo para ver cada uma das suas recordações, reviu toda a sua vida, sentiu-se cair num vazio e, de repente, estava a ver-se, como num espelho, mas este espelho não reflectia apenas a sua imagem, reflectia a sua alma, e percebeu naquele momento tudo, sentiu horror e repulsa de si própria, sentiu que tinha desperdiçado tudo o que lhe fora dado e…


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!