terça-feira, 2 de abril de 2024

Conscientização - XXIX

 

 

Esta música aplicava-se na perfeição à noite de ontem… - disse ela de uma forma perfeitamente casual mas deliberadamente provocadora. Ele deu atenção à letra, sendo que até às palavras dela estava completamente alheio à música e perdido no horizonte enquanto lançava o SLS em alta velocidade pela auto-estrada numa espécie de meditação.

 

“(…)Kill the lights, shut 'em off You're electric

Devil eyes telling me come and get it I have you like ooh Baby baby

Ooh baby baby Ah-ooh baby baby Ooh baby baby

Girl tonight you're the prey I'm the hunter

Take you here, take you there Take you wonder

Imagine me whispering in your ear Then I wanna,

Take off your clothes and put something on ya”

 

Ele sorri…

 

“And I ain't trying to fight it, to fight it But you're so magnetic, magnetic”

 

– Indeed you are… – confirma ele olhando-a de lado. Ela sorri e começa levemente a abanar o corpo na dança possível no espaço em que estavam…

 

“Got one life, just live it, just live it Now relax, sing it on your back

If you wanna scream, yeah

Let me know and I'll take you there Get you going like ah-ooh Baby baby Ooh baby baby”

 

- Não fizeste só “ohh baby baby”. Foste um bocado mais longe… – ela sorri e canta de uma forma provocadora para ele por cima da música:

 

– Ah-ooh baby baby ooh baby If you wanna turn right

Hope you're ready to go all night Get you going like ah-ooh Baby baby Ooh baby baby

Ah-ooh baby baby Ooh baby

I’m a make ya scream…

 

E ficou parada a olhar para ele com um ar sedutor de uma ferocidade tal que ele sentiu o magnetismo que o atraia a ela e, pelo tempo a que a sua razão permitiu que a sua visão ficasse afastada da estrada sem risco à velocidade em que iam, ficou preso naquele olhar e mesmo quando o desviou continuava a ter aquele olhar gravado na sua mente enquanto a música seguia…

 

“Out, louder, scream louder Louder, louder, louder

Hey, tonight I scream, I'm on need”

 

- Quem é este rapaz?

- Chama-se Usher. Aqui há uns tempos usei esta música… – e não acabou a frase, como se não quisesse recordar-se de quem era neste momento. Ele percebeu.

- Gostava de ter visto. Esta música tem força.

- Chama-se “Scream”. – E fez uma pausa – Gostavas mesmo de ter visto?

- Claro que sim.

- Porquê?

- Porque aquilo que tu fazes em cima de um palco faz com que se torne secundário o facto de te despires, sendo que o importante é a maneira artística com executas os movimentos e a tua progressiva nudez apenas realça a beleza do número no seu todo. Não o ofusca. Aquilo que acabas por fazer é um nu artístico em movimento fluído.

Tendo em conta o que ela já ia conhecendo dele, a resposta não foi surpreendente.

- Mas, quando me vez sentes desejo?

- Não. – Ela olhou para ele curiosa. “Não?!” – Tu tornas impossível que eu sinta desejo! – “Como?!” – Extasias-me com beleza! – E ela passou de repente do intrigado ao precisar de um momento para registar o que ele tinha dito para ter a certeza de que tinha percebido bem.

- Extasio-te…?

- Sim. Se me deixas em êxtase não podes esperar que eu te deseje. Tornas-te intangível e objecto de adoração pela beleza que transmites.

E ela percebeu que ele via nela tudo aquilo que sempre quisera transmitir com a sua dança e teve a certeza que, pelo menos, uma pessoa no mundo a percebia e via como ela queria ser vista em palco e sentiu-se realizada de uma maneira que não achava possível, como se uma dúvida que sempre a ensombrara lhe saísse de cima dos ombros.

- Não fazia a menor ideia de que me vias assim…

- Nunca me perguntaste antes.

- Tens noção de que me fizeste um enorme elogio, não tens?

- Tenho a noção de que me limitei a constatar algo que para mim é facto. Pode não o ser para mais ninguém, mas para mim é. Não o disse com a intenção de ser um elogio.

- Eu sei, e isso torna o que disseste muito mais… Precioso! Obrigada! – E ela sentiu-se próxima dele de uma maneira que sabia ser impossível, e num momento afastou qualquer pensamento da sua mente, mas a curiosidade foi mais forte e antes que o tivesse pensado deu consigo a perguntar – Porque é que tens tantas muralhas à tua volta?

E a pergunta fez com que, numa batida de coração, tanta coisa lhe tenha vindo à mente.

- Sabes a história dos três porquinhos? – Ela acenou em assentimento – Já fui uma casa de palha, mas fui abaixo ao primeiro embate. Quando me reconstrui, refiz-me em madeira, resisti mais, mas fui abaixo e quando me reconstrui novamente, refiz-me de tijolo… Cada vez que caio chego à conclusão de que tenho de ser mais forte e vou construindo mais camadas para poder aguentar os embates e olha que eu já caí muitas vezes…

- És irritante!

- Posso saber porquê?

- Porque consegues dar respostas concretas que dizem tudo sem revelar nada.

- E isso é irritante?

- É. Chego ao fim a saber o mesmo, mas esclarecida. Ele respirou fundo.

- Pois. Acho que às vezes consigo ser um bocado irritante, nesse sentido. Mas se não fosse não me tinhas feito esta pergunta e não tinhas obtido esta resposta.

- Estava menos esclarecida mas a saber o mesmo.

- Pois… – deixou-se ficar um pouco em silêncio, como que a organizar ideias e a revisitar algumas recordações. Depois continuou – Sabes, enquanto eu crescia, e apesar de o meu pai ter dois empregos, a verdade é que tínhamos muito pouco. Mesmo as minhas roupas eram, muitas vezes, em segunda mão. Como podes calcular não fui um sucesso entre as miúdas durante o… “high School”?

- Liceu.

- Liceu! Como se não bastasse, era frequentemente gozado. Os miúdos conseguem mesmo ser cruéis uns com os outros. Depois fui para a universidade, mas continuei quase em reclusão, uma vez que não tinha dinheiro para ir a festas e não era propriamente muito popular. Além disso, tinha o trabalho como porteiro, o que queria dizer que quando não estava a estudar, estava a trabalhar.

- Cresceste muito solitário…

- Sim. Mesmo muito. Entretanto comecei com os meus modestos investimentos, arriscando algumas economias que tinha e, de repente, sem saber como, comecei a ver dinheiro a sério na minha conta bancária. Se calhar por causa da maneira como cresci não me deixei deslumbrar e achei que era melhor fazer algo para que o dinheiro que tinha crescesse ainda mais. Ainda assim, como é óbvio, resolvi dar-me algumas prendas. Comprei o meu primeiro carro, um Mercedes SL 500 descapotável. Não era novo, mas era qualquer coisa. Para te ser franco, a par com o Corvette, é o carro que mais gosto.

- Ainda o tens?

- Sim, esta na minha garagem de L.A. Estou à espera que acabem de construir a garagem da herdade para mandar vir os meus carros.

- Os teus carros?

- Sim, tenho uns quantos… Mas adiante, comprei o Mercedes, comprei algumas roupas novas, de marca, e de repente era como se eu tivesse passado a ser uma pessoa diferente da que era antes e comecei a ver-me rodeado de amigos e mulheres. Estranho o que uns trapos e um pedaço de lata podem fazer… Claro que eu me aproveitei da situação, sobretudo das mulheres. De repente parecia ter chegado à terra da abundância. E por algum tempo, muito pouco, perdi completamente a noção das coisas. E depois apaixonei-me pelo protótipo da mulher americana, a rapariguinha da porta ao lado com as medidas perfeitas… E durante uma paixão assolapada, descobri que não devia confiar em ninguém. Afinal ela gostava dos meus fatos e do Mercedes e eu era apenas um acessório que ela tinha de aturar. Curiosamente, o tipo que se auto-intitulava de “o meu melhor amigo” era um acessório que ela gostava de usar sem roupas nem latas agarradas.

- Partiu-te o coração…

- Sim, mas os dois deram-me a maior das lições.

- Que foi…?

- Que apenas devo confiar no meu julgamento. Entretanto acabei o meu curso de gestão e os investimentos que tinha feito estavam a dar dividendos altíssimos. Como os meus investimentos estavam todos em Silicon Valley resolvi deixar New York para trás e fixei-me em Los Angeles. Compreendi que a chave para ser bem-sucedido era perceber as pessoas e resolvi tirar um curso de psicologia.

- Isso explica muita coisa… – disse ela, como se comentasse para si própria.

- Explica? – Perguntou ele admirado.

- Claro que explica. Nunca conheci um psicólogo que não fosse algo “estranho”!

- Isso que dizer que eu sou algo… “estranho”?! – Perguntou ele com um ar divertido.

- E não és?

Ele soltou uma gargalhada.

- Provavelmente sou um bocado “freak”!

- Um bocado… Mas, e depois?

- Depois era um tipo solteiro com muito dinheiro na terra dos sonhos. Mas nunca mais me permiti sofrer desilusões. Passei a perceber muito bem as pessoas e sempre soube o que elas queriam de mim. Limitei-me a começar a gerir expectativas e descartei qualquer hipótese de relações sérias.

- Não consegues confiar nas pessoas?

- Consigo, claro que consigo. Confio em ti, por exemplo, senão não te tinha dito isto tudo. Só não confio a nível sentimental. Tenho uma sombra demasiado grande atrás de mim. O meu dinheiro.

- E é por isso que és um solitário…

- Sim. Ao fim ao cabo, é um motivo como outro qualquer…

- Mas não deixa de ser algo triste…

- É. Mas e o teu motivo, qual é?

A pergunta apanhou-a completamente de surpresa e, de repente, sentiu que se tinha de afundar no banco e ficar em silêncio…

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