terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Consequências (XXXVI de XLIII)



Marie tinha tirado a segunda-feira de férias, para se recompor do casamento. Tiago tinha saído de manhã, ela tinha ficado a preguiçar na sala com um livro que tentava ler em vão, porque os seus pensamentos estavam constantemente a relembrar o dia anterior e apercebeu-se quando já anoitecia que se esquecera de almoçar, sentindo fome. Levantou-se e foi para a cozinha para ver se fazia qualquer coisa rápida, uns ovos mexidos ou assim, quando um ronco de motor familiar suou na rua ao mesmo tempo que a porta da garagem a abrir a assustou.

Só podia ser Alex, claro. Não tinha a chave da porta, mas tinha o comando da garagem no carro e ia entrar pela garagem. Lembrou-se de repente que estava de pijama. Lembrou-se de repente que se ele estava aqui, já teria jantado? Ficou em pânico indecisa entre correr para o quarto ou ver qualquer coisa para comer quando ele praticamente se materializa à sua frente.

Ela fica sem reacção e ele põe duas embalagens de comida chinesa na mesa e diz simplesmente:

“Trouxe jantar. Chop Suey de gambas, não é?”

Ela acenou. Não sabia o que mais fazer. Ele indicou-lhe a cadeira com um sorriso e ela sentou-se. Ele foi ao frigorífico, tirou uma garrafa de vinho branco, foi ao armário buscar dois copos e serviu os dois. Pegaram nos pauzinhos que acompanhavam a comida e começaram a comer em silêncio. Para um observador de fora, não fora o ar de Marie, nada pareceria incomum, uma espécie de rotina estabelecida durante anos.

Acabaram de comer, ele tirou dois cafés expressos que foram bebidos em silêncio e depois foi buscar um copo ao armário, duas pedras de gelo ao frigorífico, foi ao armário das bebidas e procurou o seu whisky, com o qual encheu o copo, sentou-se de volta na mesa, deu um gole de whisky que lhe soube pela vida.

“Tinha saudades deste whisky” confessou ele a Marie que continuava atónita. Depois disse finalmente.

“Acho que temos de falar.”

Levantaram-se, foram para a sala, sentaram-se no sofá e Marie deixou-se ficar em silêncio, observando o ar descontraído dele, que a desconcertava completamente. Aliás, ela ainda não acreditava no que estava a acontecer.

Alex ficou algum tempo só a olhar para ela, como que à espera, mas ela não sabia mesmo o que fazer. Ele finalmente começou:

“Não quero que digas nada para justificar alguma coisa. Aquilo que fizeste não tem justificação e tu sabias que eu sabia isso, mesmo quando tu te convenceste do contrário.

Não consegues calcular a dor que causaste, por isso nem te atrevas a pedir perdão por algo que nem sequer consegues compreender. E sabemos ambos que na verdade tu não o mereces.”

Ela ficou a olhar para ele. Aquelas palavras ressoavam nela, de alguma maneira. Mas ela não conseguia bem explicar o porquê.

“Dito isto, o que é que te passou pela cabeça pensares que podias humilhar-me daquela maneira?”

Ela ficou parada a pensar e só depois respondeu.

“Nunca houve ali nenhuma humilhação. Compreendo que tenhas sentido isso, mas se olhares bem para onde estávamos, toda a gente ali estava no mesmo barco. Todos iam passar pela mesma situação. Não é como se todos estivessem ali para assistir ao que aconteceu entre nós. A maior parte das pessoas que lá estava nem deu por nada. Não houve qualquer intenção de te humilhar.”

Alex acenou com a cabeça, aceitando a resposta.

“Porque é que quiseste fazer aquilo?”

“A resposta curta e óbvia é porque fui estupida.”

“E a comprida?”

“Bem, a comprida se calhar vai estar cheia de desculpas e justificações que são estupidas, como tu próprio já sabes.”

“Ainda assim, estamos aqui os dois. Calculo o que vais dizer, mas mesmo assim queria que tu tentasses explicar-me.”

Marie respirou fundo. O que é que ela poderia dizer?

“Sabes, durante anos ouvi as minhas amigas a falar das reuniões. Do quanto era excitante. Da imprevisibilidade. Da falta de risco, uma vez que não havia envolvimentos emocionais. Mas aquilo que mais me fez querer que acontecesse foi o que elas contavam que acontecia no dia a seguir, quando voltavam a casa e a maneira como elas e os maridos faziam amor com paixão e tesão depois daquela noite, mas, mais ainda, de como elas se sentiam ainda mais ligadas aos maridos depois da experiência. E eu comecei a imaginar isso contigo. E as minhas amigas, quando eu comecei a mostrar algum interesse, atazanavam-me para eu te convencer. Todas te achavam atraente e todas, sem excepção, queriam… Brincar contigo.”

“Porque é que nunca falaste disto comigo?”

“Alex, se eu falasse contigo acerca do facto de existir este ‘clube’ e do que as minhas amigas faziam, tu provavelmente ficarias mal disposto se eu sequer me continuasse a encontrar com elas. Quanto mais propor-te algo assim. O que é que terias feito se eu te propusesse ir a uma festa de swing, embora não fosse uma simples festa de troca de casais como todas as outras?”

“Provavelmente internava-te numa instituição para descobrirem o que se passava com a tua cabeça.”

“Estupidamente convenci-me que ias ficar zangado, mas quando passasses pela mesma experiencia, ainda que nunca a quisesses repetir, irias perceber… Eu tinha mesmo curiosidade em estar com outro homem uma vez na vida e tu… bem, eu conheço-te e se aproveitasses a tua noite de liberdade, ias deixar alguma mulher extremamente feliz. E quando eu soube que era a Lisa quem estava contigo fiquei tão feliz… Há mulheres bonitas mas a Lisa…”

Alex concordou.

“Fiquei um bocadinho preocupada quando a Lisa falou comigo depois de sair daqui, e só pensava em chegar a casa…”

Alex deixou o silêncio cair na sala durante algum tempo, enquanto continuou a beberricar o seu whisky. Depois perguntou:

“E satisfazeres a tua curiosidade valeu a pena?”

“Não. De maneira nenhuma. Nem na altura, nem nas consequências. Bem, na altura mesmo estava a valer, mas não pelo sexo em si. A verdade é que a excitação que sentia de estar a fazer algo… maroto, proibido, me estava a excitar a um ponto em que só conseguia pensar no que te ia fazer quando chegasse a casa, se a Lisa não tivesse dado cabo de ti.”

Alex assentiu. Acabou o whisky, levantou-se para se ir servir.

“Queres alguma coisa para ti?”

“Um vinho tinto, se não te importares.”

Voltou da cozinha com o whisky e entregou-lhe um copo de vinho tinto.

“E tu?” perguntou ela finalmente.

“Eu?” parou um bocado para pensar no que ia dizer a seguir “No momento em que me apercebi do que se passava, senti-me enganado, mais ainda quando percebi que parecias estar a querer esconder-te de mim. No momento em que te disse para virmos embora e tu preferiste continuar senti que não tinhas um pingo de respeito por mim e nesse momento cresceu em mim uma certeza de que não me amavas. Porque se amas, respeitas, mas tu descartaste o que te disse na cara e seguiste em frente. No momento em que me viraste as costas e saíste com outro homem, arrancaste-me o coração do peito, mandaste-o ao chão e espezinhaste-o. Acho que nunca vais saber o que senti.

Marie olhou para ele e disse:

“Se me tivesses dito isso anteontem, concordaria contigo. Mas ontem, quando Paola se despediu de ti com aquele beijo, eu percebi. Sabes, naquele momento senti isso mesmo. O meu coração a ser arrancado do peito. Mas lembrei-me também de uma conversa que tive aqui com a Lisa e o Fernando nesse Sábado, em que ele disse que esperava sempre que o numero dele fosse sorteado antes do dela, para não ter de assistir a ela sair com outro homem, e que quando não era ele preferia afastar-se e não ver.”

“Mas ele estava lá de livre vontade, não?”

“Sim, mas… foi uma conversa longa em que ele explicou porque é que o clube apareceu e o que é que o levava a participar e deixar Lisa participar. Resumidamente, e aparentemente é assim para a maioria dos maridos do clube, todos eles são profissionalmente bem-sucedidos, mas como sabes isso trás um preço: a ausência física. Mas todos eles amam as mulheres e o medo de que, por falta dessa presença física, elas se envolvam intimamente e emocionalmente com outros homens e acabem com os casamentos levou a que eles criassem este escape. Não é que eles não beneficiem também, mas não era o que eles queriam que acontecesse. Quando a Lisa percebeu que o Fernando dispensava completamente ir e só ia para tentar evitar que acontecesse alguma coisa e Lisa acabasse por se afastar, ela tratou de pôr fim às idas ao clube no momento. Desde aí, tornaram-se um casal exemplar. O Fernando viaja muito e normalmente é acompanhado por mim, que sou assistente dele, mas a maior parte das vezes a Lisa faz questão de ir também.”

“Sim, falamos anteontem. Estava à espera de ser insultado pela maneira como me portei com a Lisa e fiquei chocado quando me agradeceram.”

“Também não precisas de martirizar com o que aconteceu com a Lisa. Não sei se deste por isso, mas ela não se queixou minimamente e adorou estar contigo, mesmo no estado de espirito em que estavas.”

“Sabes que não me recordo quase do que se passou nessa noite? Tenho vagas recordações de a Lisa estar no carro a falar comigo acerca de ti, vagas recordações do que fiz… Acho que até tomar a minha decisão de partir naquela madrugada, tudo parece uma recordação de um pesadelo. Tenho uma ideia geral, mas nada de concreto. Mas naquele momento odiava-te tanto quanto te amava e sabia que se ficasse em casa e tu entrasses com um sorriso no rosto depois de passar a noite com outro homem, eu ia enlouquecer. E não ia interessar minimamente o que me dissesses. Eu não ia confiar em ti e ia passar a vida a pensar se já terias feito isto antes, com quem…”

“Percebo. Mas o que é que te fez voltar?”

“Como te disse ontem, estar à beira da morte, passar uma semana em coma induzido, duas semanas grogue com drogas numa cama de hospital sem saber se me ia conseguir pôr de pé outra vez e meses em fisioterapia mudam um bocado a perspectiva das coisas. E depois… A Paola disse-me algo uma vez que me ficou gravado. Para te castigar eu desisti de viver. Sabes que até ser ferido só saia do meu buraco para ir a algum lado com os miúdos. As únicas pessoas com quem tinha algum contacto eram colegas de trabalho e o pessoal que fazia a minha segurança. E depois convenci-me de que seguiras em frente com a tua vida e eu, um dia, ia acabar por seguir em frente com a minha, fosse onde fosse. Não fazia a mínima intenção de voltar.”

“Mas estás aqui!”

“Sim, estou.”

“Porquê?”

“Por causa da tua carta.”

“Carta?! Qual carta?”

Alex tirou umas folhas de papel dobradas do bolso do casaco e deu-lhas. Ela desdobrou as folhas, percebeu o que eram e percebeu finalmente que ele tinha usado as suas próprias palavras para começar esta conversa. Estava estupefacta a olhar para os papeis.

“Eu mandei estes papeis para o lixo. Eram só um desabafo. Quando soube que tinhas sido baleado só queria ir a correr para o teu lado… Como?”

“A Patrícia encontrou-os no lixo no dia a seguir, de manhã e guardou-os. E quando eu lhe disse que ou o casamento seria noutro lado qualquer ou eu não viria e ela perguntou porquê, disse-lhe que não queria mesmo enfrentar complicações por causa do divorcio. Foi quando ela me deu a carta e me disse que não estávamos divorciados.”

Marie apenas abanava a cabeça com um sorriso, não querendo acreditar.

“A vida é tão estranha, às vezes… E agora? Em que é que ficamos?”

“Agora… O que é que tu queres, Marie?”

“A ti, Alex. Quero-te a ti.”

“Sabes que é um caminho longo… Não vamos estalar os dedos e as coisas voltam ao que eram. Eu não sou quem era, nem tu és.”

Ela simplesmente acenou em concordância.

“Queres tentar?”

“Mais que tudo!”

Continuaram a falar pela noite dentro, pondo o outro ao corrente dos últimos dois anos e no fim da noite Marie foi para o seu quarto e Alex para o quarto de hospedes.

Marie estava um pouco triste por ele não estar na cama ao seu lado, mas imensamente feliz por estar, pelo menos, debaixo do mesmo teto.


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