quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Renascimento (XXX de XL)

 Cassandra estava quieta como um manequim, com uma costureira a andar à sua volta enquanto verificava as ultimas alterações ao seu vestido de noiva, quando o seu telemóvel tocou. Viu quem era e atendeu.

-Sim, Miranda, bom dia.

-Bom dia. Já sei que não estás em casa…

-Não, estou aqui nos últimos acertos ao meu vestido. Acho que está pronto.

-Sempre ficaste com aquele que vimos juntas?

-Sim. Era o mais simples. Não me estou a ver a descer aquela igrejinha centenária num vestido ultra espampanante. Acho que o Tobias fugia logo.

Riram-se as duas. Miranda continuou.

-Olha, estou a sair agora do tribunal. Vamos almoçar?

Combinaram o local e uma hora depois sentavam-se ambas à mesa de um restaurante Português em Queens. 

-Estás mesmo com “saudades”, como dizem eles por lá. – Riu-se Miranda olhando em volta admirando a escolha de Cassandra.

-Acredita. Mal posso esperar. Creio que dentro de uns dois meses tenho tudo tratado e posso ir de uma vez por todas.

-Cá para mim tu tens é “saudades” do Tobias…

Cassandra corou.

-Sabes, nós não chegamos a tanto…

Miranda olhou para ela admirada.

-Não? Mas eu pensei que vocês lá…

-Não. O Tobias foi sempre um verdadeiro cavalheiro… Por mais que eu quisesse que ele às vezes não fosse. As coisas arrancaram mesmo foi depois de nos virmos embora. Estávamos constantemente a trocar e-mails e por vezes depois dele jantar, ligava-me e passávamos horas ao telefone, e fomos falando…

-Bem, isso é mesmo um romance à moda antiga. Então não tens “saudades”, está é cheia de vontade de… - Desse Miranda piscando-lhe o olho enquanto ambas se riam como adolescentes. 

-E tu? Notícias do Rob?

-Não. Nada.

-Sabes que existem telefones, telemóveis, e-mails…

-Sabes, saí hoje do tribunal. Finalmente Robert MaCallum foi declarado morto, sete anos depois do seu alegado ultimo avistamento. Neste momento sou a herdeira de todo o seu legado.

-E então?

-Sou a herdeira de tudo aquilo que ele deixou para trás e com o que não quer qualquer relação. Nem sei se é boa ideia entreter a noção de que ele quereria alguma coisa comigo.

-Amiga, para alguém tão inteligente, às vezes és um bocadinho densa.

Miranda ficou calada, sem saber o que responder à amiga, que continuou:

-De qualquer maneira, daqui a pouco tempo vais ter de te confrontar com ele. Afinal, ele vai ser o padrinho de casamento do Tobias…

-Eu sei. Aquilo que também sei é que quero que o nome MaCallum se transforme em algo que ele possa ver como bom.

-Falando nisso, como vai a Patrícia?

-Está a gerir tudo como eu esperava. As obras estão bem adiantadas e creio que devem estar concluídas também dentro de um ou dois meses.

-E depois, que vais fazer? Vais ter o Rob como vizinho e mudar-te para lá?

-Não sei. Depende. Para já a Patrícia vai administrar a quinta e depois verei…


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Renascimento (XXIX de XL)

Miranda saiu do táxi, nos arredores de Nova-Iorque, e teve de confirmar se estava na morada certa. A vizinhança não parecia muito recomendável, bem como o bar onde se encontrava. Entrou e viu Marcus sentado numa mesa afastada. Dirigiu-se a ele e sentou-se na mesa.

-O que vai querer tomar? – Perguntou este.

-Uma água.

Marcus fez Sinal a uma empregada e fez o pedido.

-Sr. Marcus, presumo que o seu pedido para nos encontrarmos aqui não seja por acaso.

Marcus olhou para ela e sorriu, mas ficou em silêncio enquanto esperava que a empregada trouxesse uma garrafa e um copo, que deixou na mesa. Quando esta se afastou, ele falou finalmente.

-Não, não é por acaso. Sabe, depois do que me contou tomei um interesse especial no seu caso. Não foi à toa que lhe disse que havia uma diferença entre querer justiça ou vingança. Tive uma pessoa próxima que por falta de discernimento, ingenuidade, necessidade ou seja por que motivo for, porque no fim os motivos interessam sempre menos que os actos, foi vítima, tal como a senhora foi. Infelizmente, se no seu caso teve uma perda, no meu também. Percebe assim que tenho um investimento pessoal em lidar com este tipo de pessoas…

-Percebo perfeitamente.

-Dito isto, digo-lhe que tive uma conversa interessantíssima com um senhor chamado Phillip Kane. Não sei se o nome lhe diz alguma coisa?

-Não, sendo franca, nada.

-Pois bem. É um advogado. Há oito anos atrás era o braço direito do CEO da companhia discográfica do seu marido.

Miranda fez uma súbita expressão de profunda surpresa.

-E confirmou que foi ele que…

-Sim. Digamos que consegui ter com ele uma conversa aberta e honesta, coisa que creio ser rara, pelo menos em relação a ele. Mas, entretanto, não só confirmei como consegui obter a provável localização das fotos, não só as que lhe dizem respeito, mas aparentemente dezenas de outras.

-Sabe onde estão?

-Sei onde estavam há oito anos. Presumo que ainda estejam no mesmo local. São trofeus. Ele não os quereria longe.

-Compreendo.

-Tenho de lhe dizer que, como parte interessado, as fotos serão obtidas, pelo menos se ainda lá estiverem. Mas, o seu acesso a elas depende do que pretende fazer com a prova documental.

-Como assim?

-Se o seu interesse for somente obter justiça contra a pessoa culpada, conte comigo. Até lhe digo mais, uma vez que a minha firma está envolvida, terá de pagar os nossos serviços, mas eu suportarei metade dos custos. Mas se o seu interesse for vingança cega, não conte comigo. Quando para apanhar culpados se destrói inocentes pelo caminho, não vale a pena.

-Compreendo. Desde aquele dia no seu escritório, quando me fez menção a justiça ou vingança, que fiquei a pensar nisso. Quero sobretudo justiça. Não quero vir a sentir-me culpada por danos colaterais.

-Gosto de saber que estamos de acordo. E, voltando ao começo da conversa, não é por acaso que não estamos no meu escritório, ou em sua casa. Estamos aqui porque aquilo que vamos falar não é a maneira mais ética de fazer as coisas, mas será a mais eficaz.

-E o que propõe?

-Bem, nada disto interessa até termos as fotos em nossa posse. Com alguma sorte, isso ocorrerá nas próximas horas. Tenho alguém infiltrado na equipa de limpeza do edifício. Caso tenhamos as fotos deveremos tentar contactar com todas as partes visadas de forma privada, dar-lhes as fotos e o poder de decisão do que fazer com elas.

-Mas não acha que essas pessoas podem querer exercer alguma espécie de vingança, também?

-Claro que é uma possibilidade. Mas nós vamos dar uma saída que evite isso, tentando explicar as consequências de uma vingança cega. Mas no fim, não podemos ser responsáveis pelas atitudes de outros. Só as nossas. E se tivermos essas fotos comprometedoras, creio ser um dever, no mínimo, moral, de lhes entregar as fotos para que façam o que bem entenderem.

-Claro. – Respondeu Miranda embora pudesse prever claramente as consequências.

-Darei a todos a mesma opção que lhe vou dar a si.

-Que é?

-Liberdade.

-Como assim?

-Enquanto essas fotos existirem, poderão vir a lume. E é impossível saber se, nestes anos, não terão sido feitas cópias. No entanto, se aparecerem de propósito…

-Como assim?

-Imagine que o senhor Phillip Kane tem um súbito rasgo de consciência, não consegue viver com ele próprio e denuncia ele o antigo patrão, expondo a sua conduta e escudando o resto dos executivos da editora de repercussões…

-E porque faria ele isso?

-Sabe, quando o seu marido desapareceu, ele saiu da editora para uma empresa legal de alto gabarito, onde entrou de imediato como sócio, o que é muito invulgar. Acabou por conhecer e casar-se com a filha de um dos advogados sénior e herdeira de uma fortuna colossal. Em caso de divórcio, não tenho dúvidas que o sogro não só lhe acabaria com a carreira, como o deixaria destituído. Portanto, neste momento, o senhor Kane teria muito a perder. E pode vir a perdê-lo, se o sogro e a esposa vierem a receber alguns vídeos com as actividades que ele costuma ter nas sextas-feiras à tarde e que envolvem uma barrista ruiva.

-Ainda assim, acusar o ex-empregador não terá o mesmo efeito?

-Ele pode sempre alegar que contratualmente não poderia revelar nada que pusesse em causa e editora.

-E isso é verdade?

-É. Mas também é que se ele não acusar a editora, mas sim somente a pessoa… De qualquer forma, se ele o fizer e o problema se tornar público as fotos não terão peso algum. E podem até ter o efeito contrário, gerando simpatia pelas vítimas e pelo próprio Phillip. Ele vai ser o herói sensação das mulheres e jamais a mulher se divorciaria dele. Ia parecer mal. E entretanto os contractos assinados sob pressão poderão eventualmente ser renegociados… E todos ficam a ganhar menos uma pessoa.

-O culpado!

-Sim. Que me diz?

Mirada bebeu alguma da sua água e respondeu.

-Digo que, se calhar enquanto vítima, devia ser eu a contactar com as outras vítimas. Acredito que terão mais empatia comigo.

Marcus sorriu.

-Então, vamos ver se os deuses da boa fortuna nos bafejam com sorte e se as fotos aparecem ainda hoje…


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Renascimento (XXVIII de XL)

 -Pá, mas que raio se passa aqui? – Perguntou Rob ao Zé quando entrou no estabelecimento dele pelas dez da manhã.

-Bom dia para ti também! – Respondeu o Zé – Estou um bocado ocupado, vais ter de esperar pelo café.

-Mas de onde é que saiu este pessoal todo?

A casa estava a abarrotar de homens com um aspecto mais ou menos rude a comer sandes e a beber qualquer coisa, maioritariamente cerveja.

-Aparentemente é a pausa a meio da manhã.

-Hã?

-Não sabias que a Herdade do Monte foi vendida?

-Vendida? A quem? Não me digas que foi a Cassandra que a comprou depois de lá ter ficado…

-Não, A cassandra comprou uma casa na Aldeia do Tobias. Já a viste? Está a ficar um casarão…

-Já vi, já. Mas então e a herdade?

-Não sei… Acho que nem o pessoal que lá está a trabalhar sabe.

-Mas vão lá fazer o quê?

-Sei lá, pá. Se calhar são mais uns espanhóis a plantarem vinha e oliveiras para depois mandarem tudo para Espanha e nós termos de importar de lá mais caro o que saiu daqui… O costume, portanto.

-Enfim… Mas o café sai ou não?

-Achas que eu estou pouco ocupado? Espera um bocadinho que este pessoal já se vai embora e voltas a ficar com a casa toda para ti.

-Espero que não dêem cabo do jornal. – Disse Rob com um ar um pouco chateado.

-Espero que não se ponham a fazer as palavras cruzadas. Isso é que era chato.

De repente mais um carro apareceu e estacionou. A porta abriu-se e um longo par de pernas torneadas apareceu primeiro. “Lá, vamos nós…”, pensou Rob para si próprio, mas quando a dona das pernas acabou de sair do carro, Rob descansou. Não era Miranda.

O pessoal que ali estava a comer, falar, rir, calou-se de repente com a sua chegada e quando ela entrou no estabelecimento, podia ouvir-se um alfinete a cair. Todos os olhos estavam postos nela, mas ela não parecia minimamente incomodada. Aliás, parecia nem reparar.

Dirigiu-se ao balcão, ficando ao lado de Rob, para quem nem sequer olhou e dirigiu-se directamente ao Zé:

-Do you speak english?

-“Um pouquinho” – respondeu o Zé no seu inglês arranhado carregado de sotaque Alentejano.

-Ainda bem. – Respondeu a jovem – Já reparei que é o único estabelecimento da região. Queria propor-lhe um acordo.

O Zé ficou intrigado e ela continuou.

-O meu nome é Patrícia e trabalho para a fundação que está a fazer a renovação da Herdade do Monte. Vamos ter cerca de trinta trabalhadores em permanência e queria saber se posso fazer um acordo consigo de maneira a providenciar pequenos-almoços, almoços e jantares a estes trabalhadores.

-Trinta? É capaz de ser complicado. Como vê, tenho um espaço algo limitado.

-Sim, compreendo. Mas as refeições não têm de ser feitas aqui. Pode providenciar a comida e entrega-la na herdade.

-Bem, assim talvez se arranje qualquer coisa. Claro que depende também de outras coisas…

Patrícia sorriu.

-Diga-me, quarenta euros por pessoa, por dia, parece-lhe razoável? Para as três refeições, incluindo bebidas e sobremesas.

O Zé ficou um bocado sem saber o que pensar. Olhou para Rob, que encolheu os ombros. 

-Não me parece mal, para ser franco. Ao longo de quanto tempo?

-O tempo que as obras demorarem, o que esperamos que seja apenas dois ou três meses.

-Sabe que aqui só faço comida que é habitual por aqui. Dietas especiais a coisas afins…

-Sim, perfeitamente. Mas isso são detalhes que podemos rever com mais pormenor caso se disponha a aceitar.

Zé olhou para Rob e este acenou com a cabeça como que dizendo-lhe “o que é que tens a perder?”

-Pois bem, - acabou por responder o Zé – aceito. 

Patrícia sorriu pela primeira vez desde que tinha entrado e o seu rosto pareceu iluminar-se de repente.

-Sr. Carlos, - chamou, olhando para os operários presentes, vindo um homem pequeno mas robusto, com a pele marcada pelo sol, de imediato ao pé dela – este é o Sr. Zé. Ele vai providenciar-vos todas as refeições. Acerte todos os detalhes com ele, por favor.

-Sim, senhora. - Respondeu Carlos num tom subserviente.

Dito isto, Patrícia voltou-se para Zé, estendeu-lhe a mão, que Zé apertou num cumprimento.

-Foi um gosto, senhor Zé. 

-O gosto foi meu.

E ela virou-se, saiu, entrou no carro e partiu.

O Zé ainda estava atónito quando o Rob lhe perguntou com um sorriso de gozo estampado na cara:

-Então? E desta que renovas o estabelecimento? 

O Zé só se riu e abanou a cabeça.


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Renascimento (XXVII de XL)

 Phil estava sentado a bebericar o seu Gin num luxuoso bar em Manhattan, numa cabine semiprivada quando um estranho se sentou à sua frente, sem cerimónia, sorrindo.

-Desculpe, amigo – disse com um ar que tinha tanto de surpreso como de aborrecido – mas espero companhia e há mais lugares vagos por aí.

-Lamento, mas hoje a sua companhia não vai poder vir.

Como se se tratasse de uma deixa numa peça de teatro, o seu telemóvel tocou. Ele viu quem era no visor, olhou para o estranho e atendeu.

-Sim?

-Oi, querido. Olha, desculpa mas hoje não vai dar. Tive uma rotura de um cano em casa e tenho de ir para lá, por causa dos canalizadores… Desculpa. Queria tanto ver-te…

-E eu a ti. Vai lá. Depois combinamos qualquer coisa.

-Eu prometo que vai valer a pena – disse a voz do outro lado num tom provocador.

E sem mais palavras Phil desligou a chamada e encarou o estranho.

-Sabe, Phil, nós precisávamos de ter esta conversa e, pelo que temos observado, este seria o único momento possível.

-Creio estar em desvantagem. Como disse que se chamava?

-Não disse. E isso é um detalhe inconsequente para a nossa conversa. 

-E o que o leva a crer que eu queira falar consigo?

-Tenho motivos para pensar que não só falará, como até poderá vir a colaborar e, quiçá, ser visto como uma espécie de herói. Não que o mereça, para ser franco. Mas estou-me a adiantar.

Entretanto chegou um empregado que trouxe outro Gin para Phil e uma bebida para o estranho.

-Phil, lembra-se de há uns oito anos atrás, quando deixou a companhia discográfica?

Phil, não respondeu, limitando-se a olhar para o estranho. Depois levantou-se, mandou com umas notas para cima da mesa e virou-se para sair.

-Se fosse eu a si não faria isso. – Disse o estranho de repente - Sabe, basta eu mandar uma mensagem com o meu telemóvel e em minutos a sua esposa que neste momento, enquanto falamos, está num centro comercial, numa loja de roupas para crianças, ficará a saber com detalhe o que acontece quando sai cedo do trabalho às sextas-feiras… como hoje, por exemplo.

Isto parou Phil, que olhou para o estranho e voltou a sentar-se.

-Isto é alguma tentativa de extorsão?

-Não, de todo. Como lhe disse é uma conversa. Mas para esta conversa dar frutos, tem de ser uma conversa honesta. Sendo um homem inteligente, como sei que é, partirá certamente do pressuposto que há coisas que sabemos à partida, portanto tentar nega-las de alguma maneira só o fará parecer mal aos nossos olhos. E já percebeu que queremos e faremos o que for necessário para garantir a sua honestidade. Portanto tudo o que acontecer consigo a seguir a esta conversa será uma directa consequência dos seus actos, para o bem e para o mal. Estamos entendidos?

Phil anuiu.

-Pode então responder à minha pergunta?

-Sim, lembro-me perfeitamente.

-Porque é que saiu abruptamente da companhia? Segundo entendo tinha a total confiança do CEO e de certeza que este cobriria qualquer oferta que lhe fosse feita. Afinal, não teria sido útil mantê-lo por perto?

-Porque é que acha isso?

-Porque sabia, por certo, de muita coisa que se passava no topo da editora.

-Quando eu saí assinei um acordo que me proíbe de usar qualquer informação que tenha de um modo que prejudique a editora.

-Certo. Mas porquê sair?

-Se calhar precisava de novos desafios…

O estranho sorriu.

-Lembra-se do que eu disse acerca da honestidade? Como é que podemos criar uma relação de confiança se continuar a insistir em distorcer a realidade.

-Como assim?

-Vejamos: É o homem de confiança da pessoa no topo da companhia durante anos; de repente sai para uma firma onde entra directamente como sócio; Graças a isso e a ter expandido o seu círculo social, está agora casado com uma herdeira de um império financeiro de biliões. Torna-se óbvio que a sua saída só lhe trouxe sucesso. Mas ambos sabemos que o motivo pelo qual saiu não foi procurar novos desafios. Assim como ambos sabemos que a sua boa fortuna não foi totalmente fruto de trabalho árduo e alguma sorte.

Phil, engoliu em seco.

-Tentemos mais uma vez, de forma mais definitiva. Porquê sair?

Phil fez uma pausa. Podia dar dezenas de respostas e argumentar de forma plausível, capaz de convencer um júri, para todas elas. Afinal, era isso que fazia na vida. No entanto neste momento duvidava que isso lhe trouxesse alguma vantagem. Analisou bem a sua posição e, sentindo-se encurralado respondeu:

-Por causa do desaparecimento de Robert MaCallum.

-Vê? Não é mais fácil ser honesto? Continuando nesta veia de honestidade, importa-se de elaborar? Como é que as duas coisas se relacionam?

Phil ficou a olhar para o estranho. O que é que ele saberia ao certo? Supostamente ninguém a não ser ele próprio, o seu antigo patrão e o próprio Robert MaCallum poderiam saber de alguma coisa. Teria Robert deixado algo escrito que tivesse vindo a lume agora? Qual seria a probabilidade? Mas também, qual seria a probabilidade de ele estar num bar numa sexta-feira à tarde a ter esta conversa?

-Sabe das fotos? – Limitou-se a perguntar.

O estranho acenou afirmativamente com um sorriso.

-Aquilo que nós pensamos é que, quando Robert desapareceu, o seu antigo patrão percebeu que se ele de repente reaparecesse aquela reunião poderia explodir-lhe nas mãos. Afastá-lo seria uma opção. Foi o que aconteceu, não foi?

-Foi. – Confirmou Phil com um ar derrotado.

-Pronto. Viu, não foi assim tão difícil.

Phil queria relaxar mas algo lhe dizia que esta conversa ainda não tinha acabado.

-E agora é onde as suas acções terão consequências.

Phil tremeu por dentro.

-Por acaso tem conhecimento do sitio onde estão guardadas estas fotos?

-Não. – Respondeu Phil, causando um ar desapontamento no estranho, começando este a pegar no telemóvel. Acrescentou de imediato – Mas sei onde estavam há oito anos. Num cofre, no gabinete do meu antigo patrão.

O estranho sorriu.

-É justo. E diga-me, o que é expectável que esteja nesse cofre? Além destas fotos, claro…

-Dezenas de outras. De várias pessoas, a maior parte artistas ou aspirantes e em alguns casos outras agentes.

-E é prática corrente serem depois usadas contra estas pessoas, certo? – Perguntando o estranho olhando para ele como se ele fosse desprezível.

-Sim.

-Muito bem, Phil. Como lhe disse, as suas acções, daqui para a frente, ditarão consequências. Escolha-as com cuidado. Por exemplo, creio que achará que será do seu melhor interesse que esta nossa conversa nunca tenha acontecido. 

Phil anuiu.

O estranho levantou-se.

-A sua conta está paga. E sua mulher estará em casa daqui a vinte minutos. Sugiro umas flores e chocolates.


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Renascimento (XXVI de XL)

 Cassandra esperava já no apartamento de Miranda quando esta entrou e ficou surpresa ao vê-la.

-Olá, a Patrícia não me avisou que estavas aqui, senão tinha tentado despachar-me.

-Olá, não faz mal, também não estou aqui assim há tanto tempo. A Patrícia disse-me o que foste fazer.

-Advogados e tribunais. Seria suposto ser mais simples declarar alguém como morto, quando já está desaparecido há oito anos.

-Porque é que estás a ter problemas?

-Porque aparentemente como ouve alegados avistamentos até há seis anos atrás, o ministério público está a tentar contestar. E nós estamos a tentar demonstrar que esses avistamentos nunca foram comprovados. Se calhar tenho de aguardar mais uns meses até ter isto despachado. Quando fizerem sete anos do último avistamento, já não há impedimento.

-E o resto?

-Bem, tenho tido notícias dos investigadores. Acho que há muita coisa alegada, mas não conseguiram ainda obter provas…

-Sabes que hoje em dia, num caso destes, bastaria vir a público que alguém estava a conduzir uma investigação e o próprio publico se encarregaria de os condenar.

-Verdade, mas eu pergunto-me que propósito maior serviria isso?

-Não os deixar impunes?

Miranda sorriu.

-Sabes, quando chegamos de Portugal vinha consumida com essa ideia. Devia expor tudo, deixar a companhia em ruinas, arrastá-los todos para baixo… Mas e os que não têm culpa? Os que não sabiam de nada e ficam com a vida em risco por causa das decisões estupidas de uns quantos. Eu adorava fazer isso. Mas se calhar há outras maneiras. Se calhar pode-se conseguir tornar algo mau em algo bom.

Cassandra ficou admirada. Miranda perguntou:

-Bem, mas não viste falar comigo só para saber novidades, ou foi?

-Sabes que eu quero saber sempre as novidades, mas não foi só por isso. Tenho uma novidade e tinha de te contar pessoalmente.

-Então?

-Bem, tenho-te dito que tenho falado com o Tobias quase todos os dias…

-Sim. – Respondeu Miranda com um sorriso maroto.

-Bem, também sabes que eu tenho andado a tentar convencê-lo a dedicar-se a fazer aquelas peças de artesanato a tempo inteiro, mas que ele estava na dúvida…

-Sim, já me tinhas contado. E então?

-Bem, convenci-o.

-Ai sim? Conta!

-Bem, estávamos a falar e eu perguntei-lhe se ele consideraria deixar o trabalho e dedicar-se à escultura se nos casássemos.

Miranda ficou literalmente sem palavras a olhar para Cassandra com o ar mais admirado que alguém conseguiria imaginar. Finalmente lá conseguiu juntar algumas palavras.

-Bem,… Dizer-te que estou surpreendida é pouco. E ele?

-Ele disse logo que não.

-Logo assim de caras?

-Completamente. Disse que jamais iria depender de alguém, fosse quem fosse. Tinha vivido a sua vida até ali sem depender de ninguém… Aquelas coisas que tu calculas e sabes.

-E tu?

-Perguntei-lhe se isso implicava que ele não queria casar comigo. E ele volta-se e diz “Isso é diferente, eu não quero é estar dependente de ti, só porque tens a tua fortuna. Além disso, sabes que eu jamais sairia daqui”.

-E tu?

-Comprei lá uma casa. Entretanto mostrei as coisas que trouxe e mais umas fotos de peças dele, algumas que ele ainda não tinha acabado, ao Guido,…

-Qual Guido?

-Aquele da Galeria, que se meteu contigo uma vez que fomos ver uma exposição…

-Ah! Esse Guido. – Respondeu Miranda a rir-se.

-Sim. Ele adorou as peças e algumas já foram vendidas por bons preços. Acho que ele não tem de se preocupar com picuinhices. E pronto.

-Isso que dizer o quê?

-Bem, que te quero convidar para madrinha de uma casamento que vai ser lá, para onde eu me vou mudar logo que as obras numa casa estejam concluídas.

-Vais deixar Nova-Iorque assim sem mais nem menos?

-Sim. Sabes, desde que voltámos… mesmo quando mandas buscar pão Alentejano e um pastel de nata a uma padaria portuguesa… Não tem o mesmo sabor. A comida aqui parece insalubre… Até as pessoas parecem insalubres por comparação. Pela primeira vez lá, fui feliz, verdadeiramente feliz. E acho que mereço.

-Sabes que mais? Também acho. Então e isso está para quando?

-Depende do andamento das obras. Ainda é capaz de demorar alguns meses.

Miranda abraçou a amiga com genuína felicidade. Depois só lhe disse:

-Bem, o que é um anúncio de noivado sem uma festa? Hoje vamos sair para comemorar. Patrícia, - continuou ela, virando-se para a assistente – estás convidada.

 


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Renascimento (XXV de XL)

 Os dias já eram mais pequenos e as noites mais frias. Depois de mais um ensaio e a seguir a todo o resto do pessoal sair, Tobias voltou-se para o Rob:

-Sabes uma coisa? Vou mudar de vida.

-Como assim?

-Sabes aqueles coisitas que faço, candeeiros e candelabros em metal e quando estou aborrecido na oficina? A Cassandra levou umas fotos de umas coisas dessas e tenho andado a vender aquilo lá para os ricaços… Ela convenceu-me a deixar o trabalho e montar uma oficina minha e fazer isto.

-Olha que bom. De serralheiro para escultor… Qualquer dia aquelas tralhas que me deste ainda valem uma fortuna…

-Admira-te. Vai ver que ainda fico famoso. – Disse ele no gozo.

-Ainda falas com ela?

-Todos os dias. – Disse ele com um sorriso.

 -Isso pegou mesmo de estaca. Ainda bem para ti. Pena que ela esteja quase a meio mundo de distância.

-Por falar nisso, aquilo que eu queria mesmo falar contigo era outra coisa.

-Então?

-Eu e ela não estamos a achar muita piada a esta coisa de estarmos longe…

Rob olhou para ele meio preocupado.

-Não me digas que temos de procurar outro baterista…

-Não, nem penses nisso. Quer é dizer que tens de comprar um fato, que eu não te quero como meu padrinho vestido assim.

-Teu padrinho?

-Sim ela vai mudar para cá e vamos dar o nó. Já comprou uma casa lá ao pé da minha que está a ser toda renovada e assim que estiver pronta, ela vem.

-Não achas isso um bocado súbito?

Tobias encolheu os ombros.

-Nenhum de nós vai para novo. A maior parte das nossas vidas já está para trás. O que é que temos a perder? Não sei se sabes alguma coisa dela…

-Bem o que Miranda me contou ao longo dos nossos passeios.

-Também não me parece que ela tenha tido muito amor na vida. Pode ser que esta seja a hipótese.

Rob anuiu com um sorriso.

-Se estás feliz, eu estou feliz. E claro que compro um fato. Até aparo e penteio a barba, se quiseres. Mas já é só por ser para ti.

Riram-se os dois enquanto Rob puxava Tobias para um abraço

-Olha lá, e a Miranda?

-Sei lá da Miranda.

-Quando foi a última vez que falaste com ela?

-Quando ela veio aqui despedir-se.

Tobias abanou a cabeça desiludido com o amigo.

-Porquê?

-Porque ela tem de saber o que quer. Verdadeiramente. Ela anda há oito anos à procura de um fantasma. Um fantasma que eu já enterrei há muito. Eu já lidei com tudo o que tinha que lidar, mas ela não. Ela ainda carrega muita coisa com ela. E não posso ser eu a lidar com tudo isso. E além disso, ela sabe sempre onde me encontrar.

-Bem, lá isso é verdade.

-Pode ser que ela venha ao casamento…


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Renascimento (XXIV de XL)

 Apesar do voo ser quase sete horas, era pouco antes do meio-dia quando o avião pousou, devido às diferenças horárias.

Seguiram ambas do aeroporto para casa, mas Miranda, que já tinha avisado Patrícia, entrou, deixou as malas para serem desfeitas, tomou um duche rápido, não comeu nada, porque já tinha comido no avião, e saiu para uma reunião com a agência de investigação.

Foi levada ao escritório de Marcus assim que chegou, onde este a convidou a sentar indicando uma cadeira.

-O que posso fazer por si? – Perguntou Marcus, após os cumprimentos.

-Quero parar de imediato as investigações acerca do desaparecimento do meu marido.

-Compreendo. Algum motivo em particular?

-Apenas o facto de ter obtido informações de alguém que esteve com ele nos últimos dias e que confirmou que ele faleceu numa clinica ilegal no norte do Brasil por complicações de uma operação plástica.

-Lamento a sua perda. Creio que isso então conclui a nossa relação comercial. Enviarei os custos finais e arquivaremos a investigação, como é do seu desejo.

-Sim, mas creio que poderei ter outro trabalho para si. Bem mais delicado na sua natureza. Aliás, tão delicado que gostaria que os seus investigadores não tivessem nunca toda a informação. Antes de prosseguirmos, e para eu lhe poder dizer tudo o que é pertinente para o que lhe vou pedir, tenho que lhe perguntar: Há algum registo de algo que eu diga aqui? Até que ponto vai o seu dever de confidencialidade?

Marcus olhou para ela, não muito surpreendido com a pergunta, abriu uma gaveta, tirou um papel e disse-lhe:

-Isto é um acordo de confidencialidade. Especifica o que me pode acontecer legalmente se algo da nossa conversa for divulgado. Se isso a descansa, leia e assine e depois, mesmo que eu recuse o trabalho, jamais poderei discutir ou até alegar ter algum conhecimento que não seja domínio público acerca seja de que situação for.

Ela leu todo o contracto diligentemente. No fim, assinou.

Depois começou.

-No princípio da carreira de Rob já era eu que era sua agente e tratava das partes burocráticas. No dia da assinatura do contracto final, em que o Rob não esteve presente, fui levada a Sala do CEO da editora, que me pressionou a ter sexo com ele em troca da assinatura.

Marcus não pareceu minimamente surpreendido. Ela continuou:

-O pior foi que, sem meu conhecimento ou consentimento, documentaram esse encontro, tanto quanto sei em fotos, não sei se noutros tipos de média também. Essas fotos foram usadas como ameaça para a editora conseguir aquilo que queria do trabalho do meu marido através da minha influência.

O Rosto de Marcus só denotava um leve sorriso, o sorriso de quem nada disto o surpreende, depois de já ter visto, provavelmente, o pior a que os seres humanos conseguem descer.

-Mas, quando ele entrou em conflito com a editora, alguém foi ter com ele e apresentou as fotos, ameaçando libertá-las para a imprensa, por forma a levá-lo a fazer o que eles queriam. Esse acto foi fulcral no desaparecimento e morte do meu marido.

Marcus abanou a cabeça e ficou com um ar sério.

-E o que pretende?

-Sinceramente? Descobrir quem possui as fotos, quem as apresentou ao meu marido, e arruinar-lhe a vida. Descobrir todos os podres possíveis da vida do CEO da editora. Ter o destino deles nas minhas mãos. Não acredito que o meu caso tenha sido único e quero descobrir a quem mais ele fez isto, desde outras agentes até artistas a aspirar um lugar ao sol. Quero saber tudo!

Marcus encarou-a, sério.

-Digo-lhe já que vou pôr as minhas melhores equipas no caso.

-Também quero informações a cada progresso, por mais pequeno que seja.

-Será informada. Mas, Senhora MaCallum, posso só dizer-lhe uma coisa?

-Claro, diga.

-Se aquilo que procura é justiça, louvo-a. Mas se procura simplesmente vingança… Tenha cuidado. A vingança às vezes dói mais a quem a executa, no fim.

Ela assentiu, compreendendo.

Com um aperto de mão final, Miranda saiu do escritório e do edifício com um sentido de propósito renovado.


terça-feira, 8 de outubro de 2024

Renascimento (XXIII de XL)

 Dois dias depois uma quase recomposta Miranda batia à porta de Rob, às nove da manhã.

Um Rob ainda claramente ensonado veio à porta.

-Aproveitei e trouxe o teu pão fresco. – Disse ela, esticando um saco de pão com um sorriso.

-Não sei se posso pagar um serviço de entregas tão executivo… - disse ele, levantando o sobrolho, mas claramente surpreendido e divertido.

-E se a tarifa for o pequeno-almoço?

-Bem, se é só isso, acho que se pode arranjar qualquer coisa… - disse ele franqueando a porta com um sorriso.

Ela entrou e deu-lhe o saco, sentando-se numa cadeira na mesa da cozinha enquanto via, apenas com uns boxers largos, a cortar o pão e a começar a fazer torradas.

-Leite? Café? Chá?

-Chá?

-Sim. Verde, preto, Earl Grey…

-Pode ser um Earl Grey com uma pinga de leite?

-Meu Deus! Que britânica! – Respondeu Rob com uma pronuncia inglesa snob, fazendo uma expressão condizente a acompanhar.

Ela riu-se com a expressão dele. Não conseguia despregar os olhos dele. Seguia cada movimento.

-Estás a começar a incomodar-me.

-Com o quê?

-Com esse olhar.

-Desculpa. Estou aqui e não consigo parar de pensar como foram estes anos… Rob, eu gostava de conseguir exprimir em palavras o quanto eu te peço desculpa. Eu não consigo imaginar sequer o que te passou pela cabeça. O quanto te magoei…

-Ouve, tens de perceber uma coisa. Quando eu te disse que Robert MaCallum morreu, não quis dizer que foi apenas uma troca de nome e de cara. Eu não estou aqui disfarçado de quem não sou. Eu olho para mim e vejo-me como alguém que acordou de um coma profundo há seis anos atrás e que estranhamente se recorda de coisas que se passaram com outro alguém. E é nesse sentido que te posso dizer que não te menti quando aqui chegaste.

Ele pôs um pacote de leite na mesa, uma chávena com água a ferver e uma saqueta de chá Earl Grey, uma embalagem de manteiga e fatias de pão levemente torrado. Enquanto começava a barrar a manteiga no seu pão e ela o imitava, ele continuou:

-Mas posso dizer-te que o teu marido se sentiu mesmo muito deprimido com a situação daquele álbum. Mas sabes, a questão importante nem foi o que fizeram com as músicas, mas sim o facto de ele perceber que não havia o mínimo respeito pela sua vontade e tudo era feito à sua revelia. E todo este processo tinha-te envolvida. E eu olhava para ti e duvidava se apenas fazias o que tinha de ser feito por causa do contracto, que era aquilo que dizias todos os dias, ou se os teus motivos se alinhavam mais com o que era melhor para ti. E depois veio aquela ameaça, aquelas fotos e a confiança desapareceu. Como é que ele podia acreditar em ti? 

Miranda olhava já para ele com os olhos a encher-se de lagrimas, mas ele sorriu e disse com uma suavidade calmante:

-Pensa assim: Isto já aconteceu. As consequências daqueles teus actos já não importam. Serena o teu espirito. Ouve, entende e fecha esse capítulo. Não há mágoas aqui. Certo?

Ela olhou para ele e sorriu, enquanto uma lágrima teimou ainda em soltar-se, mas sorriu, respirou fundo, abanou-se com as mãos, agarrou na sua torrada e deu mais uma dentada.

-Afastou-se porque não suportava olhar para ti todos os dias com dúvida no coração. Por mais que o coração lhe dissesse que tinha de haver uma explicação, mesmo que ela existisse, subsistiria sempre uma dúvida. Além disso, afastar-se nulificaria toda a situação. A única pessoa a quem poderiam chantagear eras tu, mas ele já tinham contratualmente o controlo do catálogo. Tudo pesado, ele viu que não havia nada que deixar para trás e simplesmente partiu. Andou pela Ásia, pela India, médio oriente, África. Conheceu gentes, estilos de vida, comeu coisas exóticas, mas havia sempre um problema. Por mais longe que ele estivesse, havia sempre alguém que acabava por o reconhecer. E foi assim que ele chegou e essa clínica ilegal, e foi aí que ele ficou.

-Porque é que tu… ele não falou comigo?

-Porque ele não conseguiria acreditar em ti. Não é difícil perceberes isso, pois não?

-Não, não é. Quer dizer, o meu ego grita-me que se ele me amasse…

-O problema é que a desconfiança corrói o amor. Se tu o amasses nunca lhe teriam mentido.

Ela ficou em silêncio contemplando aquela espada de dois gumes.

-Quanto à segunda parte da tua pergunta, curiosamente de lá vim para Portugal, influenciado por um Português que vivia no Brasil há décadas, mas que não se calava com o dia em que ia poder voltar. Entrei pelo Norte e fui vagueando para sul. Cheguei aqui bastante entrado na noite. Entrei ali no Zé, e acredita que não foi uma boa experiência.

-Como assim?

-Digamos que tive uma recepção algo acalorada.

-Só te posso dizer o quanto acho isso estranho. Parece que sou bem recebida onde quer que vá…

-Tu és uma miúda gira e sofisticada… Quer dizer, foste, agora és uma mulher madura, gira e sofisticada.

-Preferia a primeira versão…

-Olha, já eu acho a segunda mais interessante.

-Então fica essa.

-Mas eu, quando aqui cheguei, parecia um vagabundo, roupas a precisar de descanso, sujo, barba desgrenhada e cabelo comprido às rastas… Ainda perguntei onde é que podia passar a noite por aqui, mas puseram-me a andar sem cerimónia. Acabei por montar uma tenda mesmo à saída da aldeia e passei lá a noite. De manhã fui acordado pela polícia. Queriam decididamente enxotar-me daqui para fora. E eu, teimoso, achei que era aqui que ia ficar.

-Só para contrariar?

-Mesmo! – Disse ele rindo. – E não foi fácil, mas depois de ter comprado a casa foi-se tornando simples.

-Então e, durante este tempo todo…? – Insinuou ela.

-Não, não fui santo. Mas também não fui nenhum debochado. Tive algumas curtes de uma noite, mas… Nunca houve nada nem ninguém que me levasse a querer ter uma relação. E normalmente só aconteceram quando eu bebi um pouco mais, para te ser franco. Aprendi a prezar, sobretudo, a minha paz de espirito.

-Pois já percebi…

-E tu, neste tempo todo?

-Nada! Não por falta de haver quem tentasse, mas… Nunca consegui. Acho que enquanto não tivesse uma certeza, nunca conseguiria.

-Bem, agora já tens certezas.

-Pois mas isso deixa-me com um problema.

-Que é?

-Só há um gajo que eu quero.

Ele sorriu, acabou o chá e as torradas, foi direito à máquina caseira de expresso e tirou dois cafés com calma dando um a ela.

-Miranda. Eu não quero que te iludas. Eu não sou a mesma pessoa. Tu não és a mesma pessoa…

-Eu sei. Eu não estou iludida. Não estava à espera de chegar aqui e ser arrebatada por ti, agarrares-me ao colo e levares-me para o quarto e… Se bem que não era uma má perspectiva, para te ser franca. – Disse ela piscando-lhe o olho.

Ele sorriu, ela continuou.

-Mas seja o que for que o futuro traga, quero que saibas o quanto estou arrependida por tudo e agradecida por finalmente ter as respostas que procurei durante tanto tempo. Mas,… E agora?

-Agora eu tive oito anos para digerir e lidar com isto tudo. Tu tiveste dois dias. Precisas de mais tempo. Precisas de saber o que queres. Eu já estou adiantado e já sei o que quero. Até lá, podemos ser conhecidos, amigos… Mas nada mais. Até tu saberes o que queres e qual é o teu lugar, é o que é. E quando souberes… Bem, pode ser que o que queremos seja irreconciliável!

-Rob, eu não estava a brincar quando disse que faria absolutamente tudo por ti.

-Mas a única coisa que eu verdadeiramente quero que faças por mim e não fazeres nada por mim. 

Continuaram a falar até perto da hora de almoço quando Tobias apareceu junto com Cassandra, que estava obviamente preocupada, mas assim que viu a amiga, descansou. Decidiram dar um descanso às questões e aproveitar o tempo de férias que o Tobias tinha tirado para passearem pelas redondezas como quatro bons amigos, se bem que era cada vez mais óbvia a cumplicidade entre ele e Cassandra, coisa que os outros dois aproveitavam para os atazanar na brincadeira.

Nos últimos dias de férias do Tobias, a filha, o genro e as netas viram fazer-lhe companhia, o que partiu o quarteto, com Cassandra a passar os dias com eles, e Rob e Miranda por si sós. Cassandra estava encantada com as netas de Tobias e foi recebida de braços abertos pela filha, o que deixou Rob feliz pelo amigo.

Havia uma tensão estranha entre Rob e Miranda, bem como o peso de um tempo que teria de acabar.

E após duas semanas, o tempo acabou, enquanto passeavam por um pinhal.

-Sabes que eu tenho de voltar… - disse Miranda um dia, do nada, com alguma mágoa na voz.

-Claro. Deves ter catrefadas de coisas à tua espera na “Grande Maçã”.

-Tenho. – Disse ela. – Suponho que não estejas interessado em visitar-me lá, e passar uns tempos…

-Supões bem. Não quero nunca voltar a pôr os pés naquela cidade.

Ela suspirou com tristeza.

-Pois. Então suponho que as coisas são como são…

Rob encolheu os ombros.

-São como são. – Afirmou ele com um sorriso.

Ela fez uma pausa antes de anunciar.

-Partimos amanhã de madrugada. Tenho voo de Lisboa às dez.

Ele acenou, o seu sorriso não vacilou.

-Que os ventos vos sejam favoráveis.

Ela olhava para ele, tentando perceber se o desapego que ele demonstrava era o que verdadeiramente sentia. Sentiria ele a sua falta? Não se conteve e a pergunta rolou na sua língua.

-Vais sentir a minha falta?

-Claro. – Disse ele sem hesitação.

Chegavam entretanto à porta de Rob.

-Então porque não aceitas o convite?

-Consegues imaginar o que isso seria trágico para os músicos da região? – Brincou ele.

-Aqueles que fazem fila à tua porta todos os dias?

-Esses mesmos. O que seria dele se eu saísse daqui? – E riram os dois. Depois Rob continuou, já num tom mais sério – Sabes já conheço o mundo. E é aqui que eu quero estar.

Ela parou, parou-o. Olhou-o nos olhos, profundamente.

-Robert Mitchell,… - disse ela desfazendo o espaço entre eles - …já alguém te disse que és um homem extremamente frustrante? – Perguntou, ficando com o seu rosto a centímetros da dele, sem desviar os olhos.

Ele, sem desviar o olhar e com um sorriso sacana, respondeu:

-Para te ser franco, já se me constou. – Disse ele sem se aproximar dela.

-Cala-te. – Disse ela, mergulhando para ele e unindo-se a ele num beijo mais que desejado. Ele abraçou-a, tomou-a em si e deixou-a derreter nos seus braços.

Quando quebraram o beijo e respiraram, estavam ambos vermelhos de afogueados, sem conseguirem quebrar o olhar. Foi naquele momento, naquele mais ínfimo instante que uma certeza se cristalizou na mente de Miranda, que quebrou finalmente o olhar, entrou no jipe sem olhar para trás e arrancou.

Às dez da manhã apanhava o a


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Renascimento (XXII de XL)




O Zé viu o Tobias a entrar com cara de poucos amigos e nem disse nada, apenas acenou na direcção de Rob, que parecia um farrapo no canto da sala.

-Olha lá,… - disse o Tobias com um ar absolutamente zangado – Mas tu estás parvo? O que é que fizeste à miúda?

-Bom dia para ti também.

-Deixa-te de merdas que não estou com paciência.

-Pá, dei-lhe exactamente aquilo que ela queria. Nem mais, nem menos.

-E isso foi feito de uma maneira suave ou à chapada? 

Rob ficou caldo.

-Pois, calculei! – disse o Tobias – Achas que ela mereceu a chapada?

-Acho!

-Então porque é que estás assim, nesse estado. Parece que não dormes há três dias.

-Bem isso deve ser porque não durmo há três dias.

O Tobias abanou a cabeça.

-Deves ser mesmo muito estupido. E eu até te achava um gajo inteligente… Se bem que, pensando bem, as pessoas mais inteligentes são capazes das atitudes mais estupidas, portanto se calhar até tens alguns neurónios, se não os mataste todos.

-Como é que ela está?

-Agora é que estás preocupado com isso?

-Porra! E porque é que me estas a atacar? Eu estava aqui sossegado, não fui eu que atravessei meio mundo à procura de respostas que julgava que queria.

Tobias resignou-se e respirou fundo.

-Ela não sai do quarto desde aquela noite, tem ataques de choro convulsivo, não come e quando come manda tudo fora. A Cassandra está preocupada, sem saber o que fazer e se isto continuar, vai ter de chamar um médico para a assistir.

-Assim tão mal?

-Sim. E caso não tenhas percebido, foste tu que fizeste isto. Diz-me uma coisa: Querias magoa-la intencionalmente?

Rob ficou calado mais uma vez.

-Percebo! E também percebo que só há um motivo para isso.

Rob olhou de repente para Tobias, apercebendo-se do que ele implicara ao que este respondeu apenas com um leve aceno da cabeça.

-Agora, - continuou o Tobias – vê lá se te dignas a fazer alguma coisa para corrigir isto.

Rob olhou para Tobias. Ter uma consciência é tramado, mas ter uma do tamanho do Tobias é duplamente tramado. Levantou-se a custo e dirigiu-se ao balcão.

-Zé, dá-me um café, se faz favor.

O Zé deu-lhe o café que ele bebeu sem açúcar quase só de um trago, fez uma careta com o amargo na boca, voltou-se para o Tobias e perguntou:

-Vens?

O Tobias olhou para o Zé, que encolheu os ombros e depois levantou-se e seguiu Rob. Este foi direito à sua loja onde foi buscar uma guitarra acústica, voltou para junto do Tobias e apontou para o carro dele.

-Dás-me uma boleia?

Tobias nem perguntou para onde. Entraram no carro.

-Não me digas que o teu plano é fazer-lhe uma serenata…

- Há coisas piores, não achas?

Arrancaram directos à casa onde elas estavam. Estacionaram à porta e saíram do carro. Antes de baterem à porta já esta se abria com uma Cassandra com um ar extremamente preocupado a vir ao encontro deles. Deu um abraço apertado a Tobias enquanto dizia.

-Não sei o que fazer com ela. Não sai do quarto, só a ouço chorar… Obrigada por virem.

Depois largou Tobias e convidou-os:

-Venham. Eu vou-lhe dizer que vocês cá estão.

Deixou-os na sala e subiu as escadas para o andar de cima da casa. Eles podiam ouvi-la a bater suavemente à porta.

-Miranda,… - dizia num tom quase sussurrado, com se não quisesse assusta-la – o Rob está aqui. Não queres sair?

De dentro do quarto veio um “Não” dito em desespero seguido de mais soluços e choro.

O ar preocupado com os olhos rasos de lagrimas de Cassandra dizia tudo. Ela encolheu os ombros. Rob levantou-se e saiu da casa indo directo ao carro. Tirou a guitarra do banco de trás, afinou-a e começou a tocar e cantar uma música que já não era ouvida por ninguém há quase 20 anos. Uma música que apenas meia dúzia de pessoas tinha ouvido. Uma música que tinha sido feita de propósito para alguém.

Tobias e Cassandra saíram da casa atras de Rob e, se ambos estavam surpreendidos com a atitude dele, Tobias estava ainda mais por ver o amigo a cantar. Ele, que sempre tinha dito “É melhor não” quando alguém falava na hipótese de cantar tinha afinal uma voz de um anjo.

Mais surpreendidos ainda ficaram quando viram Miranda a aparecer à porta, desgrenhada, tremula, pálida, fraca, com os olhos muito abertos em surpresa a olhar para Rob. Passou por eles e continuou na direcção dele de mão esticada até chegar ao pé dele e lhe colocar a mão no rosto. 

Ele parou de tocar, pôs a guitarra de lado e olhou finalmente bem nos olhos dela.

-Não ficaste para ouvir o resto do que eu te estava a dizer. – Disse ele finalmente com um sorriso. Ela não se conteve e lançou-se para os braços dele. Ele sentiu-a a tremer, agarrou nela ao colo e levou-a para dentro de casa, para a sala, onde a pousou suavemente no sofá.

-Queres ouvir o resto?

Ela acenou afirmativamente.

-O Robert Macallum morreu naquela mesa de operações. Deixou de existir. Quem se levantou daquela mesa fui eu.

Miranda respirou profundamente, como se estivesse estado debaixo de água e tivesse vindo à tona, de repente.

Cassandra e Tobias eram testemunhas de tudo isto, simplesmente estupefactos.

Rob continuou:

-Agora vais descansar. Vais dormir e eu também, que provavelmente não durmo há tanto tempo como tu. Vais-te pôr bem. Agora já sabes. Temos tempo para falar. – E depois virou-se para Cassandra – Tratas dela, por favor?

-Claro que sim.

-Vais portar-te bem? – perguntou ele a Miranda, fazendo-lhe uma festa no rosto – Eu prometo que não fujo E sabes onde me encontrar, quando estiveres pronta.

Ela acenou afirmativamente, ele levantou-se e perguntou ao Tobias:

-Dás-me boleia de volta?

-Claro que sim. - Respondeu o Tobias voltando-se em seguida para Cassandra – Vou só levá-lo e já volto para te ajudar no que for preciso.

Cassandra sorriu e laçou-lhe um beijo, que deixou o Tobias corado. Depois voltou-se para Rob:

-Obrigado Rob. Por tudo, acho eu.

Rob apenas abanou a cabeça com que a dizer “não há nada a agradecer” e dirigiu-se à porta. Quando estava quase a sair ouviu Miranda a chamá-lo com uma voz trémula:

-Rob,… - ele virou para ela - …eu amo-te.

Ele sorriu em resposta, ela também sorriu e deixou-se vencer pelo cansaço e pelo sono.


sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Renascimento (XXI de XL)




Eram quatro de manhã, mais coisa menos coisa quendo Rob foi despertado por alguém a bater insistentemente à sua porta, algo que não é de todo normal por estes sítios a não ser que haja uma catástrofe eminente. Levantou-se sobressaltado, vestiu uns calções e foi vestindo uma t-shirt enquanto se dirigia à porta, que abriu para encontrar Miranda com um ar grave, meio pálida à sua frente.

Nem lhe perguntou nada, apenas lhe franqueou a porta e deixou-a entrar. Ela entrou sem palavras, sem sequer o olhar nos olhos, dirigiu-se à sala onde se sentou no sofá enquanto Rob foi à cozinha, preparou um copo de água com açúcar que pousou à frente dela, sentando-se ao seu lado.

O silêncio caiu pesado sobre os dois, numa semi-escuridão iluminada apenas pela luz que chegava dos candeeiros da rua através das persianas. Miranda finalmente falou.

-Sabes, há muitos anos atrás, quando o meu marido ainda não tinha chegado ao sucesso, eu trabalhava como caixa numa mercearia pequena e ele era repositor. É curioso. Vivíamos numa casa pequena, chegávamos ao fim do mês a contar tostões e por vezes o que nos safava era ele conseguir algum concerto num bar pequeno. Não tínhamos luxos. Mas nunca estivemos tão próximos um do outro. Eramos capazes de tudo um pelo outro. Eu não tinha a noção, na altura, mas olhando hoje para trás, esses foram os dias em fomos verdadeiramente felizes.

Rob limitou-se a sorrir, olhando-a nos olhos profundamente, talvez pela primeira vez, e o que Miranda viu fez apertar o seu coração ainda mais. Mas pediu a algo maior que ela, fosse o que fosse, a força para continuar.

-Depois veio uma reunião com mais um responsável de uma editora. Era só mais uma e quem costumava ir a estas reuniões era eu, enquanto agente dele. Esta editora não era uma qualquer e um contrato seria, sem dúvida, altamente lucrativo. Já tinha havido duas reuniões prévias em que se tinha discutido o que ambas as partes queriam. Já tinha discutido os termos, que francamente não agradaram ao meu marido. Mas eu via o potencial para termos uma vida mais folgada, termos estabilidade, pensarmos numa família sem nos sentirmos restringidos por questões monetárias. Tomei parte em activamente convencê-lo a sacrificar parte da sua integridade artística por uma hipótese fabulosa de lucro. Quantas vezes é que alguém tem uma hipótese destas na vida?

Miranda pegou no copo, do qual bebeu um gole e continuou.

-Esta reunião era apenas uma formalização do contrato. Pela primeira vez fiquei frente a frente com o CEO da editora. Ele pediu para falarmos um pouco a sós, antes de chamar os advogados para a assinatura formal. E aí, sem qualquer pudor, ele disse-me que aquele contrato, naquele momento dependia exclusivamente de mim e do que eu estivesse disposta a fazer por ele.

Sentiu o ar sério de Rob e o seu olhar penetrante derramar gelo por dentro de si.

-Naquele momento eu tinha uma decisão a fazer. Pesei tudo o que era a nossa vida contra o que podia ser. E infelizmente escolhi mal. E carrego até hoje a culpa dessa escolha. Nunca contei isto a ninguém, nem sequer a Cassandra.

-E é essa culpa que te faz estar aqui agora, à procura do teu marido. Toda esta procura é só uma tentativa de aliviares a tua consciência?

-Não… Também, para te ser sincera, mas não é só. Podes não acreditar, mas o que eu fiz, fiz por ele…

-Creio que podes imaginar como isso pode ser visto por outro lado.

-Como?

-Como teres-te vendido a ti, junto com a integridade dele em troca de conforto.

Ela não se conteve e os soluços de choro quase convulsivo irromperam de repente. Ele ficou quieto, deixando-a estar. Ao fim de um bocado ela começou a acalmar-se, bebeu mais um gole de água e continuou.

- Sei que pode ser visto assim. Sei que os actos são o que são. Mas não foi esse o motivo.

-Foi a única vez?

-Foi a única vez, sim, mas…

-Mas…?

-Eu não sabia e na reunião a seguir, em que seria entregue o cheque do adiantamento, fui confrontada com fotos de que aconteceu. E foi-me dito que o melhor para todos era que o meu marido nunca viesse a saber o que se passou, mas que havia um grande investimento da parte deles e aquelas fotos seriam uma garantia de que eu tentaria controlar os impulsos mais rebeldes dele. Eles queriam reaver o investimento e com lucro.

-E tu trabalhaste activamente com eles para que o teu marido aceitasse trabalhar com aqueles produtores e aceitasse alterações às musicas?

-Podes não acreditar, mas em momento algum eu deixei de tomar as decisões que achava melhores para ele.

-Mais uma vez, toda esta situação pode ser vista por uma lente não tão altruísta da tua parte.

-Eu sei. Mas apenas posso dizer como as coisas foram para mim.  Não estou aqui a dizer-te isto para te fazer acreditar em nada. Estou aqui porque disseste hoje que passaste por algo semelhante que te magoou profundamente e… Não sei… espero que ele nunca tenha descoberto e que não tenha sido esse o motivo do desaparecimento dele.

Rob levantou-se foi à cozinha de onde voltou com dois copo com alguns cubos de gelo, tirou uma garrafa de whisky de um armário, serviu os dois copos e sentou-se de novo ao lado dela, dando-lhe um dos copos para surpresa dela e fazendo-lhe sinal para ela beber.

-Vais precisar de algo forte. – Disse-lhe Rob.

Ela acenou com um olhar de preocupação estampado no rosto.

Ele bebeu um golo, respirou fundo e começou:

-Os problemas com a editora eram uma chatice, mas tinham-se resolvido praticamente por eles. Ele era obrigado contratualmente a entregar um quinto álbum, mas nada havia que o obrigasse a promove-lo, não é verdade?

-Sim. – Respondeu ela receosa de para onde a conversa estava a ir.

-O teu marido estava zangado e ressentia-se de ti pelo papel que tiveste na adulteração do álbum, mas ele compreendia racionalmente que havia obrigações e que os contractos tinham de ser cumpridos. Agora o problema estava no facto de que no mundo de hoje boa parte do lucro da editora vir da organização da digressão. Portanto eles iam perder milhões de lucros. Por esta altura já tinham percebido que desta vez tu não ias conseguir convencê-lo. Um dia, um advogado qualquer foi ter com ele, mostrou-lhe as fotos e explicou em detalhe o quanto aquelas fotos iriam dar cabo da sua reputação. E de como o nome da sua mulher ia ser arrastado pela lama. O teu marido disse que também não seria muito bom para o CEO e a resposta foi que ele já era conhecido como um playboy, é viúvo e sem obrigações, mas tu serias apenas vista como fácil e oportunista.

Ela olhava para ele em puro choque! Parecia uma estátua. Nem se atrevia a respirar, quase. Ele continuou.

-Ele olhou bem para a situação, planeou aquela que lhe parecia ser a única fuga possível, e desapareceu. E, como podes calcular, a ultima coisa que queria era levar-te com ele. E ainda assim, ele desapareceu não só para se afastar do que não queria, mas também para manter intacta a tua imagem. Se ele desaparecesse, aquelas fotos nunca veriam a luz do dia. Dois anos depois ele morreu numa mesa de operações de uma clinica ilegal já no meio da floresta amazónica no norte do Brasil.

Rob bebeu mais um golo e depois disse, simplesmente e sem emoção na voz:

-Tu podes não ter puxado um gatilho, mas mataste-o.

Ao som destas palavras Miranda deixou de ouvir, sentiu-se presa, oprimida, com um enorme peso no peito, sentiu falta de ar, levantou-se e correu para a porta antes que Rob conseguisse reagir, saiu e entrou no carro, enquanto Rob chegava já à porta chamando:

-Miranda, espera…

Ela arrancou, com a visão turva, em pânico, só a saber que precisava de refúgio.

Rob voltou atrás, agarrou nas chaves do carro e correu para ele, arrancando atrás dela, com medo do que pudesse acontecer. Foi com alívio que viu o carro dela entrar pelo portão que dava acesso à casa onde ela estava com Cassandra. Parou o carro e ponderou se devia persegui-la. Ela tinha muito em que pensar. Ele também. Voltou para casa onde passou o resto da noite a pensar em tudo e em nada, com o copo de whisky na mão.


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Renascimento (XX de XL)



Miranda entrou na loja e lá estava Rob, sentado ao lado do amplificador a que tinha a guitarra ligada. Rob apontou para um outro banco e Miranda sentou-se.

-Estás bem? – Perguntou Rob notando o seu ar grave e os olhos inchados.

-Estou, não te preocupes.

-Não pareces bem…

Ela limitou-se a encolher os ombros e o seu olhar vagueou para a rua, para lá da vitrina, se bem que Rob percebeu que o olhar contemplava algo mais do que a realidade que os rodeava. Algo pesava nos pensamentos dela.

Rob começou simplesmente a tocar coisas que lhe era familiares, não só por serem feitas por si, mas porque as tinha tocado incontáveis vezes para si mesmo. Os sons, de alguma maneira, pareciam sublimar ainda mais os pensamentos e sentimentos de Miranda, mas ao mesmo tempo, acalmavam-na. Ela ouvia estas melodias pela primeira vez, não com a sua mente racional, mas com os ouvidos da alma.

Quando ele parou, depois de tocar bastante tempo e várias peças, preenchendo o silêncio entre os dois, pousou a guitarra e ficou em silêncio também. Foi ela quem falou primeiro:

-São lindas, as musicas. Invulgares. A quem é que já as mostraste?

-Bem, a ti!

-Mais ninguém? 

-É provável que o Zé conheça algumas de me ouvir aqui a tocar, quando puxo um bocadinho mais pelo amplificador. Às vezes entusiasmo-me e ele está aqui ao lado… Mas fora isso, não.

-Porquê?

-Qual era o objectivo? O que é que eu poderia ganhar que não tenha já?

-E se não for acerca do que tu tens para ganhar, mas sim do que podes dar? Afinal, podes sempre rejeitar o que não queres. Não queres a fama nem o reconhecimento? Publica-as anonimamente num site qualquer. Não precisas do dinheiro? Disponibiliza-as gratuitamente ou arranja maneira de todos os proveitos serem doados a instituições que ajudem outros. Mas… E se a tua musica tocar realmente alguém? E se a tua música, simplesmente por existir, der algum sentido aos sentimentos de alguém? E se a tua música salvar a vida de alguém?

-Não creio que seja assim tão boa…

-E quem és tu para julgar como os outros a vão ver?

Rob ficou a pensar um bocadinho, sem ter, pela primeira vez uma resposta pronta e óbvia. Mas os seus pensamentos foram interrompidos pela chegada do carro do Tobias, de onde saiu ele e Cassandra. “Salvo pelo gongo” pensou Rob. Que de imediato desligou o amplificador e arrumou a guitarra.

-Vamos jantar?

-Sim, vamos. - Respondeu Miranda com pena que esta conversa tivesse sido tão abruptamente interrompida. Mas lhe pareceu que Rob não estava interessado em continuar a conversa, pelo menos por ora.

Entraram no estabelecimento do Zé, para se juntar aos outros e o ar estava já espesso com o cheiro da carne e especiarias a cozinhar.

Cassandra olhou para a amiga, quando eles se sentaram e ficou apreensiva, trocando um olhar furtivo com Tobias que parecia também ter notado que havia algo estranho em ambos.

-Então? Divertiram-se? – Perguntou Rob, tentando aligeirar o ambiente enquanto reparava que Cassandra segurava a mão da amiga, notando-se a sua preocupação.

Cassandra e Tobias trocaram outro olhar, desta vez com um sorriso.

-Bastante. – Disse o Tobias – Fomos dar uma volta grande. Fomos à barragem do Alqueva, estivemos numa praia fluvial, fomos ao museu do medronho…

-Por isso é que pareces tão bem disposto! 

-Nada disso, só bebi um shot… Já ela, parece que gostou…

-Assim tanto? – Perguntou Rob olhando para Cassandra.

-Ele está a brincar comigo. Também só bebi três shots. – Respondeu cassandra, fingindo-se ofendida. 

-Pois, mas não resististe a trazer uma garrafinha.

-Para nós hoje, depois do café.

Tobias voltou-se para Rob e piscando-lhe o olho disse:

-Cá para mim ela quer é apanhar-me bêbado para se aproveitar de mim…

Cassandra respondeu de imediato.

-Se é preciso tanto, se calhar não vale o esforço…

O Tobias corou e todos se riram. A tensão parecia ter-se dissipado e de repente a comida apareceu na mesa. Elas deliciaram-se. Beberam os cafés enquanto bebiam alguns shots de aguardente de medronho, que também ofereceram ao Zé e Tobias e Cassandra partilhavam os detalhes do seu longo passeio. 

Estranharam, quando perguntaram como tinha sido o dia de Rob e Miranda e a resposta que tiveram foi simplesmente um “passamos o dia por aqui a caminhar”, mas não forçaram.

Separaram-se relativamente cedo, combinando encontrarem-se no dia seguinte ao pequeno-almoço.


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Renascimento (XIX de XL)



Levantou-se, deu a volta à mesa, onde estavam sentados frente a frente e abraçou-o, com um sentimento de compreensão e empatia total.

Ele aceitou o abraço, abraçando-a de volta e sussurrando-lhe ao ouvido:

-Já não dói. 

Ela largou-o e olhou para ele com um ar sério e os olhos ainda pejados de lagrimas.

Ele sorriu.

-Sabes aquele criador que visitamos há pouco no seu espaço e que, a existir, está a nossa volta e estamos imersos nele? Chega a uma altura na vida em que percebemos que o melhor a fazer é entregarmo-nos. Aquilo que te disse agora é história, mas é-o da mesma maneira que aquela vez em que quis trepar a uma árvore mas cai mal e parti o braço quando caí. Passados estes anos estou grato por tudo ter acontecido.

-Grato?

-Sim. Sabes, muitas coisas da vida dependem da perspectiva. Todos aqueles acontecimentos trouxeram-me aqui. Não foi fácil passar por eles, não foi fácil lidar com o caos interior que se seguiu e demorei anos a perceber, mas o que tudo aquilo me trouxe foram amigos genuínos, capazes de dar a camisa por mim, como sabem que eu o faria por eles, o respeito das pessoas que me rodeiam e sobretudo uma imensa paz de espirito, que eu se calhar não conseguiria apreciar se não tivesse passado por tudo aquilo. Se nada daquilo se tivesse passado, eu não estava aqui. Aliás, nenhum de nós dois estaria.

Ela acenou, entendendo. A cascata de acontecimentos trágicos na vida de ambos que levara a que este momento acontecesse era quase karmica. Deixou-se ficar bastante tempo só olhando para o riacho, como que hipnotizada, até que ele a despertou dos seus pensamentos.

-Há um pequeno restaurante um pouco mais acima, do outro lado do riacho. Que tal se fossemos almoçar?

Ela sorriu, secou os olhos com as mãos e perguntou:

-Estas a perguntar se eu tenho fome e quero ir comer?

-Estou a convidar-te para almoçar. – Disse ele sorrindo – Depois de te fazer chorar tanto é o mínimo que posso fazer para me redimir um bocadinho. Além disso, precisas de hidratar… - disse ele com um esgar meio gozão na cara, numa tentativa óbvia de aliviar a tensão.

-Parvo! – Disse ela sorrindo, enquanto se levantava e o seguia pelo caminho fora.

Ele foi falando com ela de tudo e de nada, sem nunca voltar ao assunto do marido dela. Ela foi falando com ele, de forma leve e natural, como se fossem amigos que se conheciam há anos, como se a convivência entre os dois acontecesse sem qualquer esforço.

O prato do dia era arroz de marisco, que ela provou pela primeira vez e simplesmente repetiu. Ele chegou a apanhá-la a lamber os dedos.

-A comida daqui é toda assim?

-Se estas a perguntar em termos de sabor, sim. Parece que tudo aqui tem um sabor diferente. Olha para o vinho… - um branco fresquíssimo que bebiam - …quanto achas que pagam em Nova-Iorque por um vinho destes? E no entanto aqui uma garrafa são dois ou três euros.

Acabaram de almoçar e continuaram a caminhar. Iam devagar no meio de todo aquele verde, sempre falando sem esforço até que ela perguntou:

-Tu tocas, tens uma loja de música… nunca compuseste?

-Sim, já… mas não tenho qualquer interesse no que faço. Não tenho aspirações para as musicas que faço e são apenas um passatempo. 

-E cantar?

-Não, de todo.

-Se eu te pedisse que me mostrasses algo composto por ti…

-Se eu estivesse bem-disposto, talvez te mostrasse.

E entretanto, sem ela dar por isso, estavam à entrada da povoação.

-E estás bem-disposto?

-Relativamente… - respondeu ele com um sorriso.

Ela entretanto olhou para a capela e todo este dia, toda aquela conversa veio de repente à sua memória, o seu ar tornou-se sério e perguntou-lhe:

-Importas-te que vá ali por um bocadinho?

Ele olhou para ela, percebendo, e respondeu com um ar sério:

-Vai. Eu espero-te na loja. Queres lanchar?

-Não, ainda estou cheia, apesar da caminhada…

-Quem te mandou comer tanto? Vais ficar gorda… - Disse ele com um sorriso de gozo, enquanto virava as costas e seguia.

Ela sorriu, mas depois encarou novamente a capela, tornando-se o seu ar sério e entrou. Lá dentro meia dúzia de anciãs entoava uma novena. Ela ajoelhou-se, contemplou o altar e depois recolheu-se nos seus pensamentos e simplesmente chorou. Ainda estava perdida nos seus pensamentos quando se apercebeu que o hipnótico som da novena tinha terminado e sobressaltou-se quando sentiu um toque na sua mão. Abriu os olhos e à sua frente uma das anciãs tomava as suas mãos nas dela e olhava para ela com um sorriso. Depois largou-a e veio outra que teve o mesmo gesto e outra. Todas a cumprimentaram da mesma maneira enquanto saiam e algo no seu coração se tornou inegável.


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Renascimento (XVIII de XL)



Ao fim de algum tempo, em que Rob parecia esperar que algo mais fosse dito enquanto meditava sobre o que tinha sido, ele finalmente falou.

-Deixa ver se percebi bem, aquilo que tu chamaste de “birra” foi uma reacção à destruição do trabalho dele, é isso?

Ela limitou-se a ficar em silêncio, numa clara admissão da verdade.

-Realmente, a situação tem bastantes paralelos com a minha própria situação. – Continuou ele – Diz-me, ele gostava da fama? Tirava proveito dela?

-Não, nem por isso. Nem sequer gostava de falar muito nos trabalhos, mesmo em entrevistas, fazia sempre o mínimo possível a que era contratualmente obrigado. Mesmo com os fãs que o felicitavam, ele era sempre retraído. Acho que se podem contar pelos dedos das mãos as vezes em que ele deu um autógrafo, por exemplo.

-Achas que isso demonstra o quê?

-Que ele era extremamente tímido?

-Estás-me a dizer que ele quase todas as noites se expunha em cima de um palco a tocar e a cantar para milhares de pessoas,… Mas era tímido? Tu conhecias o teu marido?

-O que é que queres dizer com isso?

-Quero dizer que se calhar o motivo não era timidez.

-Então o que achas que era?

-Falta de orgulho no que estava a fazer.

-Como assim?

-Ele estava a fazer um trabalho que tinha que fazer. Ele era um artista, mas aquilo que ele estava a fazer, para ele, não era arte. Arte é uma expressão própria, é uma concretização real de um sentimento. Aquilo que ele apresentava não era isso. Para ele não era importante, era apenas um passo para atingir um objectivo. Agora diz-me, o que achas que o levou a fazer tudo aquilo que ele não queria fazer?

-A hipótese de atingir esse objectivo?

-Sim, também, mas… Como é que era a tua relação com ele? Como é que ele te tratava?

-Da mesma maneira que eu o tratava. Nós adorávamo-nos. Eu faria tudo por ele e sempre acreditei que ele faria tudo por mim.

-E fez! Ele apagou-se por ti. Ele relegou o que queria não pela fama ou outra coisa qualquer fugaz, mas sim para te dar aquilo que tu querias. 

Ela ficou surpresa a olhar para ele.

-Mas eu só o queria a ele…

-A sério? E como é que tu lhe demonstraste isso? Deixando mutilar aquilo que ele era e transformando-o naquilo que os outros queriam que ele fosse?

De repente a gravidade das suas acções abateu-se sobre ela. Esta situação toda nunca fora por causa de meia dúzia de músicas.

-Ele provavelmente, ao longo de muito tempo foi perdendo o respeito por si próprio e quando chegou ao limite tentou reclama-lo fazendo aquilo que a Alma dele queria fazer apenas para ver tudo desfeito. E tu foste uma das pessoas que esteve envolvida nesse processo. Aliás, tu deste a primeira facada. Resto foram só golpes de misericórdia.

Por esta altura ela já chorava, mas estas últimas palavras de Rob puseram-na num pranto aflitivo. A súbita realização, que ela já há muito intuía, mas que agora estava ali exposta aos elementos, caiu-lhe em cima como uma parede.

Rob ficou em silêncio, quieto, a olhar para ela com compreensão nos olhos.

-Desculpa eu ser tão franco, mas querias saber o que achava e aí tens. Esse é o meu ponto de vista. Mas ainda assim digo-te que, não querendo falar por ele, apesar dos pesares, não foi passar por uma situação similar que me fez querer partir e desaparecer.

-Não? - Perguntou ela, admirada.

-Não. 

-Então o que foi, ainda pior que isto?

-Foi descobrir que a minha companheira, a pessoa por quem eu suportava tudo aquilo que não queria, apenas para lhe poder dar o que ela queria, me era infiel.

Ela olhou para ele com um ar chocado e empalideceu.


segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Renascimento (XVII de XL)




-Podemos ir no meu carro – disse Miranda assim que saíram.

-Deixa o carro. Vamos dar uma volta a pé. 

Caminharam pela rua fora até chegarem à pequena capela no centro da povoação. Não havia ali uma igreja, até porque a povoação era mesmo muito pequena, mas todos os Domingos havia ali missa e a capela enchia com a população, o que não era difícil devido ao tamanho. Mas, fora isso, a porta da capela estava sempre aberta, excepto à noite, quando uma das senhoras da aldeia, a cuidadora do local, a fechava, apenas para a abrir logo de manhã, quando se levantava.

-Acreditas em Deus? – Perguntou Rob.

-És católico? – perguntou ela admirada -Por aqui toda a gente é católica, certo?

-Sim, mais ou menos. Mas não precisas de religião para acreditar em Deus.

Miranda pensou um pouco.

-Sim, acredito. Quer dizer, não acredito que haja um velhote de barbas brancas a viver nas nuvens, ou assim…

Rob riu-se.

-Bem, acho que os católicos também não acreditam nisso. Mas então, qual é a tua ideia de Deus?

-Acho que é um ser espiritual que está tão acima do que nós somos que não o conseguimos sequer compreender.

-Isso é o que eu chamos uma excelente resposta que não diz absolutamente nada acerca de coisa nenhuma. Mas eu percebo-te. É difícil definir o indefinível, ou tentar limitar o infinito ou até mesmo tentar compreender o que está além da compreensão. É como tentar colocar um oceano num copo de água. Mas, não, não sou católico no sentido de que não fui batizado e não sigo os preceitos, mas, como te disse, quando aqui cheguei precisei de me integrar e isto faz parte integrante da cultura.

Atravessaram a porta e Miranda ficou surpreendida. Se por fora a capela não era muito diferente, em termos de decoração, das casas que a rodeavam, quase todas caiadas de branco com uma lista azul forte junto ao solo e a realçar as ombreiras das portas e janelas, por dentro as paredes estavam preenchidas de azulejos até meia altura, todos ricamente desenhados mostrando cenas bíblicas. O altar mor, embora pequeno, era todo trabalhado a talha dourada, com um trono vazio e uma coroa suspensa do tecto. A frente do trono, um crucifixo com a imagem de cristo. De ambos os lados do altar mor havia dois pequenos altares, também em talha dourada, um com a imagem de Nossa Senhora da Conceição e outro com a Imagem de Santo António, padroeiro da terra.

-Olhando do exterior, ninguém diria que a Capela é tão bonita.

-Uma das coisas que te posso dizer acerca deste país é: onde vires uma capela ou igreja com um aspecto antigo, se puderes, vai ver o que está lá dentro. Normalmente surpreendes-te.

Ele aproximou-se do banco corrido da ultima fila e ajoelhou-se, contemplando o altar e convidou-a a fazer o mesmo.

-Se acreditas em Deus, como afirmaste há pouco, então estás num sitio dedicado a ele. O Deus que descreveste não é o Deus de uma religião, é pura e simplesmente Deus. E embora a presença dele esteja em cada ponto do universo, em cada partícula, este é um local construído em sua honra. Portanto estas no sitio onde podes celebrar o criador e a criação. Os detalhes da celebração, para te ser franco, não acho serem importantes. – Ela acenou entendendo e ele continuou – É aqui que podes rezar por aquilo que queres.

-Mas eu não sei rezar.

Rob sorriu.

-Não precisas de ladainhas. Precisas é de focar os teus pensamentos e ser absolutamente honesta contigo própria, mesmo quando dói. Reconhecer o que achas que está errado em ti e tentar melhorá-lo. Perceber o que podes ter feito a outros que possa ter tido um impacto negativo e pedir a luz suficiente para corrigir os teus erros. Se o fizeres, de forma absolutamente sincera para contigo, estás a rezar.

Ela assentiu. Ele virou-se para a frente e ficou silencioso em contemplação. Ela pensou naquilo que ele disse e ficou também a meditar em toda esta situação, do que a trouxera ali, do que pretendia, da ajuda que precisava e estranhamente, uma calma suave caiu sobre ela.

Ao fim de algum tempo ali, ambos num sossego contemplativo, Rob levantou-se e fez o sinal da cruz, gesto em que foi imitado por ela, embora ela não fizesse bem ideia do porquê e saíram de novo para a rua.

-Então, pediste alguma coisa? – perguntou ele.

-Sim,…

-Não me digas o quê. – Interrompeu ele – Só para te dizer uma coisa: Lembra-te que Deus nunca te dá o que queres, mas sim o que precisas. E a maior parte das vezes, na vida, aquilo que queremos raramente precisamos e aquilo que precisamos raramente queremos.

Continuaram e Rob apontou para uma casa, já no fim da rua e consequentemente da população.

-Aquela é a casa da D. Clarisse. É ela que faz aquele pão delicioso que tens andado a comer. Ela já está velhota e só faz pão às Terças, Quintas e Sábados, mas quando faz toda a gente da região passa por aqui para vir buscar o pão fresco. Mas ela costuma fazer pão mais ou menos à justa para as encomendas que tem. Queres pão, para ter em casa em vez de teres de vir sempre tomar o pequeno almoço ao Zé?

Ela assentiu e Rob levou-a em direcção à casa. Bateu à porta e uma velhinha, que aparentava ter pelo menos uns oitenta anos veio à porta.

-Olha o Rob! – disse ela com um sorriso satisfeito – Não me digas que já comeste o pão todo?

-Não, D. Clarisse. Lá era eu capaz… Olhe, quero apresentar-lhe esta menina – fazendo menção a Miranda – que é estrangeira e está a ficar na casa grande da Herdade do Monte.

-Ah! Atã mas o monte nã estava abandonado?

-Eles agora alugam aquilo a gente de fora que queira vir aqui passar férias.

-Atã e ela veio p’raqui?

-Sim, ela e uma amiga. E vão ficar uns dias. Pode fazer mais uns dois pães para elas de cada vez?

-Está bem. Mas ela nã fala?

-Fala, mas só estrangeiro.

-Pois, ê isso de estrangeiro nã percebo nada. Atã e como é que fazemos com os pães se ê nã me intendo com elas?

-Não se preocupe. Ponha os pães no meu saco que eu depois dou-lhes.

A velhota entretanto olhou bem para Miranda e depois disse descaradamente:

-Olha lá, é tua namorada?

-Não. 

-Olha que fazes mal que a moça é bem jeitosa. Mas tem lá cuidado que essas moças estrangeiras nã sã de fiar.

Rob riu-se e despediram-se da velhota e afastaram-se.

-O que é que foi aquilo tudo, perguntou logo Miranda curiosa.

-Aquilo? Estava só a encomendar pão para ti. Ela vai entregar-mo e eu dou-to.

-Só isso?

-Bem, ela também estava a perguntar se eras minha namorada. Quando eu lhe disse que não, ela disse que eu fazia mal, porque tu és bem jeitosa.

Miranda corou e Rob riu-se.

Saíram da povoação e foram andando por carreiros estreitos, onde só se podia passar a pé por entre pequenas quintas cheias de produtos hortícolas e quintas maiores cheias de vinhas e oliveiras. Depois entraram num pinhal e continuaram pelo carreiro que era sempre a descer. Ouvia-se na distância um burburinho de água a correr, mas só ao fim de uma meia hora Miranda percebeu o porque, quando se aproximaram de um regato que serpenteava pelo meio do Pinhal. De repente abriu-se uma clareira à frente deles que era ladeada por mesas e bancos de cimento, e tinha também um enorme grelhador. O local estava completamente vazio e os únicos ruídos que se ouviam e a água a correr, o som da aragem a fazer restolhar as folhas das arvores e o canto de um ou outro pássaros distantes.

Rob sentou-se numa das mesas, à sombra, e ela acompanhou-o.

-Que é que achas do sítio?

-Pacifico. – respondeu ela com um sorriso.

-Nos fins-de-semana isto costuma estar cheio de pessoal que vem aqui conviver. Mas durante a semana está sempre vazio. 

Miranda assentiu e foi observando tudo à sua volta.

- Eu sei – continuou Rob – que tens as tuas assunções acerca de mim. Mas agora põe-nas de lado. Eu sou somente um conhecido teu, com quem falaste meia dúzia de vezes. Dizes que queres uma visão minha… Então podes começar por explicar “a birra” para eu te poder dizer alguma coisa. Senão vamos estar neste impasse até ao fim dos tempos.

Ela olhou para ele surpreendida pela forma direta, brusca mesmo, com que ele abordou o assunto. Ficou um bocado em silêncio, a contemplar a paisagem enquanto tentava organizar as ideias.

-Antes disso, posso só saber se tens alguma relação com o meu marido? Disseste sempre que nem o conhecias…

-Menti. – disse ele sem o menor remorso – Conheci-o há seis anos. Cruzamo-nos brevemente no Norte do Brasil, na floresta Amazónica.

-Só isso?

-Para já, sim.

-Mas o que é que… - Rob interrompeu-a, levantando a mão.

-Fizeste uma pergunta, dei-te uma resposta. Agora é a tua vez.

Miranda percebeu que não teria mais nada de Rob, se não continuasse a conversa de uma maneira proveitosa, por isso resignou-se e começou:

-Conhecemo-nos quando ainda eramos adolescentes. Podes achar piroso ou o que lhe quiseres chamar, mas no dia em que o vi pela primeira vez apaixonei-me por ele. A maneira como ele tocava enchia-me a alma e quando cantava… Foi uma paixão à primeira vista e para te ser franco, acho que foi mutua. A minha vontade de estar sempre com ele fez com que aos poucos eu começasse a tentar gerir a carreira dele. Sabes, apesar do talento, ele era completamente cego ao lado dos negócios. Mas acabamos por conseguir fazer uma dupla que funcionava muito bem mesmo. Comecei a marcar os concertos dele, a tentar fazer ouvir as musicas dele em rádios locais… A fama dele foi crescendo e foi-se tornando um culto, até ao ponto em que começamos a chamar à atenção algumas editoras interessadas em apostar nele. E depois conseguimos o contrato, mas Rob não ficou agradado. Chamaram produtores e escritores para fazer as coisas com ele, porque, como calculas, a editora não está ali pela arte, mas pelo lucro.

-Não é sempre assim?

-É, de facto é. Mas continuando, contrataram consultores de imagem que lhe diziam como se devia apresentar, escritores que lhe diziam como devia fazer as musicas, produtores que diziam como devia soar. O Rob detestou cada passo. Havia dias em que me dizia que sentia que estava a vender a alma. Ao ponto de desprezar as próprias musicas depois de gravadas. Mas tudo aquilo teve sucesso, aliás um sucesso fenomenal, que acabou por dar em digressões que se espalharam por quase todos os continentes e ocuparam centenas de pessoas entre planeamento e execução. Na ultima digressão chegavam a estar mais de cinquenta pessoas em palco e certas alturas entre bailarinos, figurantes, músicos e pessoal de apoio. O Rob não queria nada disto. E, olhando para trás, acho que o único motivo que o levou a continuar fui eu. Eu insisti, mostrando-lhe o quanto teríamos uma segurança financeira e que, quando a conseguíssemos, ele teria já uma carreira e seguidores suficientes para fazer o que quisesse.

-Então dizes-me que basicamente ele aceitou um emprego que não queria e vestiu uma imagem na qual não se revia por ti, por tua causa.

-Sim.

-E no meio disso tudo ganharam estatuto e muito dinheiro, conseguindo a tal segurança.

-Sim conseguimos isso tudo. Mas queria que percebesses que nenhum de nós vinha de uma vida abastada, antes pelo contrário. Daí talvez ser tão importante para mim essa tal segurança.

Rob assentiu, compreendendo.

-Mas depois algo se passou… - disse Rob.

-Sim. O contrato que tínhamos era de cinco álbuns. Os primeiros quatro deram-nos tudo aquilo que podíamos ter sonhado. E o Rob insistiu que não queria ninguém a escrever ou produzir o quinto álbum. A editora, depois de muita insistência minha, lá aceitou a condição. Ele passou semanas fechado sozinho no estúdio que tínhamos em casa e quando acabou o álbum, mostrou-mo. Assim que eu o ouvi fiquei preocupada com o que iria acontecer em seguida. O álbum não tinha absolutamente nada de comercial, estava nos antípodas daquilo que tinha sido lançado por ele anteriormente. E eu, em vez de ouvir as musicas pela arte e depois explicar a minha preocupação com a possível recepção do álbum, fiz exactamente o contrário. Ainda a primeira musica não tinha acabado e já eu o interrogava e dizia que, se calhar, não era o álbum certo para lançar. Mas desta vez o Rob não me ouviu, disse que era este ou nenhum e eu entreguei o álbum à editora.

-Posso quase imaginar a cara de alguns contabilistas na editora… - disse Rob com um sorriso.

-A cara dos contabilistas não foi o pior. Já a cara do CEO… Exigiram de imediato os projectos das gravações, que eu tive de dar, uma vez que eram contratualmente deles. E depois eles alteraram tudo e transformaram aquele álbum em qualquer coisa igual ao resto. Quando o resultado final foi entregue, foi como se uma luz se tivesse apagado no Rob. Creio que ele de alguma forma se ressentiu de mim, por eu ter entregue os projectos originais, embora eu não tivesse outra hipótese e começou a afastar-se de mim. Entretanto a editora tentava organizar uma nova digressão de apoio ao novo álbum que, como era de esperar, vendia bem no mundo inteiro, mas o Rob não se comprometia de maneira nenhuma, nem mesmo quando eu andava atrás dele à espera de uma resposta. E começou a recusar todas as entrevistas e as poucas que deu, nunca falou do ultimo álbum, que era basicamente o motivo pelo qual os jornalistas musicais queriam as entrevistas… E depois, um dia de manhã, saiu simplesmente pela porta fora e não voltou mais. Claro que eu achei que ele estava simplesmente a fazer birra, ou amuado, mas que dai a uns dias tudo entraria nos eixos, mas… Aqui estamos, oito anos depois.

Ela calou-se e ficaram ambos em silêncio, ouvindo a natureza à sua volta.

 


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Renascimento (XVI de XL)




Rob estava já acordado e desfrutava da sua torrada de pão Alentejano com manteiga, acompanhada por um sumo de laranja acabado de espremer quando lhe bateram à porta. Dirigiu-se à porta, ainda a mastigar e quando a abriu não ficou surpreendido de ver o Manuel à sua frente com algumas caixas de encomendas que ele esperava.

-Bom dia

-Bom dia, Rob. Eu sei que devia passar mais tarde, quando abrisses às dez, mas tenho uma volta grande e ter de andar para a frente e para trás dava-me cabo do dia…

-Sem problemas – agarrou nas caixas e assinou em como tinha recebido.

-Obrigado, Rob. – Disse o Manuel ao mesmo tempo que arrancava – Já me facilitaste a vida um bocadinho, que hoje vai ser longo.

A carrinha do Manuel arrancou e Rob fechava a porta quando viu o carro de Miranda a chegar e a parar em frente ao estabelecimento do Zé. Respirou fundo.

Voltou à cozinha onde se dedicou a acabar o seu pequeno-almoço perdido em pensamentos, não se apressando minimamente, antes pelo contrário. Depois foi-se vestir e, pontualmente às dez, como sempre, abriu a porta da loja, pendurou o sinal que indicava que estaria no estabelecimento ao lado e saiu de casa para is beber o café da manhã.

Assim que o Zé o viu a entrar só perguntou – Café? – Ao que Rob simplesmente anuiu. Antes de beber um café não era pessoa de grandes palavras.

Miranda estava sozinha numa mesa, a comer uma torrada de pão alentejano acompanhada de um café com leite. Assim que viu Rob todo o seu rosto se iluminou. Rob recolheu o seu café ao balcão e foi sentar-se junto dela, sem dizer uma única palavra, ainda com um ar de quem os neurónios não estavam a disparar as sinapses como deve de ser. Deu um golo no café, saboreou-o, respirou fundo e disse por fim:

-Bom dia.

-Bom dia. Ainda estás a acordar, pelos vistos.

-É. – respondeu ele, eloquente como costumava ser de manhã – Daqui a pouco a cafeína já começa a fazer efeito.

Ela sorriu e continuou a comer com deleite.

-A Cassandra? Não está contigo?

-O Tobias combinou com ela levá-la a ver um sítio qualquer… Nem sei bem, mas ela levantou-se às sete e ele veio busca-la. Ele está a ser impecável…

-É. Também reparei. E estranhei, se queres que te diga. Ele não costuma ser assim, muito menos com mulheres. Para te ser franco, até me preocupa.

-Não gostas de ver o teu amigo assim, mais feliz e bem-disposto?

-Gosto bastante, até. O problema vai ser quando acabar. Ele já passou por muita coisa e não gostava de o ver com o coração partido. Não te esqueças que são pessoas de dois mundos completamente diferentes e opostos. Vocês vão voltar para Nova-Iorque, mais dia menos dia, e isto vais ser uma recordação interessante, uma pausa nas vossas vidas atarefadas. Mas para o Tobias este tempo é capaz de ser bem mais do que isso.

Miranda percebeu a preocupação de Rob.

-Olha, eu sei que só conheces a Cassandra há pouco mais de um dia, mas ela é bem capaz de te surpreender pela positiva.

-Então?

-Bem, nos conhecíamo-nos de vista, ela mora no mesmo complexo de apartamentos onde nós… - e apercebendo-se da gafe, apressou-se a corrigir – onde eu moro, mas quando fiquei sozinha, ninguém apareceu. Os amigos que eu julgava chegados, as pessoas que eu esperava que me apoiassem… de repente parecia que toda a gente tinha desaparecido da minha vida. Um dia tocaram à porta e era a Cassandra, com um bolo feito por ela e a perguntar se eu não queria companhia para um chá. Foi assim que nos tornamos amigas. Dois anos depois, quando o marido dela morreu, aproximamo-nos ainda mais. Ela está muito bem na vida, o marido deixou-lhe um património imenso e ela já foi cortejada por metade dos solteiros maduros elegíveis em Nova-Iorque. Que eu saiba ela saiu com dois homens nestes 6 anos, e em ambos os casos a saída não passou de um jantar e uma peça na Broadway. Isto só para te dizer que ela não é a dondoca rica estereotípica.

-Ok. – Respondeu Rob pensativo. – Espero que tenhas razão.

-Se ela não estiver interessada no Tobias, nada vai passar de uma amizade. Se estiver, acredita, ela vai ser bem clara a cândida com ele e nada se vai passar sem ter sido bem falado e planeado. Ela já não é uma garota à procura de excitação. E apesar de muitos acharem que ela é apenas uma dondoca privilegiada, a verdade é que passou a vida quase como que prisioneira numa torre de marfim. Podia ter tido tudo, mas aquilo que também teve foi um marido ausente, que se matou a trabalhar simplesmente porque o trabalho era a sua vida. Viveu décadas em solidão e acredita que não é fácil. Sobretudo porque apesar dos pesares, ela nunca abdicou dos seus princípios nem procurou preencher a sua solidão fora dos laços matrimoniais.

-Se assim for, - disse Rob com um sorriso – fico bem mais descansado.

-Deixa-os divertirem-se – Disse Miranda rindo.

-Mas tu não foste com eles porque…?

-Não queria segurar a vela.

Rob olhou para ela, sabendo que a resposta era apenas parcialmente verdade, mas decidiu não insistir. Acabou de beber o café e agarrou no jornal, como sempre fazia, dando uma olhada pelas notícias enquanto ela acabava de comer. Quando ela acabou ficou simplesmente em silêncio a olhar para ele enquanto ele acabava de ler uma noticia que lhe tinha despertado o interesse, tendo ele dobrado o jornal em seguida e pousado.

-Gostas mesmo de ler o jornal, pelos vistos.

-Tornou-se um hábito. Quando aqui cheguei sabia duas palavras em Português, “obrigado” e “por favor”, embora tecnicamente a segunda sejam duas palavras, mas em inglês é só uma. Foi a ler o jornal e alguns romances que consegui aprender e tenho algum orgulho de em seis anos conseguir falar quase como um nativo e com um sotaque mínimo. Português é uma língua tramada. Parece que agarraram em todos os sons difíceis de pronunciar em todas as línguas e fizeram uma com tudo.

-Há quem diga que aprendendo Espanhol se torna mais fácil…

-Sim, mas isso é quem aprende Português com Brasileiros. A maneira como eles falam é mais aberta e fácil de apanhar. Às vezes custa-me a acreditar que em Portugal e no Brasil se fala a mesma língua. De qualquer maneira, fiz, e ainda continuo a fazer, um esforço enorme para me integrar. O aprender a ler Português correctamente foi uma enorme parte. Mas não creio que estejas aqui e tenhas deixado a tua amiga ir passear sozinha para discutires os meus hábitos de leitura, pois não?

Ela corou ligeiramente. Não esperava que ele fosse tão directo, se bem que, pensando bem, devia ter esperado. Talvez a surpresa tenha sido ele ser tão contido desde que ela tinha voltado. Atribuiu isso ao facto de ele, provavelmente, não querer fazer grandes alaridos com mais pessoas à volta.

-Não, de facto não. Podemos ter a tal conversa?

-Depende…

-De…?

-Bem, se eu bem percebi, queres a minha perspectiva em algumas coisas. Para eu te dar uma perspectiva, tenho de ter informação, que tu nunca me deste porque assumiste que eu a tinha. Diz-me, ainda acreditas que eu sou o teu marido?

Ela pensou um pouco. Percebeu ali que tinha duas hipóteses. Ou seria honesta e talvez chegasse a algum lado, ou provavelmente a conversa não chegaria longe.

-Acredito! Mas se já tive cem por cento de certeza, agora já nem tanto. Mas tenho quase a certeza que, se não és, estás de alguma maneira ligado a ele. 

-E o que é que te dá essa certeza?

-Uma conta nas ilhas Caimão que transfere uma quantia mensalmente para a tua conta.

Rob não pareceu surpreso por ela saber este pormenor.

-Deves ter pago uma pipa de massa para chegar a essa informação. E nem me atrevo a perguntar como lá chegaste.

-Sou-te franca, também não sei. A agência de investigação que contratei tem os seus métodos. Mas sim, custou uma pipa de massa.

-E valeu a pena o investimento?

-Ainda não sei… - disse ela com um sorriso – Por um lado, sim. Afinal estou aqui, e estranhamente está-me a saber pela vida estar aqui, longe de tudo. Se calhar, só mesmo por isso, sim, já valeu. Tudo o resto que venha já é ganho.

Rob acenou com a cabeça, assentindo. Depois virou-se para o Zé.

-Zé, se aparecer por aí alguém para a loja… 

O Zé riu-se.

-No caso dessa improbabilidade acontecer eu trato do assunto, não te preocupes. Vai lá…

-Olha lá, achas que podes fazer uma carne de porco à alentejana para o Jantar?

-Não vens almoçar?

-Não sei. Sou capaz de estar ocupado. – Respondeu Rob apontando para Miranda. O Zé sorriu.

-Tudo bem, vai lá, não te preocupes.

-Olha, dás um toque ao Tobias e dizes-lhe que o jantar é aqui e é para os quatro? E fazemos as contas mais logo?

-Pá, já estas a dar demasiado trabalho. Vai-te lá embora antes que me peças ainda mais tretas.

Rob tirou a chave da porta da sua loja do bolso e entregou-a ao amigo.

-Obrigadão. – Disse ele, virando-se em seguida para Miranda e fazendo-lhe sinal para seguirem. Ela acenou ao Zé e saíram os dois.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Renascimento (XV de XL)



Entraram no estabelecimento do Zé e elas estavam já sentadas a conversar animadamente de lados opostos de uma mesa quadrada posta para quatro pessoas. Rob olhou com um ar intrigado para o Zé que se limitou a responder antes que ele perguntasse:

-Presumi que viesses cá jantar e adiantei-me. É bacalhau com batatas para quatro e até pus ovos e couve Portuguesa, como tu gostas?

-E se não me apetecer isso?

-Vais comer a casa.

Sem dúvida, o mundo parecia querer testar a sua paciência cada vez que a gringa aparecia. E agora, ainda por cima, era em dose dupla. De repente apanhou-se a si próprio e sorriu com a ironia. Tratava-a por gringa, como se não fosse ele também um gringo. 

Dirigiu-se à casa de banho onde se refrescou, e depois sentou-se na mesa, no único lugar vago onde o Tobias, apesar de recém-chegado parecia já ter sido absorvido pela conversa delas. Ele limitou-se a cumprimenta-las, e deixou a conversa fluir mantendo-se em silêncio.

Tobias falava-lhes de sítios e terras à volta onde tinham de ir, sempre acompanhado de uma história que dava contexto, quer fosse algo histórico acerca do local, quer fossem lendas.

Foram entretanto interrompidos pelo Zé, que trazia a travessa cheia com batatas, couves, quatro postas de bacalhau e quatro ovos cozidos. Cassandra tentou imitar o que via Miranda fazer, que esta por sua vez tinha visto Rob fazer, para se livrar das espinhas e pele do peixe, serviram-se do resto e depois Miranda disse a Cassandra o que fazer, tendo esta provado o prato e depois agarrado num pedaço de pão que molhou no azeite e deleitou-se.

-É realmente tão bom como disseste. – Disse Cassandra a Miranda.

-Esperem até o Zé vos fazer uma carne de porco à Alentejana. Se acham isto bom… Acreditem, é só uma entrada. – Disse o Tobias.

-Sabes que uma afirmação dessas eleva muito as expectativas. Está a colocar a barra num sítio alto. – Disse Cassandra.

-Eu sei onde a estou a colocar. E não te preocupes, não te ia enganar. Depois ainda tinha de me casar contigo…

-Desculpa? – Perguntaram ambas as mulheres quase em uníssono.

Tobias riu.

-É um dito antigo. Sabem, antigamente quando um rapaz conseguia chegar a vias de facto com uma rapariga antes do casamento, dizia-se que o rapaz a tinha enganado. Claro que, a não ser que o rapaz fugisse, acabava por ter de se casar com a rapariga como castigo. Dai dizermos a alguém que não o enganávamos, senão ainda tínhamos de casar com essa pessoa, como castigo.

-Isso quer dizer que se me enganares, o teu castigo é casares comigo? – Perguntou Cassandra num tom atrevido. Tobias corou mais que um pimento vermelho.

-Bem,… Quer dizer,…

-Deixa estar, já percebi que não ias querer um castigo tão grande…

E todos se riram, até o Zé, que os olhava de trás do balcão com um copo de aguardente velha caseira na mão.

O jantar foi passando em animada cavaqueira, sobretudo entra Cassandra e Tobias, embora Miranda estivesse atenta e fosse e interviesse frequentemente. Já Rob parecia estar simplesmente absorto no ambiente, ou nos seus próprios pensamentos. Olhava para Miranda e pensava no que Tobias tinha dito à tarde. Ele tinha razão: Mas saber o que fazer e como fazer são duas coisas completamente diferentes… Além disso, ela é que tinha vindo aqui à procura de algo. Mas tudo na vida tem um preço. A questão é se ela algum dia estaria disposta a pagá-lo.

Acabaram a refeição, sempre com o Tobias a tomar conta da conversa com boa disposição. Ele estranhava o amigo, que normalmente não se portava assim, mas olhando para Cassandra, não era difícil perceber. Ela acabaria por se ir embora e provavelmente esquecer-se deste pedaço abandonado de mundo assim que chegasse à “Grande Maçã”, e ele por cá continuaria. Ela já conhecia bem o quanto as coisas na vida são transitórias, e o facto de não haver expectativas de lado nenhum em relação ao futuro era, sem dúvida apelativo para ele. Afinal, não era difícil de perceber que ele não se tinha ligado a ninguém porque a morte da mulher tinha tido um impacto demasiado grande. E de qualquer forma, na idade que tinha, as potenciais relações que teria nesta terra teriam de ser logo levadas a sério, sob pena de ele começar a ser visto com desconfiança. Não sabendo ele sequer se queria ter alguém ao seu lado, era complicado tentar ter alguma relação neste clima, e assim, ele preferia simplesmente não ter.

Mas Cassandra não era daqui. Não havia espectativas. Fosse o que fosse que acontecesse, e independentemente do tempo que elas levariam para ir embora ou da natureza da relação, fosse uma simples amizade ou algo mais, era implícito que seria somente a prazo.

-Rob, ouviste o que eu disse? – Perguntou de repente o Tobias despertando-o dos seus pensamentos.

-Não, desculpa, estava distraído…

Tobias olhou para ele com o sobrolho levantado, mas não fez nenhum comentário.

-Estava a dizer que, uma vez que só ia aproveitar as férias deste ano para ficar por aqui a bezerrar, acho que vou falar com o patrão e ver se as consigo tirar agora, e assim sempre posso mostrar a região às nossas amigas…

-Fazes bem. Pelo menos andas entretido e elas não se aborrecem de morte.

-E tu também podias fazer companhia.

Ambas olharam pare ele com um ar esperançado, sobretudo Miranda, mas Rob limitou-se a responder:

-Sabes bem que tenho a loja…

A esperança que estava espelhada nos olhos de Miranda foi substituída por uma súbita tristeza, que não passou despercebida a Cassandra.

Não só o Tobias se riu à gargalhada, mas nem o Zé não se conseguiu conter à distância.

-Sim, o que será da região… Afinal todos sabemos as filas enormes que costumam estar aqui à porta para comprar cordas… Ou tens medo que o Zé fique solitário se não estiveres por aqui?

Rob limitou-se a encolher os ombros.

-Pá, ó Tobias,… - gritou o Zé lá do fundo - …queres pôr-me na falência? O que é que eu faço sem o meu melhor e na maior parte do tempo único cliente?

Rob corou enquanto Tobias explicava a ambas o que se estava a passar, para elas se rirem também.

O jantar acabou e a conversa continuou, liderada por Tobias, que falava daquela terra e dos costumes, estando elas atentas e curiosas e Rob atento, mas sem intervir, até porque o assunto, não lhe sendo alheio, tinha para ele uma perspectiva diferente, uma vez que já ali vivia.

-Por falar nisso, podíamos ir a Vergalhos de cima. A colectividade tem lá cante Alentejano hoje. Foi o Quim que me disse, ele faz parte lá daquilo. Era giro para elas… Que é que achas, Rob? – Perguntou Tobias, quase o sobressaltando.

-Bem, por mim… Depende delas e do Jet-lag…

Elas olharam uma para a outra, e respondeu Miranda pelas duas:

-Nós estamos bem. Aliás estamos sem sono nenhum, passamos o dia quase todo a dormir…

-Sim, mas convém habituarem o corpo a outro ritmo, senão vão passar os dias a dormir.

-Também aquilo não acaba tarde, que aquele pessoal tem de ir trabalhar amanhã. – Afirmou o Tobias. – Vamos então?

Fizeram as contas com o Zé, com ambas a insistir ficarem com a conta e acabando por levar a delas avante, apesar dos protestos, com ajuda do Zé.

Depois, ao saírem, Miranda adiantou-se, tirou a chave do seu carro da carteira e afirmou sem deixar espaço a discussão.

-Vamos no meu carro. É o mais confortável e escusamos de levar mais carros – e entregou a chave a Rob – Sabes o caminho, não sabes?

-Sei.

-Leva tu o carro. É mais prático.

-Mas…

-Eu já te vi conduzir. – Limitou-se ela a dizer com um sorriso – Confio em ti. Além disso o carro é alugado…

Rob sentou-se ao volante, viu o encaixe da chave que rodou, ficou a olhar para as miríades de luzes e ecrãs digitais e sabia ele lá mais o quê.

-Já não estou habituado a isto.

-Estás a ficar mais velho que eu. – Disse o Tobias do banco de trás.

Viu que o carro era automático, engrenou-o, carregou suavemente no acelerador a arrancou.

Percorreram estradas estreitas, sobretudo para o carro em que seguiam, atravessando vinhas e olivais. Quando chegaram ao cimo de um monte Rob parou de repente o carro, para surpresa dos restantes e disse com um sorriso:

-Saiam. 

-Algum problema? - Perguntou Miranda, ao seu lado, admirada.

-Não. – Respondeu Rob – Só quero que vejam uma coisa. 

Saíram todos do carro e olharam em volta. Viam-se quilómetros com luzes pontilhadas na paisagem com alguns sítios com uma maior concentração, onde estava alguma pequena povoação. Tobias apontou para um desses pequenos aglomerados.

-É para ali que vamos.

Elas olhavam em volta admiradas.

-Que paisagem espectacular, assim à noite. Nunca pensei… Obrigada, Rob. – disse Cassandra.

-Não era isto que vos queria mostrar.

-Então? – Perguntou Miranda.

Ele limitou-se a apontar para cima. Elas acompanharam o gesto com o olhar e ficaram deslumbradas com toda a glória de um estrelado céu nocturno sem interferência de poluição luminosa. Cassandra não se conteve e soltou um – Wow! – e Rob riu-se.

-O pessoal de Nova-Iorque tende a esquecer-se que isto existe acima das suas cabeças.

Elas ficaram mais um pouco absorvidas pela beleza, mais ainda quando viram estrelas cadentes. Depois entraram de novo no carro e fizeram o curto percurso até ao destino.

Quando entraram na colectividade, sentaram-se a uma mesa e pediram bebidas e estavam ainda a ser servidos quando se fez silêncio e o espectáculo começou. Elas ficaram maravilhadas a ouvir aqueles cantos tradicionais, embora não percebessem uma palavra do que era dito.

A certa altura, quando Rob ia para pegar no seu copo, roçou com a sua mão na de Miranda, o que a sobressaltou pelo toque inesperado, e ela olhou para ele, enquanto ele desenhava um “desculpa” com os lábios para não fazer barulho, ao que ela respondeu dando-lhe um pequeno aperto na mão e ele não pode deixar de reparar no brilho que bailava nos olhos e sorriso dela.