Alguns dias depois,
quando Óscar apanhou Benedita na escola, percebeu logo que ela estava
diferente. A miúda parecia inquieta, ansiosa de chegar a casa, a mexer-se no
banco do passageiro como quem mal consegue conter um segredo.
— Então? — perguntou,
de lado, desconfiado.
— Nada… — respondeu
ela, mordendo o lábio e disfarçando mal o sorriso.
Quando estacionou o
Corvette na garagem, Óscar percebeu logo. Ao lado do seu carro vermelho estava
agora uma carrinha Mercedes C63 preta, de linhas agressivas e elegantes,
imponente mesmo ali, em repouso.
Benedita não aguentou
mais e desatou a rir-se, apontando para o carro.
— Surpresa!
Óscar saiu do Corvette
e aproximou-se devagar, quase em reverência. Deu uma volta à carrinha, passou a
mão pela pintura impecável, abriu a porta do condutor e espreitou o interior. O
couro estava bem cuidado, os detalhes brilhavam. Não era nova, mas estava em
estado irrepreensível.
Fechou a porta, ergueu
o olhar para Benedita e perguntou-lhe, num tom de irritação fingida:
— Tu sabias disto, não
sabias?
Ela, a tentar conter
as gargalhadas, respondeu com ar de miúda travessa:
— Claro que sabia! Eu
ajudei a escolhê-la!
Óscar abanou a cabeça,
mas um sorriso escapou-lhe.
— Tu não existes,
miúda…
— Vá lá, põe-no a
trabalhar! Quero ouvir! — pediu ela, quase aos saltos.
Óscar suspirou
teatralmente, mas obedeceu. Abriu as portas da garagem, entrou na carrinha e
rodou a chave. O motor V8 acordou com um ronronar grave, característico, que
ecoou pelas paredes. Depois, com um toque no acelerador, o rugido encheu o
espaço.
Benedita riu-se,
encantada, e Óscar não resistiu a sorrir também, como se aquele som lhe
enchesse a alma.
Nesse momento, Laura
apareceu à porta da garagem. Ficou a observá-los, apoiada no aro da porta,
discreta. Óscar, ainda dentro da carrinha, ergueu o olhar e encontrou o dela
pelo retrovisor. Não precisaram de palavras: bastou um leve aceno de cabeça
dele e o sorriso contido dela para que ambos soubessem o que aquele gesto
significava.
Óscar desligou o motor
e saiu da carrinha. Deu a volta e deixou a porta do condutor aberta. Olhou para
Laura, imóvel na ombreira da garagem, e fez-lhe sinal com a cabeça.
— Vai lá, senta-te. —
disse, num tom simples, quase neutro.
Laura hesitou, mas
acabou por caminhar até ao carro. Entrou devagar, como se tivesse medo de estar
a invadir território proibido. Óscar fechou a porta com cuidado, deu a volta ao
carro e, surpreendendo-a, abriu a porta do passageiro.
— Benedita, vai para
trás. — disse.
A rapariga obedeceu
sem perceber bem, ainda com um sorriso divertido, e instalou-se no banco
traseiro. Óscar sentou-se no lugar ao lado de Laura.
— Já o conduziste? —
perguntou-lhe, casual.
Laura abanou a cabeça.
— Só para o pôr na
garagem.
Óscar soltou um meio
sorriso.
— Então vamos.
— Para onde? —
perguntou ela, confusa.
— Onde quiseres.
Laura engoliu em seco.
Ligou o carro, sentiu o motor rugir debaixo das mãos e, pela primeira vez em
muito tempo, deixou-se levar.
Acabaram por seguir em
direção ao Gerês, pelas estradas que serpenteavam entre montes verdes e vales
profundos. O sol começava a cair, pintando o céu de dourado e laranja. Do banco
de trás, Benedita não resistiu: tirou o telemóvel, ligou para Clara e, sem
grandes rodeios, anunciou:
— Olha, cancela os
planos para hoje. Estou com o teu pai e a tua mãe a dar uma volta. Fica para
outro para amanhã, pode ser?
Do outro lado, Clara
ficou em silêncio uns segundos, tão surpreendida que nem sabia o que responder.
Jantaram num restaurante típico, à beira de uma estrada
secundária, onde o cheiro a lenha queimava no ar e a comida sabia a conforto
antigo. O restaurante era simples, de estrada, com toalhas de papel e cheiro a
grelhados a encher o ar. Nada de requintado, mas havia nele uma autenticidade
que lhes caiu bem naquele momento. Óscar pediu vinho da casa e um prato de
vitela grelhada; Laura, truta com amêndoas; Benedita ficou-se por uma
francesinha que fez questão de experimentar, rindo da surpresa de Óscar perante
a escolha.
Durante a refeição, as conversas foram leves, quase superficiais.
Benedita falava entusiasmada sobre colegas da escola, sobre os trabalhos que
tinha de entregar, e até comentou em tom divertido o facto de Clara nunca lhe
conseguir explicar filosofia sem arrastar Daniel para a conversa. Laura ouvia,
sorria, mas falava pouco; parecia ocupar-se mais em observar, como quem não
queria estragar o equilíbrio frágil que se tinha instalado.
Óscar, por sua vez, manteve o ar sério mas não distante. Olhava
para Benedita com atenção genuína, intercalava uma ou outra pergunta prática, e
chegou a esboçar um sorriso verdadeiro quando a jovem descreveu uma professora
sua como “um vulcão disfarçado de freira”.
Entre Óscar e Laura, o diálogo foi mínimo, mas não frio. Trocaram
palavras necessárias: um passa-me o sal, um queres provar?, e até um discreto
está bom, não está?. Gestos simples, banais, mas que, para Laura, tiveram um
peso inesperado. Havia muito tempo que não partilhava com ele o ritual banal de
uma refeição sem a sensação de estar a invadir território proibido.
Quando terminaram, Benedita insistiu para partilharem sobremesa, e
acabou por escolher um pudim caseiro para os três, empurrando as colheres como
quem queria forçar cumplicidade. Laura observava em silêncio, e não pôde evitar
pensar que talvez fosse assim que começava — não com grandes pedidos de
desculpa ou com discursos sentidos, mas com pequenas normalidades recuperadas.
No regresso, já noite cerrada, Laura insistiu para que Óscar
conduzisse a carrinha de volta a casa. Ele não discutiu: limitou-se a aceitar o
volante de volta às mãos.
Na viagem de regresso, o ambiente estava sereno. Não houve
confidências nem revelações, apenas o som do motor, a paisagem a escurecer pela
janela e a sensação de que, por uma noite, tinham conseguido respirar no mesmo
espaço sem que a dor fosse a única presença à mesa.
Quando estacionaram na
garagem, Benedita saiu disparada, mochila às costas, murmurando qualquer coisa
sobre trabalhos para o dia seguinte. Desapareceu escada abaixo.
Ficaram apenas os
dois. Laura voltou-se para Óscar, ainda junto ao carro, e disse com voz baixa:
— Obrigada pela noite.
Ele sustentou-lhe o
olhar por um instante, sério, e respondeu simplesmente:
— Eu também agradeço.
Depois seguiram os
dois caminhos separados dentro da mesma casa, mas algo, mesmo que pequeno,
tinha mudado.
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