sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 29

 



Alguns dias depois, quando Óscar apanhou Benedita na escola, percebeu logo que ela estava diferente. A miúda parecia inquieta, ansiosa de chegar a casa, a mexer-se no banco do passageiro como quem mal consegue conter um segredo.

— Então? — perguntou, de lado, desconfiado.

— Nada… — respondeu ela, mordendo o lábio e disfarçando mal o sorriso.

Quando estacionou o Corvette na garagem, Óscar percebeu logo. Ao lado do seu carro vermelho estava agora uma carrinha Mercedes C63 preta, de linhas agressivas e elegantes, imponente mesmo ali, em repouso.

Benedita não aguentou mais e desatou a rir-se, apontando para o carro.

— Surpresa!

Óscar saiu do Corvette e aproximou-se devagar, quase em reverência. Deu uma volta à carrinha, passou a mão pela pintura impecável, abriu a porta do condutor e espreitou o interior. O couro estava bem cuidado, os detalhes brilhavam. Não era nova, mas estava em estado irrepreensível.

Fechou a porta, ergueu o olhar para Benedita e perguntou-lhe, num tom de irritação fingida:

— Tu sabias disto, não sabias?

Ela, a tentar conter as gargalhadas, respondeu com ar de miúda travessa:

— Claro que sabia! Eu ajudei a escolhê-la!

Óscar abanou a cabeça, mas um sorriso escapou-lhe.

— Tu não existes, miúda…

— Vá lá, põe-no a trabalhar! Quero ouvir! — pediu ela, quase aos saltos.

Óscar suspirou teatralmente, mas obedeceu. Abriu as portas da garagem, entrou na carrinha e rodou a chave. O motor V8 acordou com um ronronar grave, característico, que ecoou pelas paredes. Depois, com um toque no acelerador, o rugido encheu o espaço.

Benedita riu-se, encantada, e Óscar não resistiu a sorrir também, como se aquele som lhe enchesse a alma.

Nesse momento, Laura apareceu à porta da garagem. Ficou a observá-los, apoiada no aro da porta, discreta. Óscar, ainda dentro da carrinha, ergueu o olhar e encontrou o dela pelo retrovisor. Não precisaram de palavras: bastou um leve aceno de cabeça dele e o sorriso contido dela para que ambos soubessem o que aquele gesto significava.

Óscar desligou o motor e saiu da carrinha. Deu a volta e deixou a porta do condutor aberta. Olhou para Laura, imóvel na ombreira da garagem, e fez-lhe sinal com a cabeça.

— Vai lá, senta-te. — disse, num tom simples, quase neutro.

Laura hesitou, mas acabou por caminhar até ao carro. Entrou devagar, como se tivesse medo de estar a invadir território proibido. Óscar fechou a porta com cuidado, deu a volta ao carro e, surpreendendo-a, abriu a porta do passageiro.

— Benedita, vai para trás. — disse.

A rapariga obedeceu sem perceber bem, ainda com um sorriso divertido, e instalou-se no banco traseiro. Óscar sentou-se no lugar ao lado de Laura.

— Já o conduziste? — perguntou-lhe, casual.

Laura abanou a cabeça.

— Só para o pôr na garagem.

Óscar soltou um meio sorriso.

— Então vamos.

— Para onde? — perguntou ela, confusa.

— Onde quiseres.

Laura engoliu em seco. Ligou o carro, sentiu o motor rugir debaixo das mãos e, pela primeira vez em muito tempo, deixou-se levar.

Acabaram por seguir em direção ao Gerês, pelas estradas que serpenteavam entre montes verdes e vales profundos. O sol começava a cair, pintando o céu de dourado e laranja. Do banco de trás, Benedita não resistiu: tirou o telemóvel, ligou para Clara e, sem grandes rodeios, anunciou:

— Olha, cancela os planos para hoje. Estou com o teu pai e a tua mãe a dar uma volta. Fica para outro para amanhã, pode ser?

Do outro lado, Clara ficou em silêncio uns segundos, tão surpreendida que nem sabia o que responder.

Jantaram num restaurante típico, à beira de uma estrada secundária, onde o cheiro a lenha queimava no ar e a comida sabia a conforto antigo. O restaurante era simples, de estrada, com toalhas de papel e cheiro a grelhados a encher o ar. Nada de requintado, mas havia nele uma autenticidade que lhes caiu bem naquele momento. Óscar pediu vinho da casa e um prato de vitela grelhada; Laura, truta com amêndoas; Benedita ficou-se por uma francesinha que fez questão de experimentar, rindo da surpresa de Óscar perante a escolha.

Durante a refeição, as conversas foram leves, quase superficiais. Benedita falava entusiasmada sobre colegas da escola, sobre os trabalhos que tinha de entregar, e até comentou em tom divertido o facto de Clara nunca lhe conseguir explicar filosofia sem arrastar Daniel para a conversa. Laura ouvia, sorria, mas falava pouco; parecia ocupar-se mais em observar, como quem não queria estragar o equilíbrio frágil que se tinha instalado.

Óscar, por sua vez, manteve o ar sério mas não distante. Olhava para Benedita com atenção genuína, intercalava uma ou outra pergunta prática, e chegou a esboçar um sorriso verdadeiro quando a jovem descreveu uma professora sua como “um vulcão disfarçado de freira”.

Entre Óscar e Laura, o diálogo foi mínimo, mas não frio. Trocaram palavras necessárias: um passa-me o sal, um queres provar?, e até um discreto está bom, não está?. Gestos simples, banais, mas que, para Laura, tiveram um peso inesperado. Havia muito tempo que não partilhava com ele o ritual banal de uma refeição sem a sensação de estar a invadir território proibido.

Quando terminaram, Benedita insistiu para partilharem sobremesa, e acabou por escolher um pudim caseiro para os três, empurrando as colheres como quem queria forçar cumplicidade. Laura observava em silêncio, e não pôde evitar pensar que talvez fosse assim que começava — não com grandes pedidos de desculpa ou com discursos sentidos, mas com pequenas normalidades recuperadas.

No regresso, já noite cerrada, Laura insistiu para que Óscar conduzisse a carrinha de volta a casa. Ele não discutiu: limitou-se a aceitar o volante de volta às mãos.

Na viagem de regresso, o ambiente estava sereno. Não houve confidências nem revelações, apenas o som do motor, a paisagem a escurecer pela janela e a sensação de que, por uma noite, tinham conseguido respirar no mesmo espaço sem que a dor fosse a única presença à mesa.

Quando estacionaram na garagem, Benedita saiu disparada, mochila às costas, murmurando qualquer coisa sobre trabalhos para o dia seguinte. Desapareceu escada abaixo.

Ficaram apenas os dois. Laura voltou-se para Óscar, ainda junto ao carro, e disse com voz baixa:

— Obrigada pela noite.

Ele sustentou-lhe o olhar por um instante, sério, e respondeu simplesmente:

— Eu também agradeço.

Depois seguiram os dois caminhos separados dentro da mesma casa, mas algo, mesmo que pequeno, tinha mudado.


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