Saíram do hotel cedo,
ainda com o sol a espreitar timidamente por entre as nuvens, e fizeram-se à
estrada. A manhã estava fresca, e Óscar, ao entrar no carro, sugeriu que fossem
para Paris por Orleães. Benedita, sentada no banco do passageiro, assentiu com
um brilho nos olhos quando ele acrescentou que poderiam ir por estradas
secundárias.
— Por Orleães? — perguntou ela, animada.
— A terra de Santa Joana de Arc?
Óscar sorriu levemente. — Sim.
A estrada secundária
serpenteava por colinas suaves, campos dourados de trigo e manchas verdes de
vinhas e bosques. De vez em quando, aldeias pitorescas surgiam no horizonte,
com as suas casas de pedra e telhados vermelhos, e um campanário que parecia
vigiar o tempo. O ritmo mais lento, sem pressa, emprestava à viagem uma
atmosfera quase meditativa.
Benedita olhava pela
janela, absorvendo cada detalhe como se estivesse a colecionar memórias. Ficou
alguns minutos em silêncio, até que a curiosidade lhe venceu a reserva.
— Quem é o Daniel? — perguntou,
virando-se para ele.
Óscar manteve os olhos
na estrada, mas a resposta não se fez esperar.
— O Daniel é meu genro.
Ela piscou os olhos,
surpreendida.
— O marido da sua filha?
— Exatamente. — A sua voz era calma, mas
firme, sem dar espaço para mais perguntas imediatas.
O carro continuou pela
estrada estreita, o motor a ronronar suavemente, enquanto a revelação pairava
no ar, deixando Benedita a pensar no peso que aquele simples esclarecimento
poderia ter sobre tudo o que ouvira antes.
Óscar lançou-lhe um
olhar rápido de soslaio, ainda com a estrada como prioridade.
— Não tinhas percebido?
Benedita encolheu os
ombros.
— Percebi que era alguém próximo… mas
não que fosse o marido da sua filha.
O silêncio voltou a
instalar-se, quebrado apenas pelo som dos pneus sobre o asfalto e pelo chilrear
distante de pássaros que se escapava pelas frestas da janela. Ela mordiscou o
lábio inferior, como se lutasse contra a vontade de fazer a próxima pergunta.
— E… aquela conversa dura que ele mencionou?
— arriscou por fim.
Óscar suspirou,
mantendo a voz baixa e distante.
— Foi… complicada. — Nada mais
acrescentou de imediato, como se as palavras pesassem demasiado.
Benedita esperou
alguns segundos, antes de tentar outra aproximação.
— Foi por causa dessa conversa que
decidiu vir assim, de repente, nesta viagem?
Ele negou com um leve
abanar de cabeça.
— Não… — começou, mas hesitou,
os dedos apertando o volante por um instante. — Quer dizer… contribuiu. Mas houve… algo mais grave que aconteceu antes.
A frase ficou suspensa
no ar, carregada de significados que ela não conseguia decifrar. Ele, por sua
vez, manteve o olhar fixo na estrada, e por um momento pareceu esquecer-se da
presença dela.
— Engraçado… — murmurou, mais para si
próprio do que para ela — se nada
daquilo tivesse acontecido, eu não estaria nesta viagem… e não te teria
encontrado à beira da estrada.
Benedita percebeu que
não havia mais nada que ele quisesse dizer — pelo menos, não naquele momento.
Respeitou o silêncio de Óscar e voltou o olhar para a janela, deixando que a
paisagem se tornasse a sua companhia.
A estrada secundária
serpenteava por campos dourados de trigo, intercalados com extensões
verdejantes de vinhas e pequenas hortas familiares. De vez em quando, passavam
por aldeias de casas em pedra calcária clara, com telhados inclinados em
ardósia e varandas decoradas com gerânios vermelhos.
Ao longe, torres de
igrejas góticas despontavam no horizonte, cada uma anunciando uma vila
diferente. Passaram junto a um moinho de vento restaurado, as pás rodando
lentamente contra o céu azul, e por uma ponte estreita de pedra sobre um riacho
cristalino, onde um pescador solitário mantinha a linha imóvel sobre a água.
Em certos troços, a
estrada era ladeada por plátanos centenários, cujas copas formavam um túnel
verde que filtrava a luz do sol e projetava padrões móveis no capô do carro.
Benedita absorvia tudo em silêncio, com a testa apoiada no vidro e um leve
sorriso nos lábios, como se a viagem fosse, por si só, uma resposta suficiente.
Chegaram a Orleães
pouco antes do meio-dia, a cidade recebendo-os com ruas largas e elegantes,
ladeadas por edifícios de fachadas ornamentadas e varandas de ferro forjado.
Óscar estacionou perto do centro histórico, e decidiram procurar um restaurante
antes de começarem a explorar.
Encontraram uma
pequena brasserie com mesas na esplanada, decorada com toalhas de linho branco
e arranjos simples de flores silvestres. O aroma que vinha da cozinha
denunciava sabores reconfortantes e bem trabalhados. Sentaram-se junto à rua, e
o empregado, cordial, recomendou pratos típicos da região do Vale do Loire.
Óscar optou por um sandré au beurre
blanc — peixe de rio fresco, regado com um molho cremoso de manteiga e
vinho branco local. Benedita, curiosa, escolheu rillettes de porc como entrada, seguida de um poulet à la façon d’Orléans, frango
estufado com vinho tinto e ervas aromáticas. A refeição terminou com uma tarte Tatin morna, acompanhada de uma
bola de gelado de baunilha.
Depois do almoço,
lançaram-se pelas ruas do centro histórico. A primeira paragem foi a Catedral Sainte-Croix, imponente, com
as suas torres góticas erguidas contra o céu. O interior, vasto e solene,
estava banhado por uma luz filtrada através dos vitrais que narravam episódios
da vida de Joana d’Arc. Benedita caminhava devagar, como se cada passo fosse
uma reverência, os olhos brilhando ao reconhecer as figuras que até então só
conhecia dos livros e documentários.
Seguiram depois até à Maison de Jeanne d’Arc, uma reconstrução
fiel da casa onde a heroína teria ficado durante o cerco de Orleães. Lá dentro,
vitrinas exibiam cartas, armaduras e reproduções de documentos que contavam a
história da jovem camponesa que liderou exércitos e mudou o rumo da história
francesa. Benedita permanecia em silêncio, absorvendo cada detalhe, os dedos
pousando levemente nas vitrinas como se pudesse, de alguma forma, tocar o
passado.
Óscar observava-a com
atenção. Havia algo na devoção silenciosa dela que o tocava profundamente —
talvez a pureza de acreditar numa causa, ou a coragem que se escondia nos olhos
de alguém tão jovem. Ele próprio não sabia ao certo, mas a sensação
apertava-lhe o peito de uma forma inesperada.
Passaram ainda pela Place du Martroi, onde a estátua
equestre de Joana d’Arc dominava o centro da praça. Benedita ficou ali por
longos minutos, olhando para a figura erguida contra o céu da tarde, como se
procurasse inspiração ou respostas. Óscar, a alguns passos de distância,
deixava-a ficar, respeitando aquele momento.
Quando o sol começou a
baixar, dirigiram-se ao hotel escolhido, um edifício elegante com vista para o
Loire. O check-in foi rápido, e decidiram jantar no restaurante do próprio
hotel. A refeição foi simples mas cuidada, acompanhada por um vinho branco
local.
Depois do jantar,
subiram aos quartos. Óscar abriu a porta, entrou e pousou as chaves e o
telemóvel na mesa-de-cabeceira, o cansaço do dia estampado nos ombros. A porta
fechou-se atrás dele, encerrando mais um capítulo da viagem.
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