segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 10

 


Saíram de Rocamadour na manhã seguinte, quando o ar fresco ainda cheirava a pedra molhada e a lareiras apagadas durante a noite. O céu começava a clarear por trás das colinas, e a estrada estendia-se à frente como um fio cinzento serpenteando por entre campos verdes e bosques húmidos.

No carro, Benedita mantinha-se calada, com o queixo apoiado na mão e os olhos fixos na paisagem que desfilava para trás. Óscar, alheio ao seu silêncio, cantarolava com voz rouca clássicos de rock de outras décadas — músicas que pareciam trazer-lhe algum tipo de paz e que ela mal conhecia.

O tempo passava, marcado apenas pelo ronronar constante do motor. Até que, sem se virar para ele, ela perguntou baixinho:

— Tu… vais mesmo levar-me de volta?

Óscar não hesitou:

— Vou. Tenho de te levar. Não posso, em consciência, deixar-te por aí… sabendo que vão continuar à tua procura. Ou que aquele pior cenário que imaginaste… se torne real.

Ela desviou os olhos para o colo, apertando as mãos, sentindo um nó na garganta. Ficou alguns segundos em silêncio, antes de, com a voz magoada e incerta, arriscar:

— E… o que é que eu vou fazer depois?

Óscar lançou-lhe um olhar rápido e sério. O rosto endureceu, e a sua expressão tornou-se a de um homem que fala apenas quando tem a certeza absoluta do que diz. A voz saiu grave, carregada de uma promessa que não precisava de floreados:

— Até aqui… estiveste sozinha. Mas agora… tens um amigo.

As palavras caíram no interior do carro como um peso silencioso, afastando qualquer som que não fosse o leve rolar dos pneus no asfalto. Benedita sentiu um calor estranho no peito, uma mistura de alívio e vulnerabilidade. Virou o rosto para a janela, não querendo que ele visse os olhos marejados.

Óscar não disse mais nada. Apenas aumentou ligeiramente o volume da música e continuou a conduzir, como se aquela promessa fosse suficiente — e, para ela, naquele momento, talvez fosse mesmo.

A estrada seguiu-se entre colinas suaves e aldeias adormecidas. Perto do meio-dia, Óscar saiu da rota principal e seguiu por um caminho mais estreito, ladeado por vinhas e campos dourados. O destino era uma pequena povoação cujo nome Benedita nem conseguiu ler no letreiro, mas que parecia saída de um postal antigo.

No centro, uma praça de pedra irregular guardava um restaurante de fachada envelhecida, com toldos vermelhos gastos pelo sol. Lá dentro, o ar cheirava a lareira apagada, vinho tinto e pão acabado de cozer. A dona — uma mulher baixa e de olhos vivos — apresentou-lhes pratos da região: magret de pato grelhado com molho de pimenta verde, acompanhado de batatas salteadas em gordura de pato, e truta fresca dos Pirenéus grelhada com amêndoas e manteiga, servida com legumes cozidos no vapor.

Benedita nunca tinha provado nada semelhante; o sabor da truta era delicado e aromático, enquanto o pato tinha uma intensidade que se prolongava no paladar, equilibrada pelo toque fresco do molho. O vinho tinto local, servido em copos simples, aquecia-lhes o corpo e o espírito.

Comeram em relativa descontração, trocando pequenos comentários sobre o sabor da comida e as pessoas à volta, que pareciam olhar para eles com curiosidade. Depois de um café forte e de agradecerem à dona, voltaram à estrada.

O carro rolava suavemente quando, de repente, o painel central iluminou-se com um toque agudo. Um nome apareceu no ecrã: Laura.

Benedita, surpreendida, olhou de relance para Óscar. Ele manteve os olhos na estrada, mas a sua expressão mudou — uma tensão súbita na mandíbula, um endurecer dos traços. Com um gesto seco, carregou no botão para recusar a chamada.

O telemóvel, esquecido no bolso, vibrou mais uma vez. Desta vez, Óscar tirou-o, olhou para o ecrã com um ar que misturava irritação e fadiga, e desligou-o por completo, empurrando-o de volta para o casaco sem dizer uma única palavra.

O resto da viagem até Oradour-sur-Glane fez-se num silêncio que não era desconfortável, mas denso — como se cada quilómetro fosse cimentando algo que não se dizia.

Chegaram a Oradour-sur-Glane a meio da tarde. A aldeia permanecia como um fantasma preservado no tempo, cenário de um dos mais atrozes massacres da Segunda Guerra Mundial. A 10 de junho de 1944, tropas da Waffen-SS cercaram a aldeia, reuniram os homens e fuzilaram-nos nas ruas e celeiros. As mulheres e crianças foram trancadas na igreja, que foi incendiada. No final do dia, 642 pessoas estavam mortas, e o lugar foi deixado em ruínas como advertência e terror.

Agora, décadas depois, as ruas permaneciam como naquele dia: fachadas queimadas, janelas vazias, veículos enferrujados parados no meio das praças, lojas com letreiros desbotados pelo tempo, como se o dia tivesse ficado suspenso. O vento passava entre as paredes negras pelo fogo, trazendo um sussurro que parecia carregar o eco distante de gritos e silêncio.

Benedita caminhava devagar, absorvendo a gravidade do lugar. Aquela aldeia destruída falava-lhe de perda e violência, de sonhos desfeitos sem aviso — coisas que ela compreendia demasiado bem. A devastação material ecoava na sua própria sensação de vida interrompida e infância roubada.

Óscar, por sua vez, movia-se com passos firmes mas olhar distante. Para ela, era impossível adivinhar o que se passava na sua cabeça, mas havia algo na rigidez dos ombros e no silêncio obstinado que denunciava que aquelas ruínas mexiam com algo nele também. A diferença era que ele mantinha as portas fechadas, como se a sua própria aldeia destruída estivesse escondida a sete chaves.

No miraCávado, olharam juntos para o panorama: um vale de silêncio e pedra que nunca fora reconstruído. O céu começava a ganhar tons de cobre e laranja, mas a beleza da luz não conseguia suavizar a memória do que ali acontecera. Quando se afastaram, o silêncio entre os dois prolongou-se até chegarem ao pequeno hotel onde iriam passar a noite.

No hotel, o quarto era simples: duas camas individuais encostadas às paredes opostas, uma pequena secretária com um candeeiro e cortinas espessas que abafavam a luz do entardecer. Óscar pousou as chaves do carro sobre a mesa e sentou-se na beira da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça baixa, como se carregasse um peso invisível.

Benedita, que até então se limitara a observar, tirou os sapatos e sentou-se na sua própria cama. Ficou a olhar para ele durante alguns segundos, hesitando, até que, num tom quase tímido, perguntou:

— Quem é… a Laura?

Óscar levantou o olhar, surpreso pelo atrevimento dela, mas respondeu com aparente desinteresse:

— Não é ninguém importante.

Ela continuou a fitá-lo, os olhos semicerrados, desconfiada. Ele percebeu e soltou um suspiro cansado.

— É… só a minha mulher.

Benedita endireitou-se na cama, apanhada de surpresa.

— A tua mulher? — repetiu, como se confirmasse ter ouvido bem. — E porque é que não queres falar com ela?

Óscar ficou em silêncio por alguns instantes, como se medisse as palavras. Depois, recostou-se na cama, cruzou os braços atrás da cabeça e olhou para o teto.

— Porque… já falámos tudo. Já não há mais nada para dizer.

As últimas palavras ficaram a pairar no ar, carregadas de um peso que Benedita não soube interpretar, mas que lhe deu a sensação de que, tal como aquelas ruínas que tinham visitado, havia histórias e feridas que ele não estava pronto para expor.


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!