Saíram de Rocamadour
na manhã seguinte, quando o ar fresco ainda cheirava a pedra molhada e a
lareiras apagadas durante a noite. O céu começava a clarear por trás das
colinas, e a estrada estendia-se à frente como um fio cinzento serpenteando por
entre campos verdes e bosques húmidos.
No carro, Benedita
mantinha-se calada, com o queixo apoiado na mão e os olhos fixos na paisagem
que desfilava para trás. Óscar, alheio ao seu silêncio, cantarolava com voz
rouca clássicos de rock de outras décadas — músicas que pareciam trazer-lhe
algum tipo de paz e que ela mal conhecia.
O tempo passava,
marcado apenas pelo ronronar constante do motor. Até que, sem se virar para
ele, ela perguntou baixinho:
— Tu… vais mesmo
levar-me de volta?
Óscar não hesitou:
— Vou. Tenho de te
levar. Não posso, em consciência, deixar-te por aí… sabendo que vão continuar à
tua procura. Ou que aquele pior cenário que imaginaste… se torne real.
Ela desviou os olhos
para o colo, apertando as mãos, sentindo um nó na garganta. Ficou alguns
segundos em silêncio, antes de, com a voz magoada e incerta, arriscar:
— E… o que é que eu
vou fazer depois?
Óscar lançou-lhe um
olhar rápido e sério. O rosto endureceu, e a sua expressão tornou-se a de um
homem que fala apenas quando tem a certeza absoluta do que diz. A voz saiu
grave, carregada de uma promessa que não precisava de floreados:
— Até aqui… estiveste
sozinha. Mas agora… tens um amigo.
As palavras caíram no
interior do carro como um peso silencioso, afastando qualquer som que não fosse
o leve rolar dos pneus no asfalto. Benedita sentiu um calor estranho no peito,
uma mistura de alívio e vulnerabilidade. Virou o rosto para a janela, não
querendo que ele visse os olhos marejados.
Óscar não disse mais
nada. Apenas aumentou ligeiramente o volume da música e continuou a conduzir,
como se aquela promessa fosse suficiente — e, para ela, naquele momento, talvez
fosse mesmo.
A estrada seguiu-se
entre colinas suaves e aldeias adormecidas. Perto do meio-dia, Óscar saiu da
rota principal e seguiu por um caminho mais estreito, ladeado por vinhas e campos
dourados. O destino era uma pequena povoação cujo nome Benedita nem conseguiu
ler no letreiro, mas que parecia saída de um postal antigo.
No centro, uma praça
de pedra irregular guardava um restaurante de fachada envelhecida, com toldos
vermelhos gastos pelo sol. Lá dentro, o ar cheirava a lareira apagada, vinho
tinto e pão acabado de cozer. A dona — uma mulher baixa e de olhos vivos —
apresentou-lhes pratos da região: magret
de pato grelhado com molho de pimenta verde, acompanhado de batatas
salteadas em gordura de pato, e truta
fresca dos Pirenéus grelhada com amêndoas e manteiga, servida com
legumes cozidos no vapor.
Benedita nunca tinha
provado nada semelhante; o sabor da truta era delicado e aromático, enquanto o
pato tinha uma intensidade que se prolongava no paladar, equilibrada pelo toque
fresco do molho. O vinho tinto local, servido em copos simples, aquecia-lhes o
corpo e o espírito.
Comeram em relativa
descontração, trocando pequenos comentários sobre o sabor da comida e as
pessoas à volta, que pareciam olhar para eles com curiosidade. Depois de um
café forte e de agradecerem à dona, voltaram à estrada.
O carro rolava
suavemente quando, de repente, o painel central iluminou-se com um toque agudo.
Um nome apareceu no ecrã: Laura.
Benedita, surpreendida,
olhou de relance para Óscar. Ele manteve os olhos na estrada, mas a sua
expressão mudou — uma tensão súbita na mandíbula, um endurecer dos traços. Com
um gesto seco, carregou no botão para recusar a chamada.
O telemóvel, esquecido
no bolso, vibrou mais uma vez. Desta vez, Óscar tirou-o, olhou para o ecrã com
um ar que misturava irritação e fadiga, e desligou-o por completo, empurrando-o
de volta para o casaco sem dizer uma única palavra.
O resto da viagem até
Oradour-sur-Glane fez-se num silêncio que não era desconfortável, mas denso —
como se cada quilómetro fosse cimentando algo que não se dizia.
Chegaram a Oradour-sur-Glane a meio da tarde. A
aldeia permanecia como um fantasma preservado no tempo, cenário de um dos mais
atrozes massacres da Segunda Guerra Mundial. A 10 de junho de 1944, tropas da
Waffen-SS cercaram a aldeia, reuniram os homens e fuzilaram-nos nas ruas e
celeiros. As mulheres e crianças foram trancadas na igreja, que foi incendiada.
No final do dia, 642 pessoas estavam mortas, e o lugar foi deixado em ruínas
como advertência e terror.
Agora, décadas depois,
as ruas permaneciam como naquele dia: fachadas queimadas, janelas vazias,
veículos enferrujados parados no meio das praças, lojas com letreiros
desbotados pelo tempo, como se o dia tivesse ficado suspenso. O vento passava
entre as paredes negras pelo fogo, trazendo um sussurro que parecia carregar o
eco distante de gritos e silêncio.
Benedita caminhava
devagar, absorvendo a gravidade do lugar. Aquela aldeia destruída falava-lhe de
perda e violência, de sonhos desfeitos sem aviso — coisas que ela compreendia
demasiado bem. A devastação material ecoava na sua própria sensação de vida
interrompida e infância roubada.
Óscar, por sua vez,
movia-se com passos firmes mas olhar distante. Para ela, era impossível
adivinhar o que se passava na sua cabeça, mas havia algo na rigidez dos ombros
e no silêncio obstinado que denunciava que aquelas ruínas mexiam com algo nele
também. A diferença era que ele mantinha as portas fechadas, como se a sua própria
aldeia destruída estivesse escondida a sete chaves.
No miraCávado, olharam
juntos para o panorama: um vale de silêncio e pedra que nunca fora
reconstruído. O céu começava a ganhar tons de cobre e laranja, mas a beleza da
luz não conseguia suavizar a memória do que ali acontecera. Quando se
afastaram, o silêncio entre os dois prolongou-se até chegarem ao pequeno hotel
onde iriam passar a noite.
No hotel, o quarto era
simples: duas camas individuais encostadas às paredes opostas, uma pequena
secretária com um candeeiro e cortinas espessas que abafavam a luz do
entardecer. Óscar pousou as chaves do carro sobre a mesa e sentou-se na beira
da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça baixa, como se carregasse
um peso invisível.
Benedita, que até então
se limitara a observar, tirou os sapatos e sentou-se na sua própria cama. Ficou
a olhar para ele durante alguns segundos, hesitando, até que, num tom quase
tímido, perguntou:
— Quem é… a Laura?
Óscar levantou o
olhar, surpreso pelo atrevimento dela, mas respondeu com aparente desinteresse:
— Não é ninguém
importante.
Ela continuou a
fitá-lo, os olhos semicerrados, desconfiada. Ele percebeu e soltou um suspiro
cansado.
— É… só a minha
mulher.
Benedita endireitou-se
na cama, apanhada de surpresa.
— A tua mulher? —
repetiu, como se confirmasse ter ouvido bem. — E porque é que não queres falar
com ela?
Óscar ficou em
silêncio por alguns instantes, como se medisse as palavras. Depois, recostou-se
na cama, cruzou os braços atrás da cabeça e olhou para o teto.
— Porque… já falámos
tudo. Já não há mais nada para dizer.
As últimas palavras
ficaram a pairar no ar, carregadas de um peso que Benedita não soube
interpretar, mas que lhe deu a sensação de que, tal como aquelas ruínas que
tinham visitado, havia histórias e feridas que ele não estava pronto para
expor.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!