sábado, 13 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 19

 


O final de tarde caía sobre Braga tingindo o céu de tons alaranjados e lilases quando Óscar guiou o Corvette para fora da autoestrada e entrou numa zona industrial. As ruas eram largas, ladeadas por armazéns e oficinas, mas ali, no meio de construções utilitárias, erguiam-se portões altos e um edifício de escritórios de linhas sólidas, com amplas janelas espelhadas. No terreno ao lado, viam-se pilhas organizadas de materiais de construção: vigas de aço, blocos de cimento, paletes de tijolos, tudo arrumado com precisão quase militar. Vários camiões e gruas repousavam, imóveis, como animais de carga depois de um dia longo.

Óscar estacionou junto à entrada principal, desligou o motor e ficou alguns segundos em silêncio, como se organizasse pensamentos.

— Preciso de falar com alguém aqui. Não vai demorar. — disse, já a abrir a porta.

Benedita inclinou-se para a frente, tentando espreitar para além do vidro.

— Posso ir contigo? — perguntou, a curiosidade evidente.

Ele hesitou um instante, mas abanou a cabeça.

— Melhor não. Se entrares comigo vão fazer perguntas. E eu não quero ter de responder a nenhuma… pelo menos não aqui. Hoje não. — o tom era firme, mas sem frieza.

Ela acenou devagar, resignada, enquanto ele saía e se encaminhava para a porta de vidro. Foi então que o olhar dela subiu e leu, em letras grandes e imponentes, a placa metálica por cima da entrada:

CONSTRUÇÕES CAMPOS, LDA.

Benedita ergueu as sobrancelhas, sentindo uma pontada de revelação.

Deve ser a empresa dele… pensou, mordendo o lábio.

A partir desse momento, cada detalhe ganhou outro peso. Observou a fachada impecável, os vidros limpos sem uma mancha, as linhas de luzes interiores acesas com uniformidade. Notou o vaivém metódico de dois homens que carregavam ferramentas para uma carrinha. Reparou na pintura recente dos portões, na organização do parque, no alinhamento perfeito dos veículos pesados, como se cada centímetro daquele espaço fosse um reflexo da pessoa que o comandava.

Óscar entrou no edifício com passo seguro e desapareceu lá dentro. Benedita recostou-se no banco, mas manteve os olhos fixos na entrada, como se quisesse adivinhar que tipo de conversas estariam a acontecer atrás daquela porta.

Óscar regressou ao carro pouco depois, não mais de dez minutos depois de ter desaparecido por detrás das portas espelhadas. A expressão era neutra, controlada, mas havia no olhar um leve endurecer, como quem acabara de resolver um assunto que precisava de ficar despachado.

— Vamos. — disse apenas, encaixando a chave na ignição.

A viagem prosseguiu em silêncio por uns minutos até Óscar entrar num parque de supermercado.

— Vamos buscar qualquer coisa rápida para o jantar. — comentou, saindo.

No corredor refrigerado, escolheram uma pizza pronta para o forno e algumas bebidas. Benedita foi acrescentando ao cesto uns pacotes de bolachas e um queijo curado, olhando para ele com um sorriso maroto.

— Só para garantir que não morremos de fome no meio da noite.

Pouco depois estavam de novo na estrada. O Corvette serpenteava por uma descida ladeada de um lado e do outro por pequenas quintas, cada uma com a sua vivenda isolada e jardins cuidados. À esquerda, para lá dos muros e vinhas, a serra erguia-se com o pinhal denso a tingir-se das sombras do fim de tarde. À direita, o rio Cávado estendia-se ao longe, um traço de prata líquido a reflectir o último brilho do sol.

Quando se aproximaram de uma vivenda de dois andares, com fachada clara e linhas modernas, Óscar tirou um pequeno comando do porta-luvas. Um clique, e o portão automático começou a abrir-se com um zumbido suave, acompanhado pela porta da garagem de dois lugares.

O Corvette entrou, e assim que o motor foi desligado, o portão e a porta começaram a fechar-se sozinhos, isolando-os do mundo exterior. Ao lado, imóvel e silencioso, estava um Tesla, ocupando o outro lugar.

Óscar fitou-o por um instante, abanou a cabeça e murmurou, mais para si do que para ela:

— Parece que ela seguiu a minha sugestão… Será que não me consigo ver livre desta torradeira?

Benedita não conseguiu conter a gargalhada, inclinando-se para o lado e rindo com gosto.

— Uma torradeira de luxo, pelo menos!

— Continua a ser uma torradeira… — retorquiu ele, mas o canto da boca denunciava um sorriso.

Retiraram a pouca bagagem que traziam e saíram da garagem pela porta lateral, a noite já a instalar-se sobre o vale.

A porta lateral da garagem era estreita, apenas espaço para passar uma pessoa de cada vez. Óscar ia à frente, a mão na maçaneta, empurrando-a para o exterior.

Mal deu dois passos, parou. Não foi um gesto hesitante, mas sim abrupto, firme, como se tivesse embatido contra algo invisível. Benedita, que vinha logo atrás, travou para não esbarrar nele, erguendo o olhar na tentativa de perceber o que o tinha feito estacar daquela forma.

Foi então que a ouviu.

Como surgida do nada, estava uma mulher diante dele. Cabelos desalinhados, rosto marcado por lágrimas recentes, a respiração rápida e irregular. Falava com uma voz meio chorosa, que oscilava entre a súplica e a urgência, lançando palavras apressadas que se atropelavam umas às outras.

— Onde é que tu estavas? — a frase saiu entrecortada por soluços. — Meu Deus… pensei… pensei que… — respirou fundo, mas não conseguiu completar. — Estás bem? Diz-me que estás bem! Por favor, fala comigo! — As mãos tremiam, os olhos vermelhos procuravam o dele como se nele estivesse a única âncora num mar revolto.

Óscar permaneceu imóvel. As costas largas tornavam-se agora uma muralha, bloqueando completamente a visão e a passagem de Benedita. Ele não disse nada, não se moveu. Parecia uma parede viva, sólida, impenetrável.

Benedita, num silêncio tenso, percebeu que aquele homem que tantas vezes se tinha lançado estrada fora sem medo, agora estava simplesmente estático, como se todas as respostas lhe tivessem sido arrancadas. E, no ar, entre os soluços dela e o silêncio dele, pairava algo denso, pesado… o início de um momento que ambos, de formas diferentes, sabiam que não podiam evitar.

Óscar não se moveu logo. Respirou fundo, como quem procura no ar a força para manter um equilíbrio frágil, e respondeu num tom absolutamente calmo, mas carregado de um cansaço evidente:

— Laura… conduzi quase mil quilómetros hoje. Estou cansado. Falamos amanhã.

Benedita, atrás dele, percebeu de imediato — Laura. Era esse o nome da mulher dele. Nunca a tinha visto, mas agora, pelo timbre aflito e pela postura, já conseguia traçar mentalmente a figura que imaginara tantas vezes.

Laura tentou aproximar-se, mas Óscar deu um passo atrás, quase esbarrando em Benedita. Levantou as mãos num gesto firme, travando-a antes que pudesse entrar no seu espaço.

— Não agora. — acrescentou ele, e nesse instante Laura quebrou, soltando um choro mais intenso, quase convulsivo.

Óscar então deu um passo à frente, desocupando a porta, e fez um sinal breve a Benedita para que saísse também. Ela obedeceu, passando para o exterior.

Foi nesse momento que Laura a viu. Primeiro, apenas surpresa — um olhar fixo, largo, por entre as lágrimas. Mas o espanto rapidamente se transformou numa palidez súbita, como se todo o sangue lhe tivesse fugido do rosto. E, depois, quase sem transição, veio o rubor da fúria, subindo-lhe pelas faces até explodir num grito:

— Óscar! É esta a tua vingança?!

A acusação ecoou no espaço, cortando o ar.

Óscar manteve-se absolutamente impassível, a postura firme, os olhos fixos nela. Quando falou, a voz saiu firme e calma, um contraste absoluto com a tempestade que ela emanava:

— Antes que faças assunções e digas algo que não vais poder desdizer… esta é a Benedita. Tem dezasseis anos. É minha convidada. E espero que seja tratada como tal.

O silêncio que se seguiu não foi apenas ausência de som — foi um peso. Laura ficou ali, respirando rápido, sem saber se avançava ou recuava. E Benedita, imóvel ao lado dele, percebia que estava a presenciar um daqueles momentos em que as palavras certas ou erradas podiam mudar tudo.

Laura ficou a olhar para Benedita, a respiração ofegante, o peito a subir e descer num ritmo irregular. Soluçava ainda, mas via-se o esforço quase físico para se recompor. Os segundos arrastaram-se até que, finalmente, conseguiu falar de novo para Óscar:

— Onde estiveste? — a voz tremia, mas havia ali uma ânsia quase infantil por resposta.

— Na Alemanha. — respondeu ele, seco, como quem corta uma conversa antes de começar.

Avançou, fazendo sinal a Benedita para o seguir. Laura abriu a boca para voltar a falar, mas ele, antes que qualquer palavra lhe saísse, lançou-lhe por cima do ombro, com uma nota de desdém que soou como um murro surdo:

— Vi a treta do Tesla na garagem. Seguiste o meu conselho e pediste ao namorado para o ir buscar ao stand?

Foi como se lhe tivesse dado uma estalada. Laura vacilou, os joelhos cederam-lhe por um instante, mas conseguiu recompor-se. Tentou ignorar o remoque e acelerou o passo para o acompanhar, notando que ele se dirigia para o lado da casa, na direção de uma porta lateral.

— Uma equipa da tua empresa esteve cá… — começou, a voz carregada de tensão. — Fecharam a cave da casa e não deixaram chaves.

Óscar tirou um molho de chaves do bolso, o metal tilintando na sua mão.

— O que estiveram ali a fazer? — insistiu ela, quase a correr para o alcançar.

— A construir a minha paz. — respondeu, sem olhar para trás.

Chegou à porta com Benedita quase colada a ele, abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. Seguiu logo atrás, e, sem hesitar, fechou a porta na cara de Laura.

Ela ficou ali, imóvel, durante longos minutos. Apenas o som da sua respiração preenchia o ar, enquanto olhava fixamente para a madeira, como se pudesse obrigá-la a abrir-se com a força do pensamento. No fim, cedeu. Retirou-se devagar, derrotada e chorosa, murmurando apenas para si, como um último fio de esperança:

— Pelo menos voltou…


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!