O final de tarde caía
sobre Braga tingindo o céu de tons alaranjados e lilases quando Óscar guiou o
Corvette para fora da autoestrada e entrou numa zona industrial. As ruas eram
largas, ladeadas por armazéns e oficinas, mas ali, no meio de construções
utilitárias, erguiam-se portões altos e um edifício de escritórios de linhas
sólidas, com amplas janelas espelhadas. No terreno ao lado, viam-se pilhas
organizadas de materiais de construção: vigas de aço, blocos de cimento,
paletes de tijolos, tudo arrumado com precisão quase militar. Vários camiões e
gruas repousavam, imóveis, como animais de carga depois de um dia longo.
Óscar estacionou junto
à entrada principal, desligou o motor e ficou alguns segundos em silêncio, como
se organizasse pensamentos.
— Preciso de falar com
alguém aqui. Não vai demorar. — disse, já a abrir a porta.
Benedita inclinou-se
para a frente, tentando espreitar para além do vidro.
— Posso ir contigo? —
perguntou, a curiosidade evidente.
Ele hesitou um
instante, mas abanou a cabeça.
— Melhor não. Se
entrares comigo vão fazer perguntas. E eu não quero ter de responder a nenhuma…
pelo menos não aqui. Hoje não. — o tom era firme, mas sem frieza.
Ela acenou devagar,
resignada, enquanto ele saía e se encaminhava para a porta de vidro. Foi então
que o olhar dela subiu e leu, em letras grandes e imponentes, a placa metálica
por cima da entrada:
CONSTRUÇÕES CAMPOS, LDA.
Benedita ergueu as
sobrancelhas, sentindo uma pontada de revelação.
Deve ser a empresa dele… pensou,
mordendo o lábio.
A partir desse
momento, cada detalhe ganhou outro peso. Observou a fachada impecável, os
vidros limpos sem uma mancha, as linhas de luzes interiores acesas com
uniformidade. Notou o vaivém metódico de dois homens que carregavam ferramentas
para uma carrinha. Reparou na pintura recente dos portões, na organização do
parque, no alinhamento perfeito dos veículos pesados, como se cada centímetro
daquele espaço fosse um reflexo da pessoa que o comandava.
Óscar entrou no
edifício com passo seguro e desapareceu lá dentro. Benedita recostou-se no
banco, mas manteve os olhos fixos na entrada, como se quisesse adivinhar que
tipo de conversas estariam a acontecer atrás daquela porta.
Óscar regressou ao
carro pouco depois, não mais de dez minutos depois de ter desaparecido por
detrás das portas espelhadas. A expressão era neutra, controlada, mas havia no
olhar um leve endurecer, como quem acabara de resolver um assunto que precisava
de ficar despachado.
— Vamos. — disse
apenas, encaixando a chave na ignição.
A viagem prosseguiu em
silêncio por uns minutos até Óscar entrar num parque de supermercado.
— Vamos buscar
qualquer coisa rápida para o jantar. — comentou, saindo.
No corredor
refrigerado, escolheram uma pizza pronta para o forno e algumas bebidas.
Benedita foi acrescentando ao cesto uns pacotes de bolachas e um queijo curado,
olhando para ele com um sorriso maroto.
— Só para garantir que
não morremos de fome no meio da noite.
Pouco depois estavam
de novo na estrada. O Corvette serpenteava por uma descida ladeada de um lado e
do outro por pequenas quintas, cada uma com a sua vivenda isolada e jardins
cuidados. À esquerda, para lá dos muros e vinhas, a serra erguia-se com o
pinhal denso a tingir-se das sombras do fim de tarde. À direita, o rio Cávado
estendia-se ao longe, um traço de prata líquido a reflectir o último brilho do
sol.
Quando se aproximaram
de uma vivenda de dois andares, com fachada clara e linhas modernas, Óscar
tirou um pequeno comando do porta-luvas. Um clique, e o portão automático
começou a abrir-se com um zumbido suave, acompanhado pela porta da garagem de
dois lugares.
O Corvette entrou, e
assim que o motor foi desligado, o portão e a porta começaram a fechar-se
sozinhos, isolando-os do mundo exterior. Ao lado, imóvel e silencioso, estava
um Tesla, ocupando o outro lugar.
Óscar fitou-o por um
instante, abanou a cabeça e murmurou, mais para si do que para ela:
— Parece que ela
seguiu a minha sugestão… Será que não me consigo ver livre desta torradeira?
Benedita não conseguiu
conter a gargalhada, inclinando-se para o lado e rindo com gosto.
— Uma torradeira de
luxo, pelo menos!
— Continua a ser uma
torradeira… — retorquiu ele, mas o canto da boca denunciava um sorriso.
Retiraram a pouca
bagagem que traziam e saíram da garagem pela porta lateral, a noite já a
instalar-se sobre o vale.
A porta lateral da
garagem era estreita, apenas espaço para passar uma pessoa de cada vez. Óscar
ia à frente, a mão na maçaneta, empurrando-a para o exterior.
Mal deu dois passos,
parou. Não foi um gesto hesitante, mas sim abrupto, firme, como se tivesse
embatido contra algo invisível. Benedita, que vinha logo atrás, travou para não
esbarrar nele, erguendo o olhar na tentativa de perceber o que o tinha feito
estacar daquela forma.
Foi então que a ouviu.
Como surgida do nada,
estava uma mulher diante dele. Cabelos desalinhados, rosto marcado por lágrimas
recentes, a respiração rápida e irregular. Falava com uma voz meio chorosa, que
oscilava entre a súplica e a urgência, lançando palavras apressadas que se
atropelavam umas às outras.
— Onde é que tu
estavas? — a frase saiu entrecortada por soluços. — Meu Deus… pensei… pensei
que… — respirou fundo, mas não conseguiu completar. — Estás bem? Diz-me que
estás bem! Por favor, fala comigo! — As mãos tremiam, os olhos vermelhos
procuravam o dele como se nele estivesse a única âncora num mar revolto.
Óscar permaneceu
imóvel. As costas largas tornavam-se agora uma muralha, bloqueando
completamente a visão e a passagem de Benedita. Ele não disse nada, não se
moveu. Parecia uma parede viva, sólida, impenetrável.
Benedita, num silêncio
tenso, percebeu que aquele homem que tantas vezes se tinha lançado estrada fora
sem medo, agora estava simplesmente estático, como se todas as respostas lhe
tivessem sido arrancadas. E, no ar, entre os soluços dela e o silêncio dele,
pairava algo denso, pesado… o início de um momento que ambos, de formas
diferentes, sabiam que não podiam evitar.
Óscar não se moveu
logo. Respirou fundo, como quem procura no ar a força para manter um equilíbrio
frágil, e respondeu num tom absolutamente calmo, mas carregado de um cansaço
evidente:
— Laura… conduzi quase
mil quilómetros hoje. Estou cansado. Falamos amanhã.
Benedita, atrás dele,
percebeu de imediato — Laura. Era esse o nome da mulher dele. Nunca a tinha
visto, mas agora, pelo timbre aflito e pela postura, já conseguia traçar
mentalmente a figura que imaginara tantas vezes.
Laura tentou
aproximar-se, mas Óscar deu um passo atrás, quase esbarrando em Benedita.
Levantou as mãos num gesto firme, travando-a antes que pudesse entrar no seu
espaço.
— Não agora. —
acrescentou ele, e nesse instante Laura quebrou, soltando um choro mais
intenso, quase convulsivo.
Óscar então deu um
passo à frente, desocupando a porta, e fez um sinal breve a Benedita para que
saísse também. Ela obedeceu, passando para o exterior.
Foi nesse momento que
Laura a viu. Primeiro, apenas surpresa — um olhar fixo, largo, por entre as
lágrimas. Mas o espanto rapidamente se transformou numa palidez súbita, como se
todo o sangue lhe tivesse fugido do rosto. E, depois, quase sem transição, veio
o rubor da fúria, subindo-lhe pelas faces até explodir num grito:
— Óscar! É esta a tua
vingança?!
A acusação ecoou no
espaço, cortando o ar.
Óscar manteve-se absolutamente
impassível, a postura firme, os olhos fixos nela. Quando falou, a voz saiu
firme e calma, um contraste absoluto com a tempestade que ela emanava:
— Antes que faças
assunções e digas algo que não vais poder desdizer… esta é a Benedita. Tem
dezasseis anos. É minha convidada. E espero que seja tratada como tal.
O silêncio que se
seguiu não foi apenas ausência de som — foi um peso. Laura ficou ali,
respirando rápido, sem saber se avançava ou recuava. E Benedita, imóvel ao lado
dele, percebia que estava a presenciar um daqueles momentos em que as palavras
certas ou erradas podiam mudar tudo.
Laura ficou a olhar
para Benedita, a respiração ofegante, o peito a subir e descer num ritmo
irregular. Soluçava ainda, mas via-se o esforço quase físico para se recompor.
Os segundos arrastaram-se até que, finalmente, conseguiu falar de novo para
Óscar:
— Onde estiveste? — a
voz tremia, mas havia ali uma ânsia quase infantil por resposta.
— Na Alemanha. —
respondeu ele, seco, como quem corta uma conversa antes de começar.
Avançou, fazendo sinal
a Benedita para o seguir. Laura abriu a boca para voltar a falar, mas ele,
antes que qualquer palavra lhe saísse, lançou-lhe por cima do ombro, com uma
nota de desdém que soou como um murro surdo:
— Vi a treta do Tesla
na garagem. Seguiste o meu conselho e pediste ao namorado para o ir buscar ao
stand?
Foi como se lhe
tivesse dado uma estalada. Laura vacilou, os joelhos cederam-lhe por um
instante, mas conseguiu recompor-se. Tentou ignorar o remoque e acelerou o
passo para o acompanhar, notando que ele se dirigia para o lado da casa, na
direção de uma porta lateral.
— Uma equipa da tua
empresa esteve cá… — começou, a voz carregada de tensão. — Fecharam a cave da
casa e não deixaram chaves.
Óscar tirou um molho de
chaves do bolso, o metal tilintando na sua mão.
— O que estiveram ali
a fazer? — insistiu ela, quase a correr para o alcançar.
— A construir a minha
paz. — respondeu, sem olhar para trás.
Chegou à porta com
Benedita quase colada a ele, abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. Seguiu logo
atrás, e, sem hesitar, fechou a porta na cara de Laura.
Ela ficou ali, imóvel,
durante longos minutos. Apenas o som da sua respiração preenchia o ar, enquanto
olhava fixamente para a madeira, como se pudesse obrigá-la a abrir-se com a
força do pensamento. No fim, cedeu. Retirou-se devagar, derrotada e chorosa,
murmurando apenas para si, como um último fio de esperança:
— Pelo menos voltou…
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!