Foram precisos alguns
dias até Clara encontrar o momento certo para falar com a mãe. Ainda se
lembrava bem daquela noite — Laura mais silenciosa do que o habitual, um ar
estranho de vulnerabilidade nos olhos, e o próprio ambiente da casa a parecer
ter mudado ligeiramente.
Estavam agora sozinhas
na cozinha, Clara a beber um chá e Laura a arrumar as últimas louças do jantar.
Clara apoiou-se no balcão e quebrou o silêncio com cuidado:
— Naquela noite… eu
percebi que houve qualquer coisa. Tu estavas diferente. O que se passou?
Laura parou por
instantes, as costas viradas para a filha, e suspirou fundo antes de se virar.
— Falei com o teu pai.
Pela primeira vez em muito tempo, falei mesmo. Disse-lhe o que nunca tinha
conseguido.
Clara endireitou-se na
cadeira.
— E como é que ele
reagiu?
— Ficou em silêncio…
mas não me virou costas. Ouviu-me. — Laura hesitou, quase a medo. — Não sei se
foi aceitação ou apenas respeito. Mas… foi mais do que eu esperava.
Clara baixou os olhos,
pensativa, e disse num tom calmo:
— É estranho, não é?
Parece que todos nós tivemos de chegar ao limite para começarmos finalmente a
falar a sério.
Laura assentiu.
— E nesse limite,
percebi uma coisa. — Olhou a filha nos olhos. — Todas as desculpas que inventei
para mim própria… caíram por terra. Eu não reconhecia a mulher que me tornei.
Nunca pensei ser capaz de… fazer o que fiz. Mas fiz. E só restava olhar o estrago
de frente.
Clara manteve-se em
silêncio durante alguns segundos, antes de responder:
— Eu também percebi
isso, mãe. Que nem sempre somos quem pensávamos ser. Mas também acho que é aí
que começa a mudança… quando finalmente conseguimos admitir quem fomos.
As duas trocaram um
olhar silencioso, pesado mas cheio de compreensão. Era como se, pela primeira
vez, ambas reconhecessem a profundidade das suas falhas sem máscaras nem
justificações.
Laura deixou escapar
um suspiro que se transformou quase num sorriso cansado.
— No meio disto tudo,
sabes o que mais me ficou? Que agora vou ter de trocar o Tesla.
Clara arqueou as
sobrancelhas, surpreendida, e não conteve uma gargalhada curta.
— Trocar o Tesla?!
— Sim… — Laura
encolheu os ombros, irónica. — Parece que aquele carro virou símbolo de tudo o
que correu mal. Mas não faço ideia do que ir buscar…
Clara abanou a cabeça,
divertida, e respondeu:
— Então pergunta à
Benedita. Desde aquela viagem com o pai que ficou fanática por carros. Aposto
que te arranja logo uma lista inteira de sugestões fixes.
Laura riu-se
finalmente, de forma leve, quase libertadora. E por um instante, a sombra que
pairava entre ambas pareceu menos densa, como se aquele pequeno humor fosse
também um gesto de reconciliação.
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