Óscar tomou banho
primeiro. Quando saiu da casa de banho, o cabelo ainda húmido e a toalha
enrolada ao pescoço, vestia apenas uma t-shirt escura e calças confortáveis.
Sentou-se na beira da cama com o telemóvel na mão, o ecrã a brilhar num tom
frio sobre o seu rosto carregado. Os dedos moviam-se lentamente, escrevendo
algo que parecia pesar-lhe mais do que devia.
Pouco depois, Benedita
regressou do duche, com o vapor ainda preso aos fios de cabelo que gotejavam
sobre a toalha branca. Usava apenas a t-shirt enorme que lhe servia de vestido,
caindo-lhe solta sobre os ombros e quase a meio das coxas. Sentou-se na sua
cama, a poucos passos dele, pegando no secador. Enquanto o barulho quente
preenchia o quarto, ela observava-o pelo canto do olho — aquele silêncio
concentrado, o franzir quase imperceptível da sobrancelha, o telemóvel pousado
de repente no colo como se a mensagem estivesse concluída, mas ainda por
enviar.
Quando terminou de
secar o cabelo e se preparava para se deitar, Óscar respirou fundo, endireitou-se
e fez-lhe sinal com a mão para que se aproximasse. Ela hesitou um instante, mas
acabou por se sentar na sua cama, de frente para ele.
— Mais tarde ou mais
cedo… — começou, a voz baixa e firme — vais começar a tirar conclusões. E antes
que comeces a tirar as erradas… quero contar-te o que aconteceu.
Os olhos dela
fixaram-se nos dele, atentos, enquanto ele ajeitava a posição, como quem
procura a forma mais suportável de dizer algo insuportável.
— Meses antes da
operação… o meu corpo começou a dar sinais de que algo não estava bem — disse,
pausadamente. — Eu e a Laura… tínhamos uma vida íntima saudável. Frequente.
Ela… ainda me atrai imensamente.
Fez uma pausa, os
olhos perdidos num ponto indefinido. Depois, num murmúrio quase para si
próprio, completou:
— Aparentemente… não
só a mim.
O silêncio que se
seguiu pareceu afundar-se no quarto. Óscar pigarreou, retomando o fio de
pensamento.
— Uns meses antes da
operação… apesar da vontade de estar com ela… o corpo não correspondia.
Ele ergueu o olhar,
com um esboço de desculpa na expressão.
— Desculpa estar a
contar-te estes pormenores… mas são importantes. Incontornáveis.
Benedita inclinou a
cabeça, com um pequeno sorriso de compreensão.
— Não faz mal… já sei
acerca das abelhinhas e dos passarinhos.
O canto da boca de
Óscar subiu, breve e quase imperceptível, mas genuíno.
Óscar apoiou os
cotovelos nos joelhos, olhando para as próprias mãos como se as palavras que
vinha dizer estivessem gravadas ali.
— Ao princípio… não
dei grande importância. — A voz saiu num tom resignado. — Já estava numa idade
em que as coisas não são como na juventude… e pensei que era só isso. Mas… a
persistência dos sintomas começou a preocupar-me.
Endireitou-se um
pouco, respirando fundo.
— O que mais me
custava… não era a minha saúde. Era saber que não estava a conseguir estar com
a minha mulher como ela merecia.
Os olhos de Benedita
mantinham-se fixos nele, sérios, absorvendo cada palavra.
— Procurei médicos…
que me encaminharam para especialistas… e depois vieram os exames. Muitos exames.
— Fez uma pausa curta, como se ainda conseguisse sentir o frio metálico das
máquinas. — Foi aí que descobriram os problemas cardíacos.
O silêncio instalou-se
por uns segundos. Óscar passou uma mão pelo rosto e, quando voltou a falar, o
tom mudou — menos clínico, mais carregado de memórias.
— Eu… vim de uma
família pobre, do Norte. Nada me foi dado. — Um breve sorriso amargo surgiu-lhe
nos lábios. — Trabalhei como um cão. Comecei por baixo… e fui subindo até
conseguir fundar a minha própria empresa de construção.
Levantou o olhar, como
se visse, no tecto do quarto, as décadas que ficaram para trás.
— Não era nada de
extraordinário… mas dava-nos uma vida acima da média. E, apesar de todas as
exigências, dos imprevistos, das obras que davam dores de cabeça… nunca deixei
de estar presente para a minha família. Nunca.
A voz quebrou
ligeiramente.
— Tudo o que fiz…
todas as concessões… foram sempre a pensar nelas. Na Laura. Na minha filha.
Fechou os olhos por um
momento, deixando que as palavras assentassem.
— Mas… o preço veio. —
Inspirou devagar, sentindo o peso daquela verdade. — O stress, as noites mal
dormidas, as preocupações constantes… foram o que me trouxe aqui. Mesmo
parecendo estar em forma para a minha idade… o coração já estava cansado.
Benedita manteve-se
calada, com um respeito instintivo por aquele momento, quase como se tivesse
medo de que um som seu pudesse quebrar algo frágil que ele estava finalmente a
deixar sair.
Óscar manteve o olhar
baixo, como se estivesse a puxar os fios da memória com cuidado.
— A Laura… — começou,
a voz mais suave. — A minha mulher… esteve sempre ao meu lado. Em todas as
etapas. Sempre compreensiva, sempre a acompanhar-me… nunca me deixou sentir que
estava sozinho nisto.
Passou a mão pela
nuca, um gesto que parecia tentar aliviar o peso que trazia nos ombros.
— Por fim, marcaram a
operação. Não era algo imediato, mas… prometia, em primeiro lugar, que eu
continuaria a viver. — Fez uma pausa curta, olhando-a nos olhos, como para
sublinhar a importância dessas palavras. — E… abria também a porta a que o
corpo voltasse a responder.
O canto da boca
ergueu-se num sorriso breve, quase nostálgico.
— A operação tinha
riscos. Mas… eu estava feliz por os correr.
Respirou fundo antes
de continuar.
— Correu bem. Foi há
seis meses. Desde então… a vida tem sido calma. Retomei o trabalho há três
meses, mas… de forma suave, cautelosa. Só voltei porque já estava farto de
olhar para as paredes.
Houve um brilho quase
imperceptível no olhar, como quem se recorda de pequenas vitórias.
— Os médicos davam-me
os parabéns pela recuperação… e, sinceramente, eu sentia-me muito melhor do que
antes. Talvez até por causa dos cuidados redobrados que passei a ter.
A expressão fechou-se
de novo, como se uma sombra lhe atravessasse o rosto.
— E… isso leva-nos ao
domingo passado.
***
O domingo começara
como tantos outros. Óscar estava no campo de golfe, acompanhado por dois amigos
habituais. O relvado estava impecável, o ar fresco, e o som seco das tacadas
ecoava de forma familiar. Trocaram piadas, comentaram lances, falaram de
banalidades. Mas a meio da manhã, uma nuvem escura avançou rápido e, sem aviso,
uma chuvada torrencial caiu sobre o campo, transformando o jogo num caos de
guarda-chuvas improvisados e bolas perdidas.
— Bem, acho que o jogo
acabou — disse um dos amigos, abanando a água da camisola.
— Mais vale irmos
beber um café antes que apanhemos uma pneumonia — acrescentou o outro.
Riram, seguiram juntos
para a zona coberta e trocaram conversa por alguns minutos, cada um a comentar
o azar do tempo. Depois, cada um foi à sua vida. Para Laura, Óscar chegaria a
casa como em qualquer outro domingo — pelo menos, assim ele queria que
parecesse.
Quando estacionou na
garagem, sentiu o coração bater mais forte. Não havia sinais de nada fora do
normal, apenas o som distante de música vindo do andar de cima. Entrou
estranhou o silêncio. Mas entretanto ouviu um ruido. Ao aproximar-se do
corredor, percebeu que o som não vinha de cima, mas do escritório. A porta
estava entreaberta. Bastou-lhe um passo mais para que o mundo inteiro se
desfizesse: Laura estava deitada de costas sobre a secretária, o vestido
subido, e um homem jovem, que ele não conhecia, movia-se sobre ela com
urgência.
O ar pareceu fugir-lhe
dos pulmões. Ficou parado, petrificado, incapaz de entrar ou falar. Cada
segundo era uma martelada no peito. Depois, recuou em silêncio, como se a casa
fosse um terreno minado. Voltou ao carro, sentou-se, e ficou ali, a olhar para
o nada.
Dirigiu-se a um café.
Pediu um expresso, bebeu-o devagar, tentando alinhar os pensamentos, mas o
relógio parecia arrastar-se. Quando a hora habitual de regresso chegou,
respirou fundo e conduziu de volta a casa, decidido a fingir que nada sabia —
pelo menos por enquanto.
Laura estava na
cozinha quando entrou, como se o tivesse esperado.
— Olá… correu bem no
golfe? — perguntou, sorrindo.
— Correu — respondeu
ele, neutro.
O resto do dia passou
num teatro perfeito. Óscar respondeu o mínimo necessário, observando cada gesto
dela como se estivesse a analisá-la pela primeira vez. À noite, deitaram-se
lado a lado, mas ele ficou acordado, ouvindo cada respiração dela como um
sussurro acusador.
De madrugada,
levantou-se cedo, vestiu-se e saiu sem dizer nada. No caminho para o trabalho,
ao parar num semáforo, olhou para o lado e viu um stand de automóveis
desportivos. Virou o volante sem pensar.
O vendedor, um homem
de sorriso treinado e voz suave, aproximou-se.
— Bom dia! Posso
ajudá-lo a encontrar alguma coisa especial?
— Só a ver… — disse
Óscar, olhando para os carros brilhantes.
Passou por alguns
modelos caros demais, até que o vendedor abriu um sorriso cúmplice e o conduziu
até um Corvette vermelho, baixo e agressivo.
— Esta máquina é outra
liga. Potência pura, som que arrepia…
Óscar rodeou o carro,
passou a mão pela pintura impecável, espreitou para o interior de couro preto.
— Quanto? — perguntou.
O vendedor deu-lhe um
valor alto.
— E se eu lhe der o
meu Tesla na troca? —
O vendedor hesitou,
depois fez contas rápidas.
— Se pagar a diferença
em dinheiro, podemos fechar hoje.
Óscar não pensou duas
vezes. Saiu, foi ao banco, levantou o dinheiro, e meia hora depois tinha o
documento provisório na mão. Quando entrou na garagem de casa com o rugido do
Corvette, Laura saiu à porta, surpresa.
— O que é isto?!
— O carro novo.
— E o Tesla?
— Dei na troca.
— Mas… tu trocaste um
carro elétrico por isto?! O que é que te passou pela cabeça? E o que é que as
pessoas vão pensar?
— Vão ter uma inveja
do caraças.
Laura ficou tensa,
irritada.
— Quero que devolvas
isto e tragas o Tesla de volta.
Óscar fixou-a com um
olhar frio.
— Se queres tanto
aquela bosta de carro, pede ao teu amante para ir comprá-lo e to oferecer.
O silêncio caiu como
uma bomba. Ela ficou estática, sem cor no rosto. Ele mostrou-lhe o dedo do
meio, virou-lhe as costas e entrou no quarto de hóspedes, trancando a porta.
Do outro lado da
porta, Laura tentou falar com ele durante horas. Primeiro, a voz soava quase
confusa, como se não soubesse de que ele falava. Depois, passou a negar:
— Não é o que estás a
pensar!
Mais tarde, a negação
cedeu à súplica.
— Óscar, por favor…
abre a porta. Eu nunca quis magoar-te.
Havia passos inquietos
no corredor, choro, a maçaneta a rodar, punhos a bater devagar, depois mais
forte.
— Fala comigo! Por
favor! — choramingava.
Ele respondeu apenas
com silêncio. Nem uma palavra, nem um gesto. Ao fim de horas, ouviu-a
afastar-se e presumiu que tivesse ido deitar-se.
Quando amanheceu, ele
vestiu-se com a mesma roupa do dia anterior, abriu a porta e saiu sem olhar
para trás. No trabalho, ignorou todas as tentativas dela de o contactar —
mensagens, chamadas, até um e-mail. Mas perto da hora de almoço, o telefone
tocou e era a filha.
— Pai… vais para casa
hoje?
— Vou.
— Temos de falar.
— O que é que a tua
mãe te disse?
— Falamos mais tarde.
O tom dela era sério,
e ele percebeu que não havia fuga.
Quando chegou, Laura,
a filha e Daniel estavam sentados na mesa da sala, como numa reunião formal. O
lugar à cabeceira estava livre, quase como se fosse o seu trono a aguardar o
réu. Ele sentou-se.
Foi a filha quem
começou, já que Laura, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, parecia incapaz
de falar.
— A mãe contou-nos o
que aconteceu… e é óbvio que descobriste que ela tem um namorado.
Óscar não desviou o
olhar da filha.
— Sabias?
Ela baixou os olhos.
— Sim…
Ele ficou em silêncio,
mas o que veio a seguir soou-lhe como um murro no estômago:
— Mas… pai, como é que
podes estar tão admirado? Tu… tens tido alguns problemas. E sabes o quanto a
mãe é uma mulher… fogosa.
Aquilo pareceu-lhe
surreal.
— Estás a justificar a
infidelidade dela por causa da minha condição física?
A filha engoliu em
seco, mas continuou.
— Até foi ideia minha…
a mãe arranjar alguém. Assim… ela podia tratar de ti melhor, estar mais… feliz.
Óscar soltou um riso
irónico, frio.
— Que consideração
pelo meu bem-estar…
Foi então que Laura
falou pela primeira vez, num soluço quase convulsivo:
— O que é que querias
que eu fizesse? Eu nunca quis magoar-te. Não significa nada, foi só até tu…
poderes outra vez… Eu amo-te, Óscar.
Ele esperou que ela
recuperasse o fôlego para responder.
— Se tinhas essas
necessidades tão fortes, podias ter falado comigo. Podíamos ter procurado uma
solução juntos. Mas preferiste trair-me pelas costas.
— Eu… tive medo… não
queria stressar-te antes da operação… — balbuciou ela.
— E pensaste no que
aconteceria se eu descobrisse? — perguntou ele.
O silêncio dela foi a
única resposta.
A filha voltou à
carga, repetindo as justificações da mãe, tentando convencê-lo de que estava a
exagerar. Óscar virou-se para Daniel.
— E tu? Concordas com
isto?
— Sim… acho que…
— Então já percebeste
que acabaste de dar permissão à tua mulher para ser infiel se tu, por algum
motivo, ficares impossibilitado de cumprir as tuas obrigações maritais?
O silêncio caiu
pesado. Daniel baixou a cabeça, atingido pela frase como se fosse um estalo.
Óscar levantou-se,
afastou a cadeira com firmeza e saiu da sala, trancando-se outra vez no quarto
de hóspedes.
***
Benedita continuava a
ouvi-lo em silêncio, sem o interromper. Sabia que não havia palavras capazes de
aliviar o peso daquilo.
— Por mais que todos
naquela mesa dissessem que me amavam, a verdade é que nenhum deles me respeitou
o suficiente para me dar uma escolha que fosse. As pessoas conhecem-se pelos
actos, não pelas palavras — continuou, o tom grave e pausado.
Respirou fundo antes
de retomar:
— Pela madrugada, fui
ao quarto. Ela dormia com um ar pacífico… como se nada tivesse acontecido. Não
me apeteceu vestir o fato do costume. Tirei uns jeans e uma t-shirt da gaveta,
vesti-me e saí para o trabalho. Liguei o carro com um sorriso… sabia que a ia
acordar de certeza. Pode parecer mesquinho, mas deu-me satisfação. — Nesse
momento, lançou um olhar rápido a Benedita, e ela, sem conter, retribuiu o
sorriso. — Parei numa estação de serviço, atestei o carro e tomei um café com
um bolo para o pequeno-almoço. Depois… cheguei àquele semáforo.
O silêncio instalou-se
no quarto. Benedita ainda tentava absorver tudo o que tinha ouvido. Por fim,
levantou-se, aproximou-se e abraçou-o com força. Quando se separaram,
deitaram-se, e as únicas palavras trocadas foram as boas-noites, depois de
apagarem a luz.
Hoje foi um capítulo em dose dupla que permitiu que o mistério ficasse menos denso.
ResponderEliminarBom dia, sô Gil
Pelo menos já se sabe o que aconteceu ao homem... ;) Bom dia, D. desnomeada :D
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