sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 13

 



Óscar tomou banho primeiro. Quando saiu da casa de banho, o cabelo ainda húmido e a toalha enrolada ao pescoço, vestia apenas uma t-shirt escura e calças confortáveis. Sentou-se na beira da cama com o telemóvel na mão, o ecrã a brilhar num tom frio sobre o seu rosto carregado. Os dedos moviam-se lentamente, escrevendo algo que parecia pesar-lhe mais do que devia.

Pouco depois, Benedita regressou do duche, com o vapor ainda preso aos fios de cabelo que gotejavam sobre a toalha branca. Usava apenas a t-shirt enorme que lhe servia de vestido, caindo-lhe solta sobre os ombros e quase a meio das coxas. Sentou-se na sua cama, a poucos passos dele, pegando no secador. Enquanto o barulho quente preenchia o quarto, ela observava-o pelo canto do olho — aquele silêncio concentrado, o franzir quase imperceptível da sobrancelha, o telemóvel pousado de repente no colo como se a mensagem estivesse concluída, mas ainda por enviar.

Quando terminou de secar o cabelo e se preparava para se deitar, Óscar respirou fundo, endireitou-se e fez-lhe sinal com a mão para que se aproximasse. Ela hesitou um instante, mas acabou por se sentar na sua cama, de frente para ele.

— Mais tarde ou mais cedo… — começou, a voz baixa e firme — vais começar a tirar conclusões. E antes que comeces a tirar as erradas… quero contar-te o que aconteceu.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, atentos, enquanto ele ajeitava a posição, como quem procura a forma mais suportável de dizer algo insuportável.

— Meses antes da operação… o meu corpo começou a dar sinais de que algo não estava bem — disse, pausadamente. — Eu e a Laura… tínhamos uma vida íntima saudável. Frequente. Ela… ainda me atrai imensamente.

Fez uma pausa, os olhos perdidos num ponto indefinido. Depois, num murmúrio quase para si próprio, completou:

— Aparentemente… não só a mim.

O silêncio que se seguiu pareceu afundar-se no quarto. Óscar pigarreou, retomando o fio de pensamento.

— Uns meses antes da operação… apesar da vontade de estar com ela… o corpo não correspondia.

Ele ergueu o olhar, com um esboço de desculpa na expressão.

— Desculpa estar a contar-te estes pormenores… mas são importantes. Incontornáveis.

Benedita inclinou a cabeça, com um pequeno sorriso de compreensão.

— Não faz mal… já sei acerca das abelhinhas e dos passarinhos.

O canto da boca de Óscar subiu, breve e quase imperceptível, mas genuíno.

Óscar apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando para as próprias mãos como se as palavras que vinha dizer estivessem gravadas ali.

— Ao princípio… não dei grande importância. — A voz saiu num tom resignado. — Já estava numa idade em que as coisas não são como na juventude… e pensei que era só isso. Mas… a persistência dos sintomas começou a preocupar-me.

Endireitou-se um pouco, respirando fundo.

— O que mais me custava… não era a minha saúde. Era saber que não estava a conseguir estar com a minha mulher como ela merecia.

Os olhos de Benedita mantinham-se fixos nele, sérios, absorvendo cada palavra.

— Procurei médicos… que me encaminharam para especialistas… e depois vieram os exames. Muitos exames. — Fez uma pausa curta, como se ainda conseguisse sentir o frio metálico das máquinas. — Foi aí que descobriram os problemas cardíacos.

O silêncio instalou-se por uns segundos. Óscar passou uma mão pelo rosto e, quando voltou a falar, o tom mudou — menos clínico, mais carregado de memórias.

— Eu… vim de uma família pobre, do Norte. Nada me foi dado. — Um breve sorriso amargo surgiu-lhe nos lábios. — Trabalhei como um cão. Comecei por baixo… e fui subindo até conseguir fundar a minha própria empresa de construção.

Levantou o olhar, como se visse, no tecto do quarto, as décadas que ficaram para trás.

— Não era nada de extraordinário… mas dava-nos uma vida acima da média. E, apesar de todas as exigências, dos imprevistos, das obras que davam dores de cabeça… nunca deixei de estar presente para a minha família. Nunca.

A voz quebrou ligeiramente.

— Tudo o que fiz… todas as concessões… foram sempre a pensar nelas. Na Laura. Na minha filha.

Fechou os olhos por um momento, deixando que as palavras assentassem.

— Mas… o preço veio. — Inspirou devagar, sentindo o peso daquela verdade. — O stress, as noites mal dormidas, as preocupações constantes… foram o que me trouxe aqui. Mesmo parecendo estar em forma para a minha idade… o coração já estava cansado.

Benedita manteve-se calada, com um respeito instintivo por aquele momento, quase como se tivesse medo de que um som seu pudesse quebrar algo frágil que ele estava finalmente a deixar sair.

Óscar manteve o olhar baixo, como se estivesse a puxar os fios da memória com cuidado.

— A Laura… — começou, a voz mais suave. — A minha mulher… esteve sempre ao meu lado. Em todas as etapas. Sempre compreensiva, sempre a acompanhar-me… nunca me deixou sentir que estava sozinho nisto.

Passou a mão pela nuca, um gesto que parecia tentar aliviar o peso que trazia nos ombros.

— Por fim, marcaram a operação. Não era algo imediato, mas… prometia, em primeiro lugar, que eu continuaria a viver. — Fez uma pausa curta, olhando-a nos olhos, como para sublinhar a importância dessas palavras. — E… abria também a porta a que o corpo voltasse a responder.

O canto da boca ergueu-se num sorriso breve, quase nostálgico.

— A operação tinha riscos. Mas… eu estava feliz por os correr.

Respirou fundo antes de continuar.

— Correu bem. Foi há seis meses. Desde então… a vida tem sido calma. Retomei o trabalho há três meses, mas… de forma suave, cautelosa. Só voltei porque já estava farto de olhar para as paredes.

Houve um brilho quase imperceptível no olhar, como quem se recorda de pequenas vitórias.

— Os médicos davam-me os parabéns pela recuperação… e, sinceramente, eu sentia-me muito melhor do que antes. Talvez até por causa dos cuidados redobrados que passei a ter.

A expressão fechou-se de novo, como se uma sombra lhe atravessasse o rosto.

— E… isso leva-nos ao domingo passado.

 

***

 

O domingo começara como tantos outros. Óscar estava no campo de golfe, acompanhado por dois amigos habituais. O relvado estava impecável, o ar fresco, e o som seco das tacadas ecoava de forma familiar. Trocaram piadas, comentaram lances, falaram de banalidades. Mas a meio da manhã, uma nuvem escura avançou rápido e, sem aviso, uma chuvada torrencial caiu sobre o campo, transformando o jogo num caos de guarda-chuvas improvisados e bolas perdidas.

— Bem, acho que o jogo acabou — disse um dos amigos, abanando a água da camisola.

— Mais vale irmos beber um café antes que apanhemos uma pneumonia — acrescentou o outro.

Riram, seguiram juntos para a zona coberta e trocaram conversa por alguns minutos, cada um a comentar o azar do tempo. Depois, cada um foi à sua vida. Para Laura, Óscar chegaria a casa como em qualquer outro domingo — pelo menos, assim ele queria que parecesse.

Quando estacionou na garagem, sentiu o coração bater mais forte. Não havia sinais de nada fora do normal, apenas o som distante de música vindo do andar de cima. Entrou estranhou o silêncio. Mas entretanto ouviu um ruido. Ao aproximar-se do corredor, percebeu que o som não vinha de cima, mas do escritório. A porta estava entreaberta. Bastou-lhe um passo mais para que o mundo inteiro se desfizesse: Laura estava deitada de costas sobre a secretária, o vestido subido, e um homem jovem, que ele não conhecia, movia-se sobre ela com urgência.

O ar pareceu fugir-lhe dos pulmões. Ficou parado, petrificado, incapaz de entrar ou falar. Cada segundo era uma martelada no peito. Depois, recuou em silêncio, como se a casa fosse um terreno minado. Voltou ao carro, sentou-se, e ficou ali, a olhar para o nada.

Dirigiu-se a um café. Pediu um expresso, bebeu-o devagar, tentando alinhar os pensamentos, mas o relógio parecia arrastar-se. Quando a hora habitual de regresso chegou, respirou fundo e conduziu de volta a casa, decidido a fingir que nada sabia — pelo menos por enquanto.

Laura estava na cozinha quando entrou, como se o tivesse esperado.

— Olá… correu bem no golfe? — perguntou, sorrindo.

— Correu — respondeu ele, neutro.

O resto do dia passou num teatro perfeito. Óscar respondeu o mínimo necessário, observando cada gesto dela como se estivesse a analisá-la pela primeira vez. À noite, deitaram-se lado a lado, mas ele ficou acordado, ouvindo cada respiração dela como um sussurro acusador.

De madrugada, levantou-se cedo, vestiu-se e saiu sem dizer nada. No caminho para o trabalho, ao parar num semáforo, olhou para o lado e viu um stand de automóveis desportivos. Virou o volante sem pensar.

O vendedor, um homem de sorriso treinado e voz suave, aproximou-se.

— Bom dia! Posso ajudá-lo a encontrar alguma coisa especial?

— Só a ver… — disse Óscar, olhando para os carros brilhantes.

Passou por alguns modelos caros demais, até que o vendedor abriu um sorriso cúmplice e o conduziu até um Corvette vermelho, baixo e agressivo.

— Esta máquina é outra liga. Potência pura, som que arrepia…

Óscar rodeou o carro, passou a mão pela pintura impecável, espreitou para o interior de couro preto.

— Quanto? — perguntou.

O vendedor deu-lhe um valor alto.

— E se eu lhe der o meu Tesla na troca? —

O vendedor hesitou, depois fez contas rápidas.

— Se pagar a diferença em dinheiro, podemos fechar hoje.

Óscar não pensou duas vezes. Saiu, foi ao banco, levantou o dinheiro, e meia hora depois tinha o documento provisório na mão. Quando entrou na garagem de casa com o rugido do Corvette, Laura saiu à porta, surpresa.

— O que é isto?!

— O carro novo.

— E o Tesla?

— Dei na troca.

— Mas… tu trocaste um carro elétrico por isto?! O que é que te passou pela cabeça? E o que é que as pessoas vão pensar?

— Vão ter uma inveja do caraças.

Laura ficou tensa, irritada.

— Quero que devolvas isto e tragas o Tesla de volta.

Óscar fixou-a com um olhar frio.

— Se queres tanto aquela bosta de carro, pede ao teu amante para ir comprá-lo e to oferecer.

O silêncio caiu como uma bomba. Ela ficou estática, sem cor no rosto. Ele mostrou-lhe o dedo do meio, virou-lhe as costas e entrou no quarto de hóspedes, trancando a porta.

Do outro lado da porta, Laura tentou falar com ele durante horas. Primeiro, a voz soava quase confusa, como se não soubesse de que ele falava. Depois, passou a negar:

— Não é o que estás a pensar!

Mais tarde, a negação cedeu à súplica.

— Óscar, por favor… abre a porta. Eu nunca quis magoar-te.

Havia passos inquietos no corredor, choro, a maçaneta a rodar, punhos a bater devagar, depois mais forte.

— Fala comigo! Por favor! — choramingava.

Ele respondeu apenas com silêncio. Nem uma palavra, nem um gesto. Ao fim de horas, ouviu-a afastar-se e presumiu que tivesse ido deitar-se.

Quando amanheceu, ele vestiu-se com a mesma roupa do dia anterior, abriu a porta e saiu sem olhar para trás. No trabalho, ignorou todas as tentativas dela de o contactar — mensagens, chamadas, até um e-mail. Mas perto da hora de almoço, o telefone tocou e era a filha.

— Pai… vais para casa hoje?

— Vou.

— Temos de falar.

— O que é que a tua mãe te disse?

— Falamos mais tarde.

O tom dela era sério, e ele percebeu que não havia fuga.

Quando chegou, Laura, a filha e Daniel estavam sentados na mesa da sala, como numa reunião formal. O lugar à cabeceira estava livre, quase como se fosse o seu trono a aguardar o réu. Ele sentou-se.

Foi a filha quem começou, já que Laura, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, parecia incapaz de falar.

— A mãe contou-nos o que aconteceu… e é óbvio que descobriste que ela tem um namorado.

Óscar não desviou o olhar da filha.

— Sabias?

Ela baixou os olhos.

— Sim…

Ele ficou em silêncio, mas o que veio a seguir soou-lhe como um murro no estômago:

— Mas… pai, como é que podes estar tão admirado? Tu… tens tido alguns problemas. E sabes o quanto a mãe é uma mulher… fogosa.

Aquilo pareceu-lhe surreal.

— Estás a justificar a infidelidade dela por causa da minha condição física?

A filha engoliu em seco, mas continuou.

— Até foi ideia minha… a mãe arranjar alguém. Assim… ela podia tratar de ti melhor, estar mais… feliz.

Óscar soltou um riso irónico, frio.

— Que consideração pelo meu bem-estar…

Foi então que Laura falou pela primeira vez, num soluço quase convulsivo:

— O que é que querias que eu fizesse? Eu nunca quis magoar-te. Não significa nada, foi só até tu… poderes outra vez… Eu amo-te, Óscar.

Ele esperou que ela recuperasse o fôlego para responder.

— Se tinhas essas necessidades tão fortes, podias ter falado comigo. Podíamos ter procurado uma solução juntos. Mas preferiste trair-me pelas costas.

— Eu… tive medo… não queria stressar-te antes da operação… — balbuciou ela.

— E pensaste no que aconteceria se eu descobrisse? — perguntou ele.

O silêncio dela foi a única resposta.

A filha voltou à carga, repetindo as justificações da mãe, tentando convencê-lo de que estava a exagerar. Óscar virou-se para Daniel.

— E tu? Concordas com isto?

— Sim… acho que…

— Então já percebeste que acabaste de dar permissão à tua mulher para ser infiel se tu, por algum motivo, ficares impossibilitado de cumprir as tuas obrigações maritais?

O silêncio caiu pesado. Daniel baixou a cabeça, atingido pela frase como se fosse um estalo.

Óscar levantou-se, afastou a cadeira com firmeza e saiu da sala, trancando-se outra vez no quarto de hóspedes.

 

***

 

Benedita continuava a ouvi-lo em silêncio, sem o interromper. Sabia que não havia palavras capazes de aliviar o peso daquilo.

— Por mais que todos naquela mesa dissessem que me amavam, a verdade é que nenhum deles me respeitou o suficiente para me dar uma escolha que fosse. As pessoas conhecem-se pelos actos, não pelas palavras — continuou, o tom grave e pausado.

Respirou fundo antes de retomar:

— Pela madrugada, fui ao quarto. Ela dormia com um ar pacífico… como se nada tivesse acontecido. Não me apeteceu vestir o fato do costume. Tirei uns jeans e uma t-shirt da gaveta, vesti-me e saí para o trabalho. Liguei o carro com um sorriso… sabia que a ia acordar de certeza. Pode parecer mesquinho, mas deu-me satisfação. — Nesse momento, lançou um olhar rápido a Benedita, e ela, sem conter, retribuiu o sorriso. — Parei numa estação de serviço, atestei o carro e tomei um café com um bolo para o pequeno-almoço. Depois… cheguei àquele semáforo.

O silêncio instalou-se no quarto. Benedita ainda tentava absorver tudo o que tinha ouvido. Por fim, levantou-se, aproximou-se e abraçou-o com força. Quando se separaram, deitaram-se, e as únicas palavras trocadas foram as boas-noites, depois de apagarem a luz.


2 comentários:

  1. Hoje foi um capítulo em dose dupla que permitiu que o mistério ficasse menos denso.
    Bom dia, sô Gil

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    1. Pelo menos já se sabe o que aconteceu ao homem... ;) Bom dia, D. desnomeada :D

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