segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 25

 



Clara entrou em casa, pousou as chaves no aparador e tirou os sapatos de salto como quem largava um peso.

Na sala, surpreendeu-se ao ver Daniel já sentado no sofá, o casaco ainda dobrado de lado, como se tivesse chegado há pouco. O rosto dela abriu-se num sorriso genuíno, quase aliviado.

— Qual é a efeméride para estares em casa tão cedo? — perguntou com uma leve ironia doce, pousando a mala e caminhando na direção dele.

Aproximou-se para o abraçar e beijar, mas no instante em que os braços o envolveram, sentiu a hesitação. O corpo dele não respondeu com a mesma entrega de sempre.

Daniel inspirou fundo, os olhos a evitarem os dela antes de finalmente perguntar:

— Onde estiveste?

A pergunta não a surpreendeu. Nos últimos tempos, aquela confiança sólida entre os dois, que antes parecia uma autoestrada larga e sem curvas, tornara-se uma linha estreita, instável, onde dançavam em equilíbrio precário.

Ainda tinha na cabeça a conversa com o pai. Ainda sentia a deriva da tarde perdida, a vaguear pelo shopping sem rumo, sem ver as montras, como se estivesse num limbo. Embora magoada, agora tinha maior clareza.

Clara pousou a mão na dele e respondeu, tranquila:

— Fui almoçar com o meu pai… e depois dei uma volta pelo centro comercial.

Daniel assentiu, um pequeno gesto com a cabeça, mas intranquilo, como quem aceitava a resposta sem realmente acreditar nela.

Ela, magoada mas sem querer prolongar o abismo, inclinou-se de novo para o abraçar. O gesto foi correspondido, mas apenas a meio caminho, sem o calor de antes. Mesmo assim, Clara beijou-o. Não prolongou o beijo — deixou-o breve, contido, quase frágil.

Encostou os lábios ao ouvido dele e murmurou:

— Eu nunca conseguiria magoar-te…

Daniel fechou os olhos, os maxilares contraídos, e respondeu baixo:

— Também não querias magoar o teu pai. Antes pelo contrário. Mas não magoar… pode simplesmente querer dizer esconder melhor.

Clara afastou-se ligeiramente, a palidez a subir-lhe ao rosto. Sentou-se no sofá, o corpo a perder forças, e num murmúrio quase inaudível, mais para si própria do que para ele:

— Eu estava errada…

Daniel permaneceu estático, o olhar fixo nela, como se aquelas palavras fossem inesperadas demais para processar de imediato.

Daniel ficou simplesmente a olhar para ela, sem uma palavra, o olhar interrogativo a pedir mais do que qualquer frase.

Clara, sentindo a pressão daquele silêncio, repetiu com mais firmeza:

— Eu estava errada.

Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas.

— Elabora.

Clara respirou fundo. Sabia que não podia continuar a esconder-se atrás de justificações.

— Ainda que todas as intenções fossem boas… e tu sabes que eram. Tu próprio, quando te contámos, concordaste, ou pelo menos disseste que percebias.

Daniel não reagiu. O silêncio dele obrigou-a a continuar.

— Mas a verdade é que nós não traímos o meu pai pelo sexo em si. Não foi por a minha mãe ter ido para a cama com outro homem. A traição foi mais profunda. — a voz dela começou a tremer, mas não parou — Foi ao ponto de destruir a imagem que ele tinha de nós. Nós tirámos-lhe uma escolha. Desrespeitámo-lo… profundamente. E pusemo-lo de parte.

As palavras ecoaram na sala, como se a própria casa tivesse prendido a respiração.

Daniel ficou a observá-la, o olhar pesado, absorvendo cada sílaba. Não era a primeira vez que ouvia aquelas conclusões — já as tinha sentido na pele quando Óscar lhas tinha atirado sem rodeios, como uma lâmina crua que rasgava sem pedir licença. Foi esse o momento em que o pano caiu para ele, em que deixou de ver apenas a razão das intenções e começou a ver a nudez fria das ações.

Agora, diante dele, Clara parecia finalmente percorrer o mesmo caminho. Pela primeira vez, não se refugiava no porquê, mas encarava o o que foi feito.

Daniel manteve-se em silêncio, imóvel, mas dentro de si reconhecia — com um misto de dor e alívio — que a mulher à sua frente começava a ver aquilo que até ali recusara olhar de frente.

Clara manteve-se de olhos fixos nos de Daniel, mesmo que o coração lhe batesse como se fosse fugir-lhe do peito.

— Eu sei… — a voz dela saiu quase como um sussurro, mas firme — eu sei que fui eu própria, pelas minhas ações, que coloquei este enorme calhau no meio do nosso caminho. Respirou fundo, sentindo as lágrimas a quererem voltar. — Mas eu faço tudo, Daniel… tudo o que for necessário… para o retirar.

Daniel ergueu o olhar para ela, olhos sombrios, o peso de meses de silêncio e mágoa a pairar na sala.

— E tu achas… que tudo pode voltar a ser como era antes?

Clara abanou a cabeça de imediato, sem hesitação.

— Não. Não é isso que eu quero. — aproximou-se dele, tocando-lhe levemente no braço, quase com medo de ser rejeitada. — Eu não quero que volte a ser como antes. O que eu quero é construir algo ainda melhor… porque agora eu me entendo melhor a mim própria. E sei o que não posso voltar a fazer.

Um longo silêncio caiu entre os dois. Daniel recostou-se no sofá, os olhos perdidos em algum ponto da parede, tão quieto que quase parecia uma estátua. Clara, inquieta, esperou. Não sabia se ele ia explodir, se ia rir, ou simplesmente levantar-se e sair.

Por fim, incapaz de aguentar mais aquele silêncio, deixou escapar a pergunta que lhe queimava a garganta:

— O que é que tu precisas de mim, Daniel?

As palavras ficaram suspensas no ar, carregadas de uma vulnerabilidade que ela raramente deixava transparecer.

Daniel demorou. O silêncio dele alongou-se de tal forma que Clara quase sentiu o ar rarear à sua volta. Estava como que encurralada, sem saída, mas ainda assim atenta, como se cada segundo fosse vital, na esperança de que a sinceridade das suas palavras pudesse, de alguma forma, ser o ponto de partida para reconstruírem algo mais sólido do que o que agora ameaçava ruir.

Por fim, Daniel ergueu o olhar, firme, a voz baixa mas carregada de peso:

— A única coisa que eu quero verdadeiramente de ti… é a tua lealdade. E a tua sinceridade. Que os problemas de um sejam dos dois. Não em tudo, não a todos os níveis… mas em tudo o que importa na relação que temos. Quero que sejas sincera, mesmo que saibas que vai doer o que tens para dizer. Desde que nunca sejas cruel. E eu prometo-te que farei o mesmo.

Clara manteve os olhos presos nos dele, e depois de alguns segundos murmurou, com uma intensidade quase solene:

— Na saúde e na doença… até que a morte nos separe.

Não ficou tudo bem. Não foi uma absolvição, nem um recomeço imediato. Mas algo se alterou: a tensão que enchia o ar pareceu aliviar, e até a própria casa em volta deles pareceu, por um instante, respirar.

Daniel estendeu o braço e puxou-a contra si. O abraço foi apertado, longo, sentido. Clara fechou os olhos e conteve as lágrimas que ameaçavam romper-lhe as defesas. Ficaram assim, imóveis, como se o tempo tivesse parado.

Foi ela quem, quase num sussurro trémulo, perguntou baixinho junto ao ouvido dele:

— O que queres para o jantar?

O jantar decorria sereno, ainda envolto num silêncio pensativo, mas sem o peso que antes os esmagava. Clara e Daniel comiam devagar, cada um perdido nos seus próprios pensamentos, quando o telemóvel de Clara, pousado sobre a mesa, se iluminou com uma chamada.

Um número desconhecido.

Daniel lançou-lhe um olhar imediato, breve mas inquisitivo. Estendeu a mão, quase instintivamente, como se fosse para desligar a chamada, mas deteve-se. Havia no seu rosto aquela dúvida que Clara já reconhecia: a velha sombra da desconfiança.

Clara inspirou fundo, pegou no telefone e, num gesto de transparência, colocou-o em alta-voz.

— Sim?

Do outro lado, uma voz tímida, juvenil, soou hesitante:

— É a Clara?

Clara piscou os olhos, surpreendida.

— Sim, sou eu. Quem fala?

— Sou a Benedita… — respondeu a voz, quase envergonhada. — O Óscar… o teu pai deu-me o teu número. Disse... disse-me para ligar. Ele mandou-te uma mensagem, viste?

Clara franziu o sobrolho, puxou o telemóvel para si e reparou, de facto, na notificação por abrir. Abriu a mensagem do pai: Número da Benedita. Ela vai ligar-te.

Um aperto suave formou-se-lhe no peito, mas a voz saiu terna:

— Sim, já vi. Então, diz lá, Benedita.

Do outro lado houve um breve silêncio, como se a rapariga ganhasse coragem:

— Eu… queria pedir-te uma coisa… É que… preciso de ajuda com os estudos. Perdi muita matéria e... não sei como recuperar. Achas que me podias dar uma ajuda?

Clara sorriu, e a suavidade dessa expressão passou para a voz:

— Claro que sim. Combinamos depois com calma, está bem? Eu ajudo-te.

Do outro lado, ouviu-se um obrigada envergonhado antes da chamada terminar.

Clara pousou o telemóvel e, quando levantou os olhos, encontrou Daniel a observá-la, agora com um leve sorriso a quebrar a rigidez do rosto. Ele ergueu as mãos e fez aspas no ar:

— A tua nova ‘irmã’, hã?

Clara riu-se baixinho e abanou a cabeça.

— Pelos vistos… sim. E digo-te já, vais gostar de a conhecer. É uma miúda fixe.

O jantar prosseguiu então num tom mais leve, com uma nova corrente de cumplicidade a insinuar-se entre os dois.


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 24

 



O Corvette aproximou-se da escola no meio do burburinho de final de aulas. Os alunos saíam em grupos, mochilas a tiracolo, telemóveis na mão, rindo, empurrando-se, libertando em segundos a energia acumulada durante o dia. À beira do portão, Benedita estava sozinha, encostada a uma grade. Endireitou-se mal reconheceu a frente baixa e agressiva do carro vermelho.

Assim que o Corvette estacionou, não houve como ignorar as reações.

— Manooooo! Viste aquilo?! — exclamou um rapaz de boné virado ao contrário, quase deixando o telemóvel cair.

—É um Corvette C8! Juro! — outro, de olhos arregalados, já a apontar a câmara do telemóvel, filmava o carro como se fosse um OVNI.

Dois miúdos fizeram “thumbs up” para Óscar enquanto passavam, tentando parecer descontraídos mas rindo logo de seguida, nervosos, como se tivessem acabado de tocar num ícone vivo. Uma rapariga cochichou à amiga:

— “Apanha boleia daquele carro? Que sorte...”

Óscar assistiu a tudo aquilo com um esgar divertido. Quando Benedita se aproximou e entrou no carro, ele não resistiu a comentar:

— Ainda vais dar cabo da bateria dos telemóveis desta malta...

Benedita revirou os olhos e deixou escapar um suspiro resignado.

— Amanhã já sei o que me espera.

—O quê? — Óscar perguntou com um sorriso trocista.

— Toda a gente a querer falar comigo... mas não por minha causa. Por causa disto. — respondeu, apontando com o polegar para o Corvette.

Óscar soltou uma gargalhada curta e franca.

— Pois... suspeito que amanhã já serás bastante mais popular.

O carro arrancou e, durante alguns segundos, ficaram em silêncio, só o ronco grave do motor preenchia o espaço. Depois Benedita começou a falar.

— As disciplinas... acho que os professores são simpáticos, mas exigentes. E como já perdi uma montanha de matéria... não sei, não estou a ver como posso recuperar. Se calhar o ano já está perdido.

As palavras saíram-lhe num tom arrastado, quase derrotado, como se já tivesse aceitado o fracasso.

Óscar olhou para a frente, sem desviar os olhos da estrada, e respondeu pausadamente:

— O facto de ser extremamente difícil não o torna impossível. Mas depende de ti. Eu posso dar-te a mão... mas não posso dar os passos por ti.

Benedita ficou a olhar para ele de lado, absorvendo aquelas palavras como quem recebe algo novo, precioso, que ainda não sabe muito bem como guardar.

— E... achas que eu consigo? — perguntou, a voz baixa, carregada de uma vulnerabilidade quase infantil.

Desta vez, Óscar virou-se para ela por um instante e respondeu com firmeza tranquila:

— Sim. E ajudo-te no que for preciso. Mas só resulta se tu te empenhares.

Foi como se uma faísca acendesse algo dentro dela. Sentiu um calor no peito, um peso a desaparecer, uma estranha felicidade que parecia querer rebentar-lhe em lágrimas. Engoliu-as à pressa e fez uma promessa muda a si mesma: não iria desapontá-lo.

Já dentro da garagem, Óscar estacionou o Corvette e desligou o motor. O silêncio após o rugido soou quase solene.

Ele voltou-se para ela e acrescentou, num tom mais prático:

— Pede à Clara para te ajudar nos estudos. Ela tem jeito para ensinar e paciência.

Benedita hesitou, mordendo o lábio.

— Achas que ela aceitaria?

Óscar sorriu, meio enigmático.

— Só há uma maneira de saber... pergunta-lhe.

Ela assentiu, ainda incerta, mas já a imaginar a conversa que teria de ter.

Óscar e Benedita iam a contornar a casa, rumo à cave, quando o som de uma janela a abrir quebrou o silêncio.

Na cozinha, surgiu Laura, apoiada no parapeito. O olhar pousou primeiro em Benedita, quase maternal, mas não conseguiu disfarçar um relance nervoso na direção de Óscar.

— Já lanchaste, Benedita? Tens fome? — perguntou, num tom amável.

Benedita abanou a cabeça.

— Não... ia lanchar agora.

Laura apressou-se a aproveitar a deixa:

— Acabei de fazer um bolo de iogurte, ainda está quente. Estou a fazer chá também. Se quiseres, é só entrares.

Benedita hesitou, e voltou-se para Óscar, como que a pedir-lhe uma aprovação silenciosa.

Ele manteve o rosto sério, mas os cantos da boca traíram-no com um breve sorriso.

— O bolo da Laura é delicioso. Devias aproveitar.

Laura piscou os olhos, surpreendida. Aproveitou para acrescentar:

— E tu, Óscar... não precisas de ser convidado. Esta é — sempre foi — a tua casa.

Aquelas palavras pairaram no ar, pesadas. Benedita, sentindo a tensão, ergueu os olhos para Óscar com um pedido quase suplicante para não entrar sozinha.

Óscar respirou fundo, olhou primeiro para Benedita, depois para Laura, e por fim cedeu:

— Na verdade... o bolo até vale a pena. — disse, piscando o olho a Benedita.

Mudou de direção e seguiu Benedita para a cozinha, resignado, mas curioso.

Entraram na cozinha. O ambiente estava impregnado com o cheiro doce do bolo ainda quente, misturado ao aroma subtil do chá acabado de fazer.

Óscar dirigiu-se a um armário, abriu a porta sem pedir licença — como quem conhece cada canto daquela casa — e retirou de lá uma garrafa e um copo. Com um gesto rápido, encheu-o, piscando o olho a Benedita.

— Prefiro outro tipo de chá.

Ela soltou uma risada cúmplice, abafada pela mão.

Sentaram-se os três à mesa. O silêncio que pairava não era de hostilidade aberta, mas de uma tensão frágil, quase palpável. Laura mantinha os gestos suaves, cuidadosos, como quem anda sobre gelo fino e tem medo de o quebrar.

Empurrou a travessa com o bolo para perto de Benedita:

— Anda, prova. Está mesmo bom agora que ainda está quente.

Benedita sorriu, cortou uma fatia generosa e mordeu com gosto. Os olhos brilharam.

— Está delicioso! Sério, está mesmo bom!

Laura deixou escapar um sorriso genuíno.

— Se quiseres, eu ensino-te a receita.

— Claro que quero! — respondeu Benedita com entusiasmo imediato.

Laura pousou a boleira mais perto de Óscar, numa espécie de convite silencioso. Ele olhou, hesitou um instante, depois serviu-se de uma fatia também. Só então Laura cortou a sua.

Enquanto Benedita falava animada, sem poupar elogios, Laura deixou-se ficar uns segundos a observar Óscar. Ele não lhe devolveu o olhar. O rosto mantinha-se sério, distante... mas, quando os olhos se desviavam para Benedita, Laura surpreendeu nele um sorriso suave, quase imperceptível, de quem se deixa enternecer com a alegria simples da rapariga.

Esse detalhe, tão pequeno, foi-lhe como uma punhalada. O aperto no peito não era ciúme de Benedita, mas a dor crua de ver Óscar ali tão perto, partilhando a mesa, e ao mesmo tempo sentir a distância entre eles como um abismo intransponível.

Quando a última migalha desapareceu dos pratos, Benedita limpou os lábios com o guardanapo e levantou-se com energia:

— Tenho mesmo de ir estudar…

Óscar acompanhou o gesto, recolhendo o copo que tinha usado. Os dois caminharam lado a lado para a porta da cozinha.

Foi então que, a meio do passo, Óscar parou. Voltou-se ligeiramente para Laura, que ainda estava sentada, e fixou-a com um olhar firme.

— Obrigado.

A palavra soou simples, mas carregada de um peso diferente. O tom não tinha nada de formalidade fria; havia sinceridade e uma profundidade inesperada.

Laura sentiu-se desarmada. Percebeu de imediato que aquele agradecimento não era apenas pelo bolo, nem pelo chá. Era pela forma como ela tinha recebido Benedita, pelo cuidado com que a tratara, pela delicadeza com que se esforçara para lhe dar lugar à mesa.

O coração apertou-lhe de emoção.

Óscar desviou o olhar e voltou a caminhar para fora da cozinha. Laura seguiu-o com os olhos, como se cada passo dele a afastasse ainda mais. E, movida por um impulso, arriscou:

— Óscar…

Ele parou, mas não se virou.

Laura sentiu a voz prender-se na garganta. Queria dizer-lhe tudo — pedir-lhe desculpa, explicar, gritar que o amava, que ainda o amava desesperadamente. Mas nada daquilo saiu. Só o nó, a dificuldade de respirar. No fim, conseguiu apenas:

— Se quiseres… eu trato do jantar. Assim descansas um pouco. A Benedita pode estudar sem preocupações.

Houve um segundo de silêncio pesado, como se o ar tivesse parado.

Óscar manteve-se de costas, mas respondeu de forma calma, quase seca:

— Está bem. Avisa quando estiver pronto.

E seguiu, deixando a cozinha.

Laura ficou imóvel, com o guardanapo ainda entre os dedos. Mas dentro dela, contra toda a razão, contra tudo o que conhecia da frieza dele… uma pequena chama reacendeu-se. Uma esperança frágil, mas viva.


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 23

 



Óscar estava no escritório, rodeado de papéis de contratos. Lia cláusulas, rabiscava anotações a lápis, voltava a folhear páginas, quando o telefone vibrou sobre a secretária. Olhou para o visor.

Clara.

Hesitou por alguns segundos, respirou fundo, e atendeu sem um cumprimento:

— Diz.

Do outro lado, a voz dela soou mais trémula do que o habitual:

— Pai… podemos falar?

— Falar de quê? — devolveu ele, seco.

Seguiu-se um silêncio longo, carregado. Até que ela arriscou:

— De tudo.

Óscar manteve-se imóvel, olhando fixamente para os papéis à sua frente como se quisesse atravessá-los. Depois respondeu:

— Então vem almoçar comigo.


Clara apareceu pouco depois num pequeno restaurante discreto, a dois quarteirões do escritório da firma do pai. Um lugar acolhedor, onde os donos conheciam Óscar há muitos anos e o tratavam quase como família.

Ele já estava sentado a uma mesa de canto, de costas para a parede e visão ampla sobre a sala. Assim que a viu entrar, ergueu ligeiramente a mão, indicando-lhe o lugar à frente.

Clara aproximou-se, pousou a mala na cadeira e sentou-se.

Não disseram nada. Ficaram os dois em silêncio, cada um à espera que fosse o outro a quebrar a barreira.

O tilintar de talheres e vozes baixas de outras mesas enchia o espaço. Entre eles, apenas um peso invisível, feito de mágoa, ressentimento e coisas por dizer.

O empregado aproximou-se com a naturalidade de quem já conhecia os hábitos.

Trouxe logo a garrafa pequena de vinho tinto que sabia ser a escolha de Óscar e pousou-a na mesa sem pedir. Depois, sem sequer deixar menus, anunciou os pratos do dia em voz rápida e segura.

Óscar escolheu de imediato. Clara demorou um instante, mas acabou por decidir o mesmo. O empregado assentiu, recolheu-se, e deixou-os novamente a sós.

O silêncio voltou a pesar até que Clara, respirando fundo, arriscou:

— Pai…

A palavra ficou-lhe presa na garganta, como se se tivesse engasgado nas próprias emoções. Tentou de novo, procurando forças.

— Pai, precisava que falasses com o Daniel.

Óscar franziu o sobrolho, intrigado.

— Porquê?

Ela desviou o olhar, mexendo nervosamente no guardanapo entre os dedos.

— Desde aquela conversa… no dia antes de partires de repente, que as coisas não estão bem. A relação ficou… diferente.

Óscar manteve-se imóvel, encarando-a com frieza.

— E o que é que tu esperavas?

Clara ergueu a voz num tom mais carregado de emoção do que queria.

— Pai, eu nunca lhe dei razão nenhuma para desconfiar de mim! Nunca faria nada para o magoar!

Ele interrompeu-a sem levantar o tom, mas com a firmeza que a silenciava de imediato.

— A tua maneira de não magoar os que amas é esconderes o que não é agradável à vista. Segredos. Conluios. Dizes que não magoas, mas só mudas a forma como o fazes. Portanto, percebo muito bem o Daniel.

As palavras caíram como pedras. Clara respirou fundo, tentando recompor-se, e insistiu quase em súplica:

— Mas podes falar com ele? Por favor? O clima entre nós anda tenso… ele está desconfiado.

Óscar recostou-se na cadeira, mas o olhar nunca perdeu a firmeza. Esticou o braço e apontou-lhe o dedo, sem margem para dúvidas:

— Estás a colher o que semeaste. A única coisa que me surpreende é o Daniel só ter percebido quando eu lhe apontei que o que se passava ali era uma falta de integridade.

Clara baixou os olhos, mordendo o lábio. Ele não lhe deu tempo.

— Diz-me: como é que podes esperar que ele confie em ti?

— Pai… — tentou de novo, num tom quase implorativo. — Não podes interceder? Explicar-lhe que eu nunca faria uma coisa dessas?

Óscar inclinou-se ligeiramente para a frente, a voz cortante:

— Não? Não foi exatamente isso que fizeste comigo?

Ela ficou em silêncio, engolindo em seco.

— Já estás grandinha para lidar com os problemas que criaste. — acrescentou, agora mais frio do que duro. — Mas se queres um conselho: se queres de novo a confiança do Daniel, conquista-a com atos. Não com palavras.

O silêncio voltou, carregado. Foi nesse instante que o empregado regressou com os pratos fumegantes, pousando-os em frente de cada um.

Óscar começou a comer sem cerimónias, impávido. Clara, em contrapartida, ficou com o olhar perdido, os pensamentos a fervilhar em torno do que tinha acabado de ouvir.

Quando finalmente pousaram os talheres, Clara ergueu os olhos, hesitante.

— Pai… tu odeias-me?

Óscar não demorou.

— Não. Mas odeio o que fizeste.

Ela respirou fundo, ganhando coragem:

— Tu podes não acreditar… mas a ideia parecia excelente. A mãe dizia-me que já andava a subir pelas paredes. Nunca esteve em causa o que sentíamos por ti, nunca. Antes pelo contrário. Só tínhamos medo de falar contigo antes da operação… tu não estavas bem, e podia desencadear uma reação…

Óscar assentiu, calmo, a voz quase serena:

— Percebo perfeitamente isso tudo.

Clara ficou a olhá-lo, surpreendida. Ele continuou:

— Mas ainda assim… o facto de a tua mãe não ter falado comigo abertamente sobre algo fundamental entre nós… destruiu a imagem que eu tinha do nosso casamento. Para mim sempre foi uma equipa: nós contra o mundo. Ela quebrou isso. Destruiu a imagem que eu tinha dela.

A pausa foi curta. A voz dele baixou, carregada.

— Nunca mais poderei confiar verdadeiramente nela. E da maneira como soube… dificilmente, para o resto da minha vida, conseguirei olhar para ela sem ter a imagem dela semi-despida, em cima da minha secretária, com outro gajo qualquer semi-despido em cima dela. Como se a urgência fosse tanta que nem tiveram tempo de tirar a roupa completamente.

Clara estremeceu. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, silenciosas, enquanto assimilava talvez pela primeira vez o impacto brutal que as suas ações tinham tido.

Clara enxugou as lágrimas à pressa, respirou fundo e, com a voz ainda trémula, perguntou:

— Então… e agora?

Óscar apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou as mãos e olhou-a sem desviar.

— Francamente, não sei. Mas sei uma coisa: não existo para resolver os problemas que vocês criaram com as ações que tiveram.

Clara abanou a cabeça, confusa, tentando agarrar-se a qualquer argumento.

— Mas não percebo… se no fundo até entendes as intenções, se não era nossa intenção causar este caos, muito menos magoar-te…

Óscar não hesitou.

— Sim, percebo as boas intenções. Mas o pavimento da estrada para o inferno está feito delas. E aquilo que me deram, Clara… foi exatamente isso. Um inferno.

Ela abriu a boca mas não encontrou resposta. Ficou a olhá-lo, chocada, a tentar conter a torrente de emoções. As mãos tremiam-lhe por baixo da mesa. O restaurante estava cheio, vozes e talheres cruzando-se em fundo, e percebeu com clareza a escolha do pai: ali não podia explodir, ali era obrigada a ouvir até ao fim.

Clara voltou a pegar nos talheres, forçando a mão a manter-se firme, mesmo que lhe tremesse por dentro. À frente dela, o pai mantinha a mesma expressão impenetrável, fria como pedra, sem lhe dar uma única brecha onde pudesse entrar. O som metálico dos talheres dela contrastava com o burburinho constante do restaurante.

À volta, mesas cheias de trabalhadores em pausa: uns de camisa arregaçada, outros ainda de casaco, vinham em pares ou em grupos, ocupando cadeiras de qualquer maneira, rindo e falando alto sobre o trabalho, futebol ou banalidades. O staff andava apressado, equilibrando travessas e pratos, servindo copos de vinho com gestos rotineiros, completamente alheios ao que se passava naquela mesa isolada, onde o silêncio pesava mais que o ruído de todo o restaurante.

Passaram-se longos minutos até que Clara, já mais controlada, largou os talheres por um instante, respirou fundo e deixou escapar, quase num sussurro:

— Pai… eu não sei o que fazer.

Óscar pousou calmamente o guardanapo na mesa, olhou-a fixamente e respondeu sem hesitação:

— Isso é mentira.

Clara ergueu o olhar, surpreendida.

— Como assim?

Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, a voz baixa mas firme como aço.

— Tu sabes perfeitamente o que fazer. Mas não queres admitir que estás errada.

Clara ficou a encará-lo como se tivesse acabado de ouvir que o céu era verde, incapaz de reagir.

Óscar não se deteve:

— Enquanto procurares justificações para as tuas ações, em vez de as olhares pelo que foram… vais ficar sempre presa. Presa a algo que não te deixa fazer o que sabes que deves fazer.

As palavras dele ficaram a pairar entre os dois. O silêncio instalou-se novamente, espesso, inquebrável. Clara voltou a comer devagar, mastigando quase sem sentir o sabor. Por dentro, um turbilhão. Por fora, o esforço desesperado para não deixar transparecer.

À sua frente, Óscar permanecia frio, uma muralha impossível de escalar. E isso… isso doía-lhe mais do que tudo.


quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Extreme - "X Out" (Official Video)

Depois do Inferno verde - Capítulo 22

 



Óscar encostou-se na cadeira do gabinete, olhou para a secretária coberta de pastas e suspirou. A manhã tinha sido uma maratona.

Assinaturas pendentes, aprovações que esperavam desde que partira, decisões que ninguém quis tomar sem ele. Foi despacho atrás de despacho, reunião atrás de reunião.

Quando finalmente se viu livre, já passava do meio-dia. Aceitou o convite de Rogério Antunes para almoçarem juntos e ainda trouxe Dário Sampaio, o advogado da empresa e amigo de infância.

No restaurante, depois de encomendarem, foi Rogério quem abriu a conversa:

— Então, a situação da família de acolhimento… — disse, pousando o guardanapo no colo. — O processo está no início, Óscar. Por agora não há grandes novidades.

— Está tudo a andar — completou Dário, bebendo um gole de água. — Mas não esperes nada rápido.

Óscar anuiu, mexendo o talher no prato. Depois, largou a pergunta que gelou a mesa:

— E num divórcio? Quais seriam as minhas perspetivas?

Os dois pararam. Rogério ergueu as sobrancelhas, surpreso. Dário inclinou-se para a frente:

— Espera aí… estás a falar a sério?

— Estou.

— Mas… tu e a Laura… — Dário abanou a cabeça — sempre vos vi como o casal perfeito. O que é que se passou?

— Não quero entrar em pormenores.

Rogério encostou-se, escolhendo as palavras:

— Se for litigioso… divisão de ativos, possíveis problemas na firma, partilha da casa…

— …e pensão de alimentos — completou Dário. — Como ela não trabalha, é quase certo que vais ter de pagar.

Óscar passou a mão pela cara, visivelmente contrariado.

— Nada disso me agrada.

— Pois — disse Rogério. — Mas é o que há, a não ser que consigas um acordo amigável.

— O que duvido — cortou Óscar, seco.

Dário deixou o garfo no prato e olhou-o sério:

— Então, prepara-te. Vai ser uma luta feia.

Óscar não respondeu. Limitou-se a beber o resto do café e a pedir a conta.

Antes de saírem, Óscar apoiou os cotovelos na mesa e olhou para Rogério:

— E quanto às hipóteses de obter a guarda permanente da Benedita?

Rogério ficou em silêncio uns segundos, pensativo. — Depende de muita coisa… Queres adotá-la?

Óscar hesitou.

— Não sei ainda. Mas pelo menos, se conseguir a guarda permanente, sei que posso protegê-la até atingir a maioridade.

Dário deixou escapar uma gargalhada curta.

— És sempre o mesmo… — disse, abanando a cabeça com um meio sorriso.

Levantaram-se, e já à porta do restaurante, Rogério virou-se para Dário:

— Começa a preparar os papéis para o pedido de guarda permanente da menor. Vamos meter isto a andar.

Dário acenou, ajustando o casaco.

— Trato disso já amanhã.

Saíram para a rua, cada um seguindo o seu caminho, mas com um novo processo em andamento.

Óscar chegou a casa a meio da tarde e encostou o Corvette na garagem. O carro da filha ainda lá estava, agora parado em frente à porta que escondia o Tesla. Olhou para o “monumento”, parado como se lhe fizesse troça. Saiu do Corvette, pegou numa chave de fenda que estava pousada numa bancada lateral e, sem pressa, fez um risco longo e vincado de cada lado, de uma ponta à outra.

Largou a chave de fenda no mesmo sítio e saiu da garagem. Entrou na casa principal como tinha feito milhares de vezes ao longo dos anos. Não se surpreendeu ao ver Benedita sentada com Laura e Clara na sala. Não disse nada. Passou por elas e subiu as escadas em silêncio.

Laura e Clara trocaram um olhar e foram atrás dele, chamando-o:

— Óscar… espera!

— Pai, podemos falar?

Ele não respondeu. Entrou no quarto, trancou a porta e pegou num saco de desporto. Começou a encher com roupas e sapatos, metódico, até se dar por satisfeito. Destrancou a porta.

Do outro lado, Laura e Clara esperavam-no, bloqueando-lhe a passagem.

— Óscar, por favor… — começou Laura.

— Pai, não sejas assim… — tentou Clara.

Quando lhe agarraram o braço, a reação foi instantânea, explosiva, como nunca tinham visto:

— NÃO ME TOQUEM!

As duas ficaram imóveis, apanhadas de surpresa pela violência da voz dele. Óscar avançou, passando entre elas, desceu as escadas e virou-se para Benedita, que estava na sala a olhar a cena com atenção.

— Vens?

Ela levantou-se de imediato e seguiu-o até à cave isolada.

Assim que a porta da cave se fechou atrás deles, Óscar mudou. A rigidez desapareceu, os ombros relaxaram e o rosto de pedra que levara até ali desfez-se. Olhou para Benedita e perguntou com simplicidade:

— Então… como foi o teu dia?

Benedita contou-lhe que Laura a tinha acordado de manhã, a convidara para o pequeno-almoço e que aí conhecera Clara. Falou de como as duas lhe fizeram perguntas com curiosidade, quase em tom de entrevista.

Óscar ouviu e limitou-se a comentar:

— É normal.

Ela continuou: contara-lhes dos sítios por onde tinham passado na viagem, acompanhara-as às compras, almoçara com elas.

Óscar inclinou-se para a frente, interessado:

— E o que lhes disseste exatamente da viagem?

— Falei dos sítios… só isso. — respondeu Benedita.

Ele acenou, satisfeito.

— Fizeste bem.

Depois de um silêncio breve, perguntou-lhe:

— E… o que achaste da Laura e da Clara?

Benedita hesitou um segundo, mas respondeu:

— Foram simpáticas. Acolheram-me bem.

Óscar deixou escapar um sorriso pequeno.

— Não esperava outra coisa.

Benedita olhou-o, como se a dúvida lhe pesasse demasiado para ficar calada:

— Tu… tu odeias a Laura e a Clara?

A pergunta fez Óscar ficar em silêncio. O olhar perdeu-se por um instante antes de responder, com calma mas firmeza:

— Não. Eu não odeio quem elas são. Pelo contrário… são as duas pessoas no mundo que mais significam para mim.

Benedita ficou a observá-lo.

Ele suspirou fundo e acrescentou:

— O que eu odeio é o que fizeram… e o facto de ainda não terem compreendido o que provocaram.

Óscar levantou-se, como que a encerrar o assunto anterior, e tirou uma pequena caixa de dentro de um saco. Estendeu-a a Benedita.

— Toma.

Ela recebeu-a com curiosidade, abriu e ficou de olhos muito abertos ao ver um smartphone novo. Não disse nada de imediato.

— Assim estás contactável. — explicou ele. — E também podes ligar-me quando precisares.

Benedita sorriu, ainda surpreendida.

— Ah… e outra coisa. — continuou. — Falei com alguns amigos durante a tarde. Consegui transferir o teu processo escolar para uma escola aqui perto. Como tenho a guarda temporária, não houve problema. Começas amanhã. Por isso convém deitares-te cedo, vais ter de madrugar.

Ela acenou, ainda sem palavras.

Óscar mudou de tom, mais leve:

— E agora… o que é que te apetece jantar? Para eu reservar um restaurante.

Benedita abanou a cabeça.

— Não é preciso. Eu posso cozinhar qualquer coisa. Quando fomos às compras, a Laura insistiu para que comprasse algumas coisas para trazer para aqui… até disse que tinha a certeza que tu não ias voltar tão cedo à casa principal.

Óscar ergueu uma sobrancelha, meio divertido.

— Ah é? E tu sabes cozinhar?

— Sei. — respondeu convicta.

Ele soltou um riso curto.

— Agora deixaste-me curioso. Vamos lá ver esses teus dotes.

Benedita foi até à kitchenette, partiu ovos, cortou fiambre, queijo, cebola e salsa. Movia-se com uma segurança inesperada. Pouco depois, colocou no prato uma omelette dourada e bem recheada.

Óscar provou a primeira garfada e, com um ar surpreendido, admitiu:

— Está deliciosa, verdade seja dita.

Ela sorriu, satisfeita.

Jantaram os dois sem pressa, e depois ficaram no sofá durante algum tempo. Óscar mostrou-lhe como configurar e explorar o novo telefone, pacientemente. Quando se deu por satisfeito, levantou-se.

— Está na hora de irmos para os nossos quartos. Amanhã o dia começa cedo.

Ambos seguiram para os respetivos quartos, o cansaço a pesar, mas o ambiente mais leve do que antes.