quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Depois do Inferno verde - Capítulo 22

 



Óscar encostou-se na cadeira do gabinete, olhou para a secretária coberta de pastas e suspirou. A manhã tinha sido uma maratona.

Assinaturas pendentes, aprovações que esperavam desde que partira, decisões que ninguém quis tomar sem ele. Foi despacho atrás de despacho, reunião atrás de reunião.

Quando finalmente se viu livre, já passava do meio-dia. Aceitou o convite de Rogério Antunes para almoçarem juntos e ainda trouxe Dário Sampaio, o advogado da empresa e amigo de infância.

No restaurante, depois de encomendarem, foi Rogério quem abriu a conversa:

— Então, a situação da família de acolhimento… — disse, pousando o guardanapo no colo. — O processo está no início, Óscar. Por agora não há grandes novidades.

— Está tudo a andar — completou Dário, bebendo um gole de água. — Mas não esperes nada rápido.

Óscar anuiu, mexendo o talher no prato. Depois, largou a pergunta que gelou a mesa:

— E num divórcio? Quais seriam as minhas perspetivas?

Os dois pararam. Rogério ergueu as sobrancelhas, surpreso. Dário inclinou-se para a frente:

— Espera aí… estás a falar a sério?

— Estou.

— Mas… tu e a Laura… — Dário abanou a cabeça — sempre vos vi como o casal perfeito. O que é que se passou?

— Não quero entrar em pormenores.

Rogério encostou-se, escolhendo as palavras:

— Se for litigioso… divisão de ativos, possíveis problemas na firma, partilha da casa…

— …e pensão de alimentos — completou Dário. — Como ela não trabalha, é quase certo que vais ter de pagar.

Óscar passou a mão pela cara, visivelmente contrariado.

— Nada disso me agrada.

— Pois — disse Rogério. — Mas é o que há, a não ser que consigas um acordo amigável.

— O que duvido — cortou Óscar, seco.

Dário deixou o garfo no prato e olhou-o sério:

— Então, prepara-te. Vai ser uma luta feia.

Óscar não respondeu. Limitou-se a beber o resto do café e a pedir a conta.

Antes de saírem, Óscar apoiou os cotovelos na mesa e olhou para Rogério:

— E quanto às hipóteses de obter a guarda permanente da Benedita?

Rogério ficou em silêncio uns segundos, pensativo. — Depende de muita coisa… Queres adotá-la?

Óscar hesitou.

— Não sei ainda. Mas pelo menos, se conseguir a guarda permanente, sei que posso protegê-la até atingir a maioridade.

Dário deixou escapar uma gargalhada curta.

— És sempre o mesmo… — disse, abanando a cabeça com um meio sorriso.

Levantaram-se, e já à porta do restaurante, Rogério virou-se para Dário:

— Começa a preparar os papéis para o pedido de guarda permanente da menor. Vamos meter isto a andar.

Dário acenou, ajustando o casaco.

— Trato disso já amanhã.

Saíram para a rua, cada um seguindo o seu caminho, mas com um novo processo em andamento.

Óscar chegou a casa a meio da tarde e encostou o Corvette na garagem. O carro da filha ainda lá estava, agora parado em frente à porta que escondia o Tesla. Olhou para o “monumento”, parado como se lhe fizesse troça. Saiu do Corvette, pegou numa chave de fenda que estava pousada numa bancada lateral e, sem pressa, fez um risco longo e vincado de cada lado, de uma ponta à outra.

Largou a chave de fenda no mesmo sítio e saiu da garagem. Entrou na casa principal como tinha feito milhares de vezes ao longo dos anos. Não se surpreendeu ao ver Benedita sentada com Laura e Clara na sala. Não disse nada. Passou por elas e subiu as escadas em silêncio.

Laura e Clara trocaram um olhar e foram atrás dele, chamando-o:

— Óscar… espera!

— Pai, podemos falar?

Ele não respondeu. Entrou no quarto, trancou a porta e pegou num saco de desporto. Começou a encher com roupas e sapatos, metódico, até se dar por satisfeito. Destrancou a porta.

Do outro lado, Laura e Clara esperavam-no, bloqueando-lhe a passagem.

— Óscar, por favor… — começou Laura.

— Pai, não sejas assim… — tentou Clara.

Quando lhe agarraram o braço, a reação foi instantânea, explosiva, como nunca tinham visto:

— NÃO ME TOQUEM!

As duas ficaram imóveis, apanhadas de surpresa pela violência da voz dele. Óscar avançou, passando entre elas, desceu as escadas e virou-se para Benedita, que estava na sala a olhar a cena com atenção.

— Vens?

Ela levantou-se de imediato e seguiu-o até à cave isolada.

Assim que a porta da cave se fechou atrás deles, Óscar mudou. A rigidez desapareceu, os ombros relaxaram e o rosto de pedra que levara até ali desfez-se. Olhou para Benedita e perguntou com simplicidade:

— Então… como foi o teu dia?

Benedita contou-lhe que Laura a tinha acordado de manhã, a convidara para o pequeno-almoço e que aí conhecera Clara. Falou de como as duas lhe fizeram perguntas com curiosidade, quase em tom de entrevista.

Óscar ouviu e limitou-se a comentar:

— É normal.

Ela continuou: contara-lhes dos sítios por onde tinham passado na viagem, acompanhara-as às compras, almoçara com elas.

Óscar inclinou-se para a frente, interessado:

— E o que lhes disseste exatamente da viagem?

— Falei dos sítios… só isso. — respondeu Benedita.

Ele acenou, satisfeito.

— Fizeste bem.

Depois de um silêncio breve, perguntou-lhe:

— E… o que achaste da Laura e da Clara?

Benedita hesitou um segundo, mas respondeu:

— Foram simpáticas. Acolheram-me bem.

Óscar deixou escapar um sorriso pequeno.

— Não esperava outra coisa.

Benedita olhou-o, como se a dúvida lhe pesasse demasiado para ficar calada:

— Tu… tu odeias a Laura e a Clara?

A pergunta fez Óscar ficar em silêncio. O olhar perdeu-se por um instante antes de responder, com calma mas firmeza:

— Não. Eu não odeio quem elas são. Pelo contrário… são as duas pessoas no mundo que mais significam para mim.

Benedita ficou a observá-lo.

Ele suspirou fundo e acrescentou:

— O que eu odeio é o que fizeram… e o facto de ainda não terem compreendido o que provocaram.

Óscar levantou-se, como que a encerrar o assunto anterior, e tirou uma pequena caixa de dentro de um saco. Estendeu-a a Benedita.

— Toma.

Ela recebeu-a com curiosidade, abriu e ficou de olhos muito abertos ao ver um smartphone novo. Não disse nada de imediato.

— Assim estás contactável. — explicou ele. — E também podes ligar-me quando precisares.

Benedita sorriu, ainda surpreendida.

— Ah… e outra coisa. — continuou. — Falei com alguns amigos durante a tarde. Consegui transferir o teu processo escolar para uma escola aqui perto. Como tenho a guarda temporária, não houve problema. Começas amanhã. Por isso convém deitares-te cedo, vais ter de madrugar.

Ela acenou, ainda sem palavras.

Óscar mudou de tom, mais leve:

— E agora… o que é que te apetece jantar? Para eu reservar um restaurante.

Benedita abanou a cabeça.

— Não é preciso. Eu posso cozinhar qualquer coisa. Quando fomos às compras, a Laura insistiu para que comprasse algumas coisas para trazer para aqui… até disse que tinha a certeza que tu não ias voltar tão cedo à casa principal.

Óscar ergueu uma sobrancelha, meio divertido.

— Ah é? E tu sabes cozinhar?

— Sei. — respondeu convicta.

Ele soltou um riso curto.

— Agora deixaste-me curioso. Vamos lá ver esses teus dotes.

Benedita foi até à kitchenette, partiu ovos, cortou fiambre, queijo, cebola e salsa. Movia-se com uma segurança inesperada. Pouco depois, colocou no prato uma omelette dourada e bem recheada.

Óscar provou a primeira garfada e, com um ar surpreendido, admitiu:

— Está deliciosa, verdade seja dita.

Ela sorriu, satisfeita.

Jantaram os dois sem pressa, e depois ficaram no sofá durante algum tempo. Óscar mostrou-lhe como configurar e explorar o novo telefone, pacientemente. Quando se deu por satisfeito, levantou-se.

— Está na hora de irmos para os nossos quartos. Amanhã o dia começa cedo.

Ambos seguiram para os respetivos quartos, o cansaço a pesar, mas o ambiente mais leve do que antes.


terça-feira, 16 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 21

 



Benedita acordou com toques suaves e ritmados na porta da cave. Acordou ainda meio estremunhada, o corpo pesado depois de dois mil quilómetros em dois dias. Espreguiçou-se, esfregou os olhos e arrastou-se até à porta.

Encostou o olho ao óculo e viu Laura do outro lado, séria e calma.

Recordou-se do que Óscar lhe dissera e abriu apenas uma nesga, mantendo a corrente fechada.

— Bom dia. O Óscar não está, saiu cedo.

— Eu sei — respondeu Laura. Por um instante, o rosto deixou escapar um lampejo de irritação, rápido mas perceptível, talvez ao lembrar-se do Tesla estacionado em cima das suas roseiras. Mas recompôs-se e continuou com voz controlada. — Ontem não fomos devidamente apresentadas, por força das circunstâncias. Mas já que és convidada do Óscar, és bem-vinda.

Benedita assentiu com um breve movimento.

— Já tomaste o pequeno-almoço? — perguntou Laura.

— Ainda não… — respondeu, cautelosa.

— Então vem tomar comigo. Dá a volta à casa e entra pela porta das traseiras, que dá direto para a cozinha.

Laura afastou-se, e Benedita ficou um instante a ouvir o som dos passos a subir o exterior da cave. Voltou ao quarto improvisado, esticou a colcha sobre a cama, vestiu-se e saiu.

A luz da manhã batia no pátio lateral quando começou a subir. Ao contornar a casa, deparou-se com a vista das traseiras — o rio Cávado estendia-se preguiçoso ao fundo, a brilhar ao sol, ladeado pelas encostas verdes. Por momentos ficou ali, a absorver o cenário.

Chegou à porta das traseiras e bateu levemente antes de empurrar. O cheiro de chá fresco envolveu-a.

— Com licença…

— Entra à vontade — disse Laura, sentada à mesa da cozinha, ao lado de Clara. Ambas tinham chávenas nas mãos.

Benedita aproximou-se, ainda com alguma reserva.

— Então, o que queres comer? — perguntou Laura, num tom cordial que a apanhou desprevenida.

Benedita respondeu, num fio de voz:

— Só uma torrada… e café com leite, se faz favor.

Clara levantou-se de imediato, dirigindo-se à bancada para colocar o pão na torradeira e ligar a máquina do café. Laura, sem tirar os olhos de Benedita, fez-lhe sinal para se sentar.

— Anda, senta-te — disse num tom calmo e acolhedor.

Benedita sentou-se devagar, as mãos pousadas no colo, o olhar a fugir para a bancada, sem saber bem como se comportar.

— Então… chamas-te Benedita e tens dezasseis anos, não é? — perguntou Laura, procurando um sorriso que soava mais ensaiado do que espontâneo.

Benedita limitou-se a acenar afirmativamente.

— E como é que conheceste o Óscar?

— Ele deu-me boleia… quando estava nos Pirenéus, perto de Andorra.

— Nos Pirenéus? — Laura arqueou as sobrancelhas. — E o que estavas tu a fazer por lá?

— Ia para Paris.

— Para Paris? — a surpresa era genuína. — Ias à boleia?

— Sim.

— Sozinha?

— Sim.

Clara voltou à mesa com um prato de torradas fumegantes e uma manteigueira, pousando-os à frente de Benedita. Logo depois colocou também uma caneca de café com leite a fumegar.

Benedita começou a barrar manteiga numa das torradas. Clara, olhando-a com curiosidade, arriscou:

— Não é demasiado perigoso para uma rapariga sozinha ir à boleia?

Benedita encolheu os ombros, como quem não quer pensar muito nisso.

— E os teus pais? — insistiu Clara.

Benedita respondeu com a maior simplicidade do mundo, levando a primeira dentada à torrada:

— Morreram.

Laura e Clara entreolharam-se, não apenas pela resposta, mas pelo tom quase neutro com que foi dita. Perceberam de imediato que havia muito mais por baixo daquela superfície de aparente indiferença. E, talvez sem se darem conta, sentiram ambas uma pontada de pena por aquela rapariga.

Laura pousou a chávena na mesa e olhou para Benedita com um ar calmo, mas atento.

— O Óscar falou-te alguma coisa sobre mim?

Benedita manteve o olhar na torrada.

— Só que era a mulher dele… e que a Clara era a filha.

— Mais nada? — insistiu Laura, inclinando-se ligeiramente.

Benedita não respondeu. Limitou-se a morder um pedaço de pão, mastigando devagar. Laura deixou o silêncio cair, mas lançou um olhar rápido e cúmplice a Clara, como se tivessem percebido as duas que havia ali mais do que Benedita queria admitir.

Clara quebrou a pausa:

— Já conhecias o Óscar antes?

— Não.

Laura apoiou os cotovelos na mesa.

— Ias para Paris… como é que acabaste aqui?

Benedita pousou a torrada no prato.

— O Óscar, quando soube para onde ia, disse que me podia levar, porque ficava no caminho. A viagem durou uns dias… e ele acabou por me convencer de que não era boa ideia.

— Porquê? — perguntou Laura.

— Porque eu acabei por lhe dizer que tinha dezasseis anos.

Laura arqueou as sobrancelhas.

— Ele não sabia logo de início?

Benedita hesitou.

— Acho que desconfiou… mas eu disse-lhe que tinha dezoito.

— E o que te fez confessar? — Laura não disfarçava a curiosidade.

Benedita olhou um instante para a mesa, antes de falar:

— Num hotel pediram-me identificação. Ele disse que eu era filha dele, e não pediram mais nada. Mais tarde, no quarto, perguntei-lhe por que é que tinha dito aquilo. Ele perguntou-me se eu queria mesmo mostrar a minha identificação… e, quando não respondi, perguntou se eu tinha mesmo dezoito anos. Acabei por dizer a verdade.

Laura encostou-se na cadeira, pensativa, enquanto Clara se limitava a observá-la, tentando perceber onde é que aquela conversa ia parar.

Laura apoiou o queixo na mão e perguntou:

— Foi aí que o Óscar te fez desistir da ideia?

Benedita abanou a cabeça.

— Não. Ele só me deu umas doses de realidade… que me fizeram desistir sozinha.

Clara soltou um sorriso breve.

— Típico do pai…

Laura manteve-se a observá-la.

— E como é que conseguiste ir?

— Fugi — disse Benedita, com a naturalidade de quem já repetiu aquela frase demasiadas vezes. — Estava num lar de acolhimento… onde era maltratada. Quando consegui, fugi. A minha ideia era ir para Paris e ser modelo.

Laura recostou-se ligeiramente.

— Se calhar devíamos ir às autoridades.

Benedita abanou de novo a cabeça.

— O Óscar já tratou de tudo. Fez uma denúncia da família de acolhimento… e tratou de ter a minha guarda temporária.

Clara deixou escapar uma pequena gargalhada irónica.

— Isso é igualmente típico do pai…

Laura cruzou os braços sobre a mesa, num gesto descontraído, mas com evidente curiosidade.

— E afinal… qual era o destino do Óscar?

Benedita, sem conseguir disfarçar, deixou escapar um brilho quase infantil nos olhos.

— Nürburgring.

Clara franziu o sobrolho.

— O quê?

Benedita endireitou-se na cadeira, animada.

— É uma pista de corridas na Alemanha. Mas não é uma pista qualquer… é um circuito enorme, histórico. Fomos lá, demos voltas… foi espectacular.

Clara esboçou um sorriso que escondia mal uma ponta de ciúmes.

— Aposto que foi…

— Foi! — disse Benedita, acenando com entusiasmo. — Fomos depressa, mas não a caminho. Na ida parámos muito pelo caminho, vimos marcos históricos, conhecemos cidades… até demos um desvio de propósito para ir a Le Mans.

— A Le Mans? — repetiu Laura, tentando acompanhar.

— Sim! Outra pista. Foi lá que vi o Corvette a andar a sério pela primeira vez.

Enquanto Benedita falava, o rosto iluminado, as mãos a gesticular, Laura sentia uma pontada estranha no peito. Não era raiva… mas uma pena imensa. Pena por não ter sido ela a viver tudo aquilo ao lado de Óscar. Clara, calada, tinha o mesmo pensamento — só que misturado com um ciúme silencioso de filha.

— E vocês… na volta, vieram devagar também? — perguntou Clara, tentando disfarçar o tom.

— Não. A volta foi directa, fizemos cerca de mil quilómetros por dia… mas a ida foi calma. À volta só paramos para descansar, comer e dormir.

Laura observou-a um instante antes de fazer a pergunta seguinte.

— Sabes porque é que ele decidiu ir para Nürburgring?

Benedita sorriu.

— Ele disse-me que tinha o carro há dois dias e, a caminho do trabalho, parado num cruzamento, pensou: “Este carro deve ser espectacular lá”. Em vez de seguir em frente… virou à esquerda.

Clara abanou a cabeça, quase a rir.

— Mesmo, mesmo típico do pai…

Laura deixa que Benedita acabe de comer em paz, observando-a em silêncio enquanto o som suave das torradas a estalar entre os dentes preenchia a cozinha. Parecia estar a organizar as próprias ideias, escolhendo com cuidado as próximas palavras. Quando falou, fê-lo num tom calmo, quase maternal.

— É óbvio que já sabes que há um desaguisado entre o Óscar, eu e a Clara — começou, fitando Benedita de forma serena. — Mas isso é uma coisa pessoal entre nós. Não há qualquer problema contigo.

Benedita apenas acenou, sem grande reação, mas registando mentalmente a frase.

— Olha… — prosseguiu Laura, com um breve sorriso que tentou suavizar o ambiente — se não tiveres nada combinado, podias vir connosco ao supermercado. E… fica para o almoço, almoçamos todas juntas.

Clara, que até ali tinha permanecido mais em silêncio, olhou para Benedita com uma expressão de expectativa.

— Sim, vem. — acrescentou, num tom quase de desafio amigável.

Benedita hesitou apenas um instante antes de aceder.

— Está bem.

Enquanto Laura e Clara acabavam o chá, a conversa voltou ao tema inevitável: a viagem. As perguntas iam surgindo com a curiosidade expectável — detalhes da estrada, das cidades, das pessoas que tinham encontrado. Benedita respondia sempre, sem recusar nenhuma pergunta, mas de forma medida. Recordava-se bem do que Óscar lhe tinha dito na véspera: “Não partilhes demais.”

Por isso, cada resposta era uma seleção cuidadosa, como quem monta um puzzle deixando algumas peças guardadas na caixa.


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 20

 


Óscar acendeu um interruptor junto à porta. As lâmpadas nuas penduradas do teto ganharam vida, rasgando a escuridão com uma luz crua e amarelada. Benedita semicerrava os olhos, ajustando-se ao clarão repentino.

— Vais deixá-la ali? — perguntou, ainda de pé junto à porta, num tom que oscilava entre a curiosidade e a incredulidade.

O rosto sério de Óscar manteve-se imóvel por um instante, mas um pequeno sorriso, quase impercetível, surgiu no canto dos lábios.

— É uma escolha dela. — respondeu, tranquilo. — Pode sempre ir-se embora.

Agora que via o espaço com clareza, Benedita ficou de boca ligeiramente aberta. A cave era muito maior do que esperava — um espaço amplo que se estendia até aos quartos ao fundo. Num canto, uma kitchenette nova com bancadas limpas e uma ilha de cozinha ao centro; dali, o chão transitava suavemente para uma ampla área comum. Duas portas ao fundo davam acesso a duas suítes, cada uma com guarda-roupa e casa de banho privativa.

Apesar do tamanho, a falta de decoração saltava à vista. As camas, ainda com plásticos a envolver os colchões, estavam encostadas às paredes. Na cozinha, os eletrodomésticos brilhavam, mas pareciam nunca ter sido usados. Um sofá enorme ocupava a zona comum, isolado no meio do espaço, e no teto, apenas lâmpadas simples penduradas por fios.

— Minimalista… — comentou Benedita, com ironia, mas depois, percorrendo o espaço com o olhar, acrescentou com sincera admiração: — Mas enorme.

Óscar fechou a porta e pousou a sua pequena mala junto a uma parede.

— A cave tem o tamanho todo da casa lá em cima. — disse, enquanto tirava o casaco. — Espaço é a única coisa que não falta aqui.

Deixaram a bagagem no corredor entre os dois quartos. Óscar fez um gesto para ela.

— Escolhe tu.

Benedita optou pela suíte mais próxima da área comum, e Óscar ficou com a outra. Pouco depois, ele foi até à cozinha, tirou a pizza da caixa e colocou-a no forno pré-aquecido. O cheiro começou a espalhar-se pelo ar, misturando-se com o silêncio pesado que pairava no espaço novo.

A pizza já ia nas últimas fatias quando se ouviu um bater seco na porta. Benedita ergueu os olhos, surpresa.

— Não vais ver quem é? — perguntou, limpando as mãos a um guardanapo.

Óscar nem levantou a cabeça do prato.

— Deve ser a Laura. Não estou interessado.

A curiosidade venceu-a. Levantou-se, caminhou até à porta e espreitou pelo óculo. Voltou-se para ele, intrigada.

— Não é a Laura.

Óscar, ainda de garfo na mão, levantou uma sobrancelha e fixou o olhar na porta. Só depois de um par de segundos se levantou. Não espreitou. Girou a chave e abriu a porta com firmeza.

O ar dele mudou — aquela expressão de pedra, impenetrável.

— O que é que tu queres? — perguntou, seco como uma lâmina.

Do outro lado, Clara ficou de repente mais pequena. A brusquidão dele atingiu-a como um soco invisível, e por um instante pareceu não saber onde pôr os olhos. Mas recompôs-se depressa, endireitando-se ligeiramente.

— Voltaste… — disse, num tom que misturava surpresa, espanto e… quase uma pergunta.

— Sim. E? — respondeu ele, a voz sem qualquer calor.

Clara engoliu em seco, calou-se por um momento, mas acabou por dizer:

— Temos de falar.

Óscar soltou uma gargalhada breve, carregada de ironia, que ecoou na cave.

Temos? — repetiu, cuspindo a palavra como se lhe soubesse mal. Ficou a encará-la com uma intensidade que a fez dar um passo involuntário para trás. — Que dívida é que achas que eu tenho contigo… ou com seja quem for… para ser obrigado a alguma coisa?

Ela abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. O silêncio entre os dois pesou como chumbo.

Clara respirou fundo, tentando recompor-se.

— Pai… tu percebeste tudo mal… — disse, num tom quase suplicante.

Óscar nem pestanejou.

— Eu percebi mal? — a voz dele era cortante, crua. — Tu ajudaste a tua mãe a arranjar um amante?

Clara recuou meio passo, hesitando.

— Não era um amante… era só… para preencher aquele vazio que ela sentia. Não havia ali sentimentos…

Óscar inclinou-se ligeiramente para a frente, o olhar fixo, implacável.

— Isto não tem nada a ver com sexo. — disse, frio como gelo.

As palavras caíram como um golpe seco. Clara ficou de boca aberta, atónita, sem saber o que responder. O silêncio prolongou-se, pesado, sufocante.

Tentando quebrar o impasse, Clara desviou o olhar por cima do ombro dele. Reparou em Benedita, meio encolhida junto à parede, como se quisesse fundir-se com o papel de parede e desaparecer.

— Quem é aquela? — perguntou, surpreendida.

Nesse instante, Óscar fechou-lhe a porta na cara.

Benedita observou-o voltar para a mesa com uma expressão interrogativa, mas antes de abrir a boca acabou por responder à sua própria pergunta, com um meio sorriso malandro:

— Já sei… pode sempre ir-se embora.

Ele não respondeu, mas um canto do lábio ergueu-se. Os dois sorriram. Prepararam as camas no silêncio confortável que se tinha instalado, e acabaram vencidos pelo cansaço da viagem.

Na manhã seguinte, Óscar acordou cedo. Foi até ao quarto de Benedita e bateu à porta.

— Acorda. — disse-lhe, só para dar algumas indicações. — Não te levantes, deixa-te estar. Eu vou sair. Ficas por aqui, dentro da propriedade. Se a Laura ou a Clara aparecerem e te sentires ameaçada, não abras a porta. Mas se forem amigáveis, não cries barreiras.

— Está bem. — murmurou ela, ainda ensonada.

— Acredito que não te vão tratar mal… mas tem cuidado com o que partilhas.

Saiu, atravessou o jardim e entrou na garagem. O sorriso desapareceu assim que viu o Corvette bloqueado pelo carro da filha, estacionado mesmo à entrada da garagem do lado que o Corvette estava.

Suspirou, abriu as portas da garagem e tirou o Tesla, conduzindo-o lentamente para fora… até o estacionar no jardim da frente, por cima das roseiras de Laura. O canto do lábio ergueu-se de novo, desta vez num sorriso satisfeito.

Dentro da garagem, manobrou o Corvette com cuidado, dando-lhe a volta. Assim que saiu pelo portão, ligou o rádio.

Bon Scott gritou-lhe nos ouvidos: I’m on a highway to hell.

Óscar sorriu.

sábado, 13 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 19

 


O final de tarde caía sobre Braga tingindo o céu de tons alaranjados e lilases quando Óscar guiou o Corvette para fora da autoestrada e entrou numa zona industrial. As ruas eram largas, ladeadas por armazéns e oficinas, mas ali, no meio de construções utilitárias, erguiam-se portões altos e um edifício de escritórios de linhas sólidas, com amplas janelas espelhadas. No terreno ao lado, viam-se pilhas organizadas de materiais de construção: vigas de aço, blocos de cimento, paletes de tijolos, tudo arrumado com precisão quase militar. Vários camiões e gruas repousavam, imóveis, como animais de carga depois de um dia longo.

Óscar estacionou junto à entrada principal, desligou o motor e ficou alguns segundos em silêncio, como se organizasse pensamentos.

— Preciso de falar com alguém aqui. Não vai demorar. — disse, já a abrir a porta.

Benedita inclinou-se para a frente, tentando espreitar para além do vidro.

— Posso ir contigo? — perguntou, a curiosidade evidente.

Ele hesitou um instante, mas abanou a cabeça.

— Melhor não. Se entrares comigo vão fazer perguntas. E eu não quero ter de responder a nenhuma… pelo menos não aqui. Hoje não. — o tom era firme, mas sem frieza.

Ela acenou devagar, resignada, enquanto ele saía e se encaminhava para a porta de vidro. Foi então que o olhar dela subiu e leu, em letras grandes e imponentes, a placa metálica por cima da entrada:

CONSTRUÇÕES CAMPOS, LDA.

Benedita ergueu as sobrancelhas, sentindo uma pontada de revelação.

Deve ser a empresa dele… pensou, mordendo o lábio.

A partir desse momento, cada detalhe ganhou outro peso. Observou a fachada impecável, os vidros limpos sem uma mancha, as linhas de luzes interiores acesas com uniformidade. Notou o vaivém metódico de dois homens que carregavam ferramentas para uma carrinha. Reparou na pintura recente dos portões, na organização do parque, no alinhamento perfeito dos veículos pesados, como se cada centímetro daquele espaço fosse um reflexo da pessoa que o comandava.

Óscar entrou no edifício com passo seguro e desapareceu lá dentro. Benedita recostou-se no banco, mas manteve os olhos fixos na entrada, como se quisesse adivinhar que tipo de conversas estariam a acontecer atrás daquela porta.

Óscar regressou ao carro pouco depois, não mais de dez minutos depois de ter desaparecido por detrás das portas espelhadas. A expressão era neutra, controlada, mas havia no olhar um leve endurecer, como quem acabara de resolver um assunto que precisava de ficar despachado.

— Vamos. — disse apenas, encaixando a chave na ignição.

A viagem prosseguiu em silêncio por uns minutos até Óscar entrar num parque de supermercado.

— Vamos buscar qualquer coisa rápida para o jantar. — comentou, saindo.

No corredor refrigerado, escolheram uma pizza pronta para o forno e algumas bebidas. Benedita foi acrescentando ao cesto uns pacotes de bolachas e um queijo curado, olhando para ele com um sorriso maroto.

— Só para garantir que não morremos de fome no meio da noite.

Pouco depois estavam de novo na estrada. O Corvette serpenteava por uma descida ladeada de um lado e do outro por pequenas quintas, cada uma com a sua vivenda isolada e jardins cuidados. À esquerda, para lá dos muros e vinhas, a serra erguia-se com o pinhal denso a tingir-se das sombras do fim de tarde. À direita, o rio Cávado estendia-se ao longe, um traço de prata líquido a reflectir o último brilho do sol.

Quando se aproximaram de uma vivenda de dois andares, com fachada clara e linhas modernas, Óscar tirou um pequeno comando do porta-luvas. Um clique, e o portão automático começou a abrir-se com um zumbido suave, acompanhado pela porta da garagem de dois lugares.

O Corvette entrou, e assim que o motor foi desligado, o portão e a porta começaram a fechar-se sozinhos, isolando-os do mundo exterior. Ao lado, imóvel e silencioso, estava um Tesla, ocupando o outro lugar.

Óscar fitou-o por um instante, abanou a cabeça e murmurou, mais para si do que para ela:

— Parece que ela seguiu a minha sugestão… Será que não me consigo ver livre desta torradeira?

Benedita não conseguiu conter a gargalhada, inclinando-se para o lado e rindo com gosto.

— Uma torradeira de luxo, pelo menos!

— Continua a ser uma torradeira… — retorquiu ele, mas o canto da boca denunciava um sorriso.

Retiraram a pouca bagagem que traziam e saíram da garagem pela porta lateral, a noite já a instalar-se sobre o vale.

A porta lateral da garagem era estreita, apenas espaço para passar uma pessoa de cada vez. Óscar ia à frente, a mão na maçaneta, empurrando-a para o exterior.

Mal deu dois passos, parou. Não foi um gesto hesitante, mas sim abrupto, firme, como se tivesse embatido contra algo invisível. Benedita, que vinha logo atrás, travou para não esbarrar nele, erguendo o olhar na tentativa de perceber o que o tinha feito estacar daquela forma.

Foi então que a ouviu.

Como surgida do nada, estava uma mulher diante dele. Cabelos desalinhados, rosto marcado por lágrimas recentes, a respiração rápida e irregular. Falava com uma voz meio chorosa, que oscilava entre a súplica e a urgência, lançando palavras apressadas que se atropelavam umas às outras.

— Onde é que tu estavas? — a frase saiu entrecortada por soluços. — Meu Deus… pensei… pensei que… — respirou fundo, mas não conseguiu completar. — Estás bem? Diz-me que estás bem! Por favor, fala comigo! — As mãos tremiam, os olhos vermelhos procuravam o dele como se nele estivesse a única âncora num mar revolto.

Óscar permaneceu imóvel. As costas largas tornavam-se agora uma muralha, bloqueando completamente a visão e a passagem de Benedita. Ele não disse nada, não se moveu. Parecia uma parede viva, sólida, impenetrável.

Benedita, num silêncio tenso, percebeu que aquele homem que tantas vezes se tinha lançado estrada fora sem medo, agora estava simplesmente estático, como se todas as respostas lhe tivessem sido arrancadas. E, no ar, entre os soluços dela e o silêncio dele, pairava algo denso, pesado… o início de um momento que ambos, de formas diferentes, sabiam que não podiam evitar.

Óscar não se moveu logo. Respirou fundo, como quem procura no ar a força para manter um equilíbrio frágil, e respondeu num tom absolutamente calmo, mas carregado de um cansaço evidente:

— Laura… conduzi quase mil quilómetros hoje. Estou cansado. Falamos amanhã.

Benedita, atrás dele, percebeu de imediato — Laura. Era esse o nome da mulher dele. Nunca a tinha visto, mas agora, pelo timbre aflito e pela postura, já conseguia traçar mentalmente a figura que imaginara tantas vezes.

Laura tentou aproximar-se, mas Óscar deu um passo atrás, quase esbarrando em Benedita. Levantou as mãos num gesto firme, travando-a antes que pudesse entrar no seu espaço.

— Não agora. — acrescentou ele, e nesse instante Laura quebrou, soltando um choro mais intenso, quase convulsivo.

Óscar então deu um passo à frente, desocupando a porta, e fez um sinal breve a Benedita para que saísse também. Ela obedeceu, passando para o exterior.

Foi nesse momento que Laura a viu. Primeiro, apenas surpresa — um olhar fixo, largo, por entre as lágrimas. Mas o espanto rapidamente se transformou numa palidez súbita, como se todo o sangue lhe tivesse fugido do rosto. E, depois, quase sem transição, veio o rubor da fúria, subindo-lhe pelas faces até explodir num grito:

— Óscar! É esta a tua vingança?!

A acusação ecoou no espaço, cortando o ar.

Óscar manteve-se absolutamente impassível, a postura firme, os olhos fixos nela. Quando falou, a voz saiu firme e calma, um contraste absoluto com a tempestade que ela emanava:

— Antes que faças assunções e digas algo que não vais poder desdizer… esta é a Benedita. Tem dezasseis anos. É minha convidada. E espero que seja tratada como tal.

O silêncio que se seguiu não foi apenas ausência de som — foi um peso. Laura ficou ali, respirando rápido, sem saber se avançava ou recuava. E Benedita, imóvel ao lado dele, percebia que estava a presenciar um daqueles momentos em que as palavras certas ou erradas podiam mudar tudo.

Laura ficou a olhar para Benedita, a respiração ofegante, o peito a subir e descer num ritmo irregular. Soluçava ainda, mas via-se o esforço quase físico para se recompor. Os segundos arrastaram-se até que, finalmente, conseguiu falar de novo para Óscar:

— Onde estiveste? — a voz tremia, mas havia ali uma ânsia quase infantil por resposta.

— Na Alemanha. — respondeu ele, seco, como quem corta uma conversa antes de começar.

Avançou, fazendo sinal a Benedita para o seguir. Laura abriu a boca para voltar a falar, mas ele, antes que qualquer palavra lhe saísse, lançou-lhe por cima do ombro, com uma nota de desdém que soou como um murro surdo:

— Vi a treta do Tesla na garagem. Seguiste o meu conselho e pediste ao namorado para o ir buscar ao stand?

Foi como se lhe tivesse dado uma estalada. Laura vacilou, os joelhos cederam-lhe por um instante, mas conseguiu recompor-se. Tentou ignorar o remoque e acelerou o passo para o acompanhar, notando que ele se dirigia para o lado da casa, na direção de uma porta lateral.

— Uma equipa da tua empresa esteve cá… — começou, a voz carregada de tensão. — Fecharam a cave da casa e não deixaram chaves.

Óscar tirou um molho de chaves do bolso, o metal tilintando na sua mão.

— O que estiveram ali a fazer? — insistiu ela, quase a correr para o alcançar.

— A construir a minha paz. — respondeu, sem olhar para trás.

Chegou à porta com Benedita quase colada a ele, abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. Seguiu logo atrás, e, sem hesitar, fechou a porta na cara de Laura.

Ela ficou ali, imóvel, durante longos minutos. Apenas o som da sua respiração preenchia o ar, enquanto olhava fixamente para a madeira, como se pudesse obrigá-la a abrir-se com a força do pensamento. No fim, cedeu. Retirou-se devagar, derrotada e chorosa, murmurando apenas para si, como um último fio de esperança:

— Pelo menos voltou…