quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Renascimento (III de XL)






  -Tinhas razão. – Disse ela ao fim de um longo silêncio enquanto sofriam abanões devido às estradas de terra por onde circulavam, no meio de uma floresta. – O meu carro era capaz de não sobreviver.

A única luz visível era a dos faróis, que iluminavam uns quantos metros à frente, arrancando à escuridão as árvores e os arbustos que ladeavam o caminho.

-Estamos mesmo no meio da floresta. Isto parece quase um cenário de um filme de terror… - continuou ela.

-É. Costumamos raptar as estrangeiras que aparecem sozinhas na povoação e trazemo-las para aqui. Depois de as fazermos passar por um mau bocado desfazemo-nos dos corpos…

Ela olhou para ele percebendo o sarcasmo.

-E o que fazem aos carros delas?

-Desmanchamos e vendemos para peças. Mas no teu caso nem foi preciso raptar-te. Tu ofereceste-te…

-A sério?

-Não.

Uma luz começou a aparecer no meio das árvores e era claro que se dirigiam para lá. Quando chegaram perto ela pode ver um enorme barracão, quase encostado à linha onde as arvores acabavam e havia o que parecia uma pequena quinta. Rob parou ao pé de outros carros que estavam já parados junto à enorme parte de metal. Saiu do carro, tirou uma mala de guitarra do banco de trás e dirigiu-se ao barracão, sem esperar por ela.

Ela abriu a porta e saiu rapidamente, apercebendo-se de repente que o seu calçado, uns Pumps altíssimos com salto agulha, não era propriamente o ideal para este tipo de terreno, tentando seguir Rob de forma apressada, mas ao mesmo tempo cautelosa, dando-lhe um ar quase cómico. 

Rob não esperou por ela, entrou no barracão e foi de imediato saudado por outras vozes que se calaram de repente quando ela entrou. Rob pousou a mala da guitarra, abriu-a, preparou a guitarra, ligou-a a um cabo, dirigiu-se ao amplificador que ligou e esperou um pouco que aquecesse enquanto afinava a guitarra. Depois de verificar que a guitarra fazia som e estava afinada virou-se para o resto do pessoal, que dividia olhares atónitos entre ele e Miranda, que tinha ficado logo à entrada da porta sem saber o que fazer.

-É verdade, desculpem-me, pessoal esta gringa é a Miranda Macallum, - e virou-se para ela – Miranda, these are the guys. On drums Tobias, on bass is João, Pedro on the other guitar and Paulo on vocals.

Ela cumprimentou-os timidamente. Paulo, o vocalista, observou Miranda de alto a baixo com um ar sério e perguntou a Rob;

-Olha lá, é tua namorada?

-Não propriamente.

O rosto dele iluminou-se num sorriso na direcção de Miranda e dirigiu-se a ela:

-Please don’t mind Rob. We know he can be very rude sometimes. Please come in and have a seat. – E esticou-lhe a mão, que ela aceitou, para a escoltar até um sofá que estava junto a uma parede, ajudando-a a manter o equilíbrio no chão irregular.

-“Parece que afinal ainda há cavalheiros por aqui.” – Disse ela agradecendo o gesto com um sorriso capaz de derreter uma estátua de bronze, lançando em seguida um olhar irado a Rob. 

-Olha lá,… - perguntou o Tobias a Rob - …quem é a tipa? Tua conhecida lá das Américas?

-Não. É a mulher de um músico qualquer chamado Rob Macallum.

-Quem? – Perguntou o Tobias.

-Não te lembras de um gajo que andava nos tops todos há uns anos e que desapareceu? – Perguntou o Pedro.

-Ah, lembro disso, lembro. Na altura foi muito falado. Mas o que é que ela está aqui a fazer?

-Acha que eu sou o marido dela.

-E és?

-O meu nome é Mitchell, não é MaCallum. E não é como seu eu fosse um músico e cantor famoso.

Tobias olhou bem para Rob e limitou-se a responder-lhe:

-O nome não faz a pessoa. É a pessoa que faz o nome.

Miranda aclarou a garganta, como que para chamar a atenção. Começaram todos a falar em inglês.

-Lamento se estamos a ser um pouco rudes. – Disse finalmente o João – Não costumamos ter visitas por aqui. 

-O Rob estava a dizer-nos porque está aqui. - Acrescentou o Tobias - Julga que ele é o Rob MaCallum? 

-Sabem quem é?

-Sim, de ouvir falar. Nunca ouvi nada dele. – Respondeu o Tobias.

-Eu já ouvi, - disse o Pedro – mas francamente é só mais do mesmo.

Miranda pareceu ficar com um ar surpreendido e ofendido ao mesmo tempo.

-E pensa que este Rob é o seu marido? – perguntou o Paulo.

-Tenho quase a certeza. – Respondeu ela com um ar que parecia cada vez menos convicto.

Todos desataram a rir à gargalhada, menos Rob, que parecia nem estar ali, e mexia nos pedais que tinha no chão.

-Se fosse talvez fossemos uma banda de jeito… - disse o Pedro, e todos se riram novamente, desta vez acompanhados pelo Rob.

Depois de encher uns copos descartáveis com cerveja, incluindo um para a Miranda, e de refrescarem a garganta começaram o ensaio.

Depois de tocarem umas quantas músicas pararam, para fazer um intervalo. O Pedro aproveitou para ir abrir a enorme porta deslizante para deixar arejar o espaço, que por esta altura estava bastante quente, se bem que o próprio ar da noite era quente e abafado.

O Paulo apressou-se a perguntar a Miranda, da maneira mais charmosa, ou assim o achava ele, que conseguia:

-Então? Estás a gostar?

-Ela deve estar habituada a actuações com outro nível. – disse Rob do outro lado da sala.

Ela não ligou ao comentário de Rob e respondeu:

-Bastante, vocês tocam bem. Mas só tocam musicas antigas? Não tocam nada mais recente?

-Porquê, não gostas destas músicas? – perguntou o Tobias.

-Sim, gosto, são clássicos, mas estão fora de moda há uns anos.

-Nós também. – Respondeu o Tobias com um sorriso – Portanto, adequa-se.

-Mas se tocassem coisas mais recentes eram capazes de agradar a um público mais, ter mais sucesso, conseguir melhores contractos…

-E julgas que é por isso que estamos aqui?

Ela olhou para o Tobias, não percebendo. Qual era o objectivo de ter uma banda, especialmente uma banda de covers, senão esse? O Tobias riu com a expressão dela.

-Olha, - continuou ele – o Paulo é contínuo numa escola. O João trabalha numa pedreira a uns bons quilómetros daqui. Eu e o pedro somos serralheiros e trabalhamos juntos. Estamos todos nos cinquentas. Todos aprendemos a tocar e estivemos em bandas quando eramos novos, mas a vida aqui pode ser mais simples, mas não é menos difícil. Todos deixámos de tocar, casamos nos princípios dos vintes, criamos os nossos putos, e agora, que eles foram para a Universidade, as Marias deles vão para o artesanato na junta, à noite, a minha já partiu há muitos anos, infelizmente, e nós vimos para aqui. Falamos, bebemos uns copos e fazemos algo que gostamos. Não interessa se somos bons, não interessa sequer se vamos tocar a algum lado. Fazemos isto por isto mesmo. Percebes?

-Os meus sentimentos. – disse ela com um olhar sentido. Tobias sorriu-lhe, reconhecendo o gesto dela.

Ela ficou e pensar nas palavras dele. Era uma perspectiva que, no mundo dela, era completamente alheia.

-Dai o nosso reportório ser as músicas com que crescemos e que amamos. As que nos deslumbraram quando as ouvimos em novos. E com a idade que temos já não encontramos deslumbre no que se ouve por aí. – Concluiu o Tobias

Ela acenou num sinal de entendimento.

Entretanto, com o sítio mais fresco pelo portão aberto, o que fazia com que o armazem quase não tivesse uma parede, e com as gargantas refrescadas, continuaram com o ensaio. Tinham tocado três ou quatro músicas quando um relâmpago rasgou o céu na distância. Uns minutos depois começou a chover torrencialmente, algo que aconteceu tão repentinamente como parou ao fim de uns minutos, deixando um cheiro de terra molhada no ar.

O ensaio acabou e arrumaram os instrumentos, desligaram tudo e prepararam-se para partir. Rob levou o estojo para o banco de trás do carro e deu a volta para entrar quando olhou para trás, para Miranda, que se achava que tinha os sapatos desadequados antes, agora quase se tinha desequilibrado e caído ao tentar atravessas um quase lamaçal. Resmungou consigo próprio, voltou atrás, agarrou-a sem cerimónia e lançou-a sobre o seu ombro, sob o olhar e riso dos restantes presentes, levou-a até ao carro, abriu a porta e lançou-a lá para dentro sem cerimónia e sem qualquer protesto por parte dela.

Depois fez um último aceno ao resto do pessoal, entrou para dentro do carro e arrancou.



3 comentários:

  1. Ufa!! Dói-me o peito com o esforço que fiz para levar esta leitura desde o princípio e de cabo a rabo.
    Desculpa Gil, mas tu és o oposto do Saramago de quem adoro a poesia e tomei de ponta o escritor de prosa.
    Se a tua miúda - e esclareço quem assistir a esta conversa, que falamos da tua filha e não de uma namoradinha, verdade?! - se quer inspirar em ti, para se iniciar na escrita, creio que tens de mudar algo de modo a que esses diálogos curtos e sistematicamente repetidos, sejam reduzidos a algo mais sucinto e esclarecedor...Das situações, dos relacionamentos e daquilo a que os personagens vêm fazer à história.
    Suspense, Cláudio Gil, gera interesse na narrativa, e é essencial para prender a atenção do leitor.

    Nunca, como agora, me senti tão mal por dizer isto a alguém que estimo, mas sou incapaz de mentir para agradar.
    Penso que o melhor para ambos, será não deixares este comentário ser lido por mais ninguém além de ti.
    Pensa só na minha opinião e se me quiseres mandar-me àquela banda, estás à vontade.

    Forte abraço, caro Gil!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não te preocupes. Felizmente a minha miúda não se quer inspirar em mim :)
      Quanto à escrita, como sabes não sou nem estou interessado em vir a ser considerado algo próximo a um escritor. E nem eu levo assim tanto em conta aquilo que escrevo. Mas enquanto a exercicio a que me propus com ela, resultou, e agora é ela que tem de encontrar o caminho dela, se o quiser trilhar.
      Quanto ao partilhar isto (ou outra coisa qualquer)... A perspectiva é simples. Se alguém gostar da história (porque nomos 9 biliões e não há duas pessoas iguais) está aqui e pode desfrutá-la. Se não, não!
      Quanto ao resto, mentir para agradar apenas corta possibilidades de evolução. Provavelmente, se eu eventualmente me der ao trabalho de tentar contar mais alguma história, sou capaz de ter mais em mente este teu comentário que qualquer outro que diga que isto está fantástico e que não se devia mudar uma virgula. E isso é algo extremamente valioso.
      Obrigado

      Abração Janita :)

      Eliminar

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!