segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Renascimento (XVII de XL)




-Podemos ir no meu carro – disse Miranda assim que saíram.

-Deixa o carro. Vamos dar uma volta a pé. 

Caminharam pela rua fora até chegarem à pequena capela no centro da povoação. Não havia ali uma igreja, até porque a povoação era mesmo muito pequena, mas todos os Domingos havia ali missa e a capela enchia com a população, o que não era difícil devido ao tamanho. Mas, fora isso, a porta da capela estava sempre aberta, excepto à noite, quando uma das senhoras da aldeia, a cuidadora do local, a fechava, apenas para a abrir logo de manhã, quando se levantava.

-Acreditas em Deus? – Perguntou Rob.

-És católico? – perguntou ela admirada -Por aqui toda a gente é católica, certo?

-Sim, mais ou menos. Mas não precisas de religião para acreditar em Deus.

Miranda pensou um pouco.

-Sim, acredito. Quer dizer, não acredito que haja um velhote de barbas brancas a viver nas nuvens, ou assim…

Rob riu-se.

-Bem, acho que os católicos também não acreditam nisso. Mas então, qual é a tua ideia de Deus?

-Acho que é um ser espiritual que está tão acima do que nós somos que não o conseguimos sequer compreender.

-Isso é o que eu chamos uma excelente resposta que não diz absolutamente nada acerca de coisa nenhuma. Mas eu percebo-te. É difícil definir o indefinível, ou tentar limitar o infinito ou até mesmo tentar compreender o que está além da compreensão. É como tentar colocar um oceano num copo de água. Mas, não, não sou católico no sentido de que não fui batizado e não sigo os preceitos, mas, como te disse, quando aqui cheguei precisei de me integrar e isto faz parte integrante da cultura.

Atravessaram a porta e Miranda ficou surpreendida. Se por fora a capela não era muito diferente, em termos de decoração, das casas que a rodeavam, quase todas caiadas de branco com uma lista azul forte junto ao solo e a realçar as ombreiras das portas e janelas, por dentro as paredes estavam preenchidas de azulejos até meia altura, todos ricamente desenhados mostrando cenas bíblicas. O altar mor, embora pequeno, era todo trabalhado a talha dourada, com um trono vazio e uma coroa suspensa do tecto. A frente do trono, um crucifixo com a imagem de cristo. De ambos os lados do altar mor havia dois pequenos altares, também em talha dourada, um com a imagem de Nossa Senhora da Conceição e outro com a Imagem de Santo António, padroeiro da terra.

-Olhando do exterior, ninguém diria que a Capela é tão bonita.

-Uma das coisas que te posso dizer acerca deste país é: onde vires uma capela ou igreja com um aspecto antigo, se puderes, vai ver o que está lá dentro. Normalmente surpreendes-te.

Ele aproximou-se do banco corrido da ultima fila e ajoelhou-se, contemplando o altar e convidou-a a fazer o mesmo.

-Se acreditas em Deus, como afirmaste há pouco, então estás num sitio dedicado a ele. O Deus que descreveste não é o Deus de uma religião, é pura e simplesmente Deus. E embora a presença dele esteja em cada ponto do universo, em cada partícula, este é um local construído em sua honra. Portanto estas no sitio onde podes celebrar o criador e a criação. Os detalhes da celebração, para te ser franco, não acho serem importantes. – Ela acenou entendendo e ele continuou – É aqui que podes rezar por aquilo que queres.

-Mas eu não sei rezar.

Rob sorriu.

-Não precisas de ladainhas. Precisas é de focar os teus pensamentos e ser absolutamente honesta contigo própria, mesmo quando dói. Reconhecer o que achas que está errado em ti e tentar melhorá-lo. Perceber o que podes ter feito a outros que possa ter tido um impacto negativo e pedir a luz suficiente para corrigir os teus erros. Se o fizeres, de forma absolutamente sincera para contigo, estás a rezar.

Ela assentiu. Ele virou-se para a frente e ficou silencioso em contemplação. Ela pensou naquilo que ele disse e ficou também a meditar em toda esta situação, do que a trouxera ali, do que pretendia, da ajuda que precisava e estranhamente, uma calma suave caiu sobre ela.

Ao fim de algum tempo ali, ambos num sossego contemplativo, Rob levantou-se e fez o sinal da cruz, gesto em que foi imitado por ela, embora ela não fizesse bem ideia do porquê e saíram de novo para a rua.

-Então, pediste alguma coisa? – perguntou ele.

-Sim,…

-Não me digas o quê. – Interrompeu ele – Só para te dizer uma coisa: Lembra-te que Deus nunca te dá o que queres, mas sim o que precisas. E a maior parte das vezes, na vida, aquilo que queremos raramente precisamos e aquilo que precisamos raramente queremos.

Continuaram e Rob apontou para uma casa, já no fim da rua e consequentemente da população.

-Aquela é a casa da D. Clarisse. É ela que faz aquele pão delicioso que tens andado a comer. Ela já está velhota e só faz pão às Terças, Quintas e Sábados, mas quando faz toda a gente da região passa por aqui para vir buscar o pão fresco. Mas ela costuma fazer pão mais ou menos à justa para as encomendas que tem. Queres pão, para ter em casa em vez de teres de vir sempre tomar o pequeno almoço ao Zé?

Ela assentiu e Rob levou-a em direcção à casa. Bateu à porta e uma velhinha, que aparentava ter pelo menos uns oitenta anos veio à porta.

-Olha o Rob! – disse ela com um sorriso satisfeito – Não me digas que já comeste o pão todo?

-Não, D. Clarisse. Lá era eu capaz… Olhe, quero apresentar-lhe esta menina – fazendo menção a Miranda – que é estrangeira e está a ficar na casa grande da Herdade do Monte.

-Ah! Atã mas o monte nã estava abandonado?

-Eles agora alugam aquilo a gente de fora que queira vir aqui passar férias.

-Atã e ela veio p’raqui?

-Sim, ela e uma amiga. E vão ficar uns dias. Pode fazer mais uns dois pães para elas de cada vez?

-Está bem. Mas ela nã fala?

-Fala, mas só estrangeiro.

-Pois, ê isso de estrangeiro nã percebo nada. Atã e como é que fazemos com os pães se ê nã me intendo com elas?

-Não se preocupe. Ponha os pães no meu saco que eu depois dou-lhes.

A velhota entretanto olhou bem para Miranda e depois disse descaradamente:

-Olha lá, é tua namorada?

-Não. 

-Olha que fazes mal que a moça é bem jeitosa. Mas tem lá cuidado que essas moças estrangeiras nã sã de fiar.

Rob riu-se e despediram-se da velhota e afastaram-se.

-O que é que foi aquilo tudo, perguntou logo Miranda curiosa.

-Aquilo? Estava só a encomendar pão para ti. Ela vai entregar-mo e eu dou-to.

-Só isso?

-Bem, ela também estava a perguntar se eras minha namorada. Quando eu lhe disse que não, ela disse que eu fazia mal, porque tu és bem jeitosa.

Miranda corou e Rob riu-se.

Saíram da povoação e foram andando por carreiros estreitos, onde só se podia passar a pé por entre pequenas quintas cheias de produtos hortícolas e quintas maiores cheias de vinhas e oliveiras. Depois entraram num pinhal e continuaram pelo carreiro que era sempre a descer. Ouvia-se na distância um burburinho de água a correr, mas só ao fim de uma meia hora Miranda percebeu o porque, quando se aproximaram de um regato que serpenteava pelo meio do Pinhal. De repente abriu-se uma clareira à frente deles que era ladeada por mesas e bancos de cimento, e tinha também um enorme grelhador. O local estava completamente vazio e os únicos ruídos que se ouviam e a água a correr, o som da aragem a fazer restolhar as folhas das arvores e o canto de um ou outro pássaros distantes.

Rob sentou-se numa das mesas, à sombra, e ela acompanhou-o.

-Que é que achas do sítio?

-Pacifico. – respondeu ela com um sorriso.

-Nos fins-de-semana isto costuma estar cheio de pessoal que vem aqui conviver. Mas durante a semana está sempre vazio. 

Miranda assentiu e foi observando tudo à sua volta.

- Eu sei – continuou Rob – que tens as tuas assunções acerca de mim. Mas agora põe-nas de lado. Eu sou somente um conhecido teu, com quem falaste meia dúzia de vezes. Dizes que queres uma visão minha… Então podes começar por explicar “a birra” para eu te poder dizer alguma coisa. Senão vamos estar neste impasse até ao fim dos tempos.

Ela olhou para ele surpreendida pela forma direta, brusca mesmo, com que ele abordou o assunto. Ficou um bocado em silêncio, a contemplar a paisagem enquanto tentava organizar as ideias.

-Antes disso, posso só saber se tens alguma relação com o meu marido? Disseste sempre que nem o conhecias…

-Menti. – disse ele sem o menor remorso – Conheci-o há seis anos. Cruzamo-nos brevemente no Norte do Brasil, na floresta Amazónica.

-Só isso?

-Para já, sim.

-Mas o que é que… - Rob interrompeu-a, levantando a mão.

-Fizeste uma pergunta, dei-te uma resposta. Agora é a tua vez.

Miranda percebeu que não teria mais nada de Rob, se não continuasse a conversa de uma maneira proveitosa, por isso resignou-se e começou:

-Conhecemo-nos quando ainda eramos adolescentes. Podes achar piroso ou o que lhe quiseres chamar, mas no dia em que o vi pela primeira vez apaixonei-me por ele. A maneira como ele tocava enchia-me a alma e quando cantava… Foi uma paixão à primeira vista e para te ser franco, acho que foi mutua. A minha vontade de estar sempre com ele fez com que aos poucos eu começasse a tentar gerir a carreira dele. Sabes, apesar do talento, ele era completamente cego ao lado dos negócios. Mas acabamos por conseguir fazer uma dupla que funcionava muito bem mesmo. Comecei a marcar os concertos dele, a tentar fazer ouvir as musicas dele em rádios locais… A fama dele foi crescendo e foi-se tornando um culto, até ao ponto em que começamos a chamar à atenção algumas editoras interessadas em apostar nele. E depois conseguimos o contrato, mas Rob não ficou agradado. Chamaram produtores e escritores para fazer as coisas com ele, porque, como calculas, a editora não está ali pela arte, mas pelo lucro.

-Não é sempre assim?

-É, de facto é. Mas continuando, contrataram consultores de imagem que lhe diziam como se devia apresentar, escritores que lhe diziam como devia fazer as musicas, produtores que diziam como devia soar. O Rob detestou cada passo. Havia dias em que me dizia que sentia que estava a vender a alma. Ao ponto de desprezar as próprias musicas depois de gravadas. Mas tudo aquilo teve sucesso, aliás um sucesso fenomenal, que acabou por dar em digressões que se espalharam por quase todos os continentes e ocuparam centenas de pessoas entre planeamento e execução. Na ultima digressão chegavam a estar mais de cinquenta pessoas em palco e certas alturas entre bailarinos, figurantes, músicos e pessoal de apoio. O Rob não queria nada disto. E, olhando para trás, acho que o único motivo que o levou a continuar fui eu. Eu insisti, mostrando-lhe o quanto teríamos uma segurança financeira e que, quando a conseguíssemos, ele teria já uma carreira e seguidores suficientes para fazer o que quisesse.

-Então dizes-me que basicamente ele aceitou um emprego que não queria e vestiu uma imagem na qual não se revia por ti, por tua causa.

-Sim.

-E no meio disso tudo ganharam estatuto e muito dinheiro, conseguindo a tal segurança.

-Sim conseguimos isso tudo. Mas queria que percebesses que nenhum de nós vinha de uma vida abastada, antes pelo contrário. Daí talvez ser tão importante para mim essa tal segurança.

Rob assentiu, compreendendo.

-Mas depois algo se passou… - disse Rob.

-Sim. O contrato que tínhamos era de cinco álbuns. Os primeiros quatro deram-nos tudo aquilo que podíamos ter sonhado. E o Rob insistiu que não queria ninguém a escrever ou produzir o quinto álbum. A editora, depois de muita insistência minha, lá aceitou a condição. Ele passou semanas fechado sozinho no estúdio que tínhamos em casa e quando acabou o álbum, mostrou-mo. Assim que eu o ouvi fiquei preocupada com o que iria acontecer em seguida. O álbum não tinha absolutamente nada de comercial, estava nos antípodas daquilo que tinha sido lançado por ele anteriormente. E eu, em vez de ouvir as musicas pela arte e depois explicar a minha preocupação com a possível recepção do álbum, fiz exactamente o contrário. Ainda a primeira musica não tinha acabado e já eu o interrogava e dizia que, se calhar, não era o álbum certo para lançar. Mas desta vez o Rob não me ouviu, disse que era este ou nenhum e eu entreguei o álbum à editora.

-Posso quase imaginar a cara de alguns contabilistas na editora… - disse Rob com um sorriso.

-A cara dos contabilistas não foi o pior. Já a cara do CEO… Exigiram de imediato os projectos das gravações, que eu tive de dar, uma vez que eram contratualmente deles. E depois eles alteraram tudo e transformaram aquele álbum em qualquer coisa igual ao resto. Quando o resultado final foi entregue, foi como se uma luz se tivesse apagado no Rob. Creio que ele de alguma forma se ressentiu de mim, por eu ter entregue os projectos originais, embora eu não tivesse outra hipótese e começou a afastar-se de mim. Entretanto a editora tentava organizar uma nova digressão de apoio ao novo álbum que, como era de esperar, vendia bem no mundo inteiro, mas o Rob não se comprometia de maneira nenhuma, nem mesmo quando eu andava atrás dele à espera de uma resposta. E começou a recusar todas as entrevistas e as poucas que deu, nunca falou do ultimo álbum, que era basicamente o motivo pelo qual os jornalistas musicais queriam as entrevistas… E depois, um dia de manhã, saiu simplesmente pela porta fora e não voltou mais. Claro que eu achei que ele estava simplesmente a fazer birra, ou amuado, mas que dai a uns dias tudo entraria nos eixos, mas… Aqui estamos, oito anos depois.

Ela calou-se e ficaram ambos em silêncio, ouvindo a natureza à sua volta.

 


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Renascimento (XVI de XL)




Rob estava já acordado e desfrutava da sua torrada de pão Alentejano com manteiga, acompanhada por um sumo de laranja acabado de espremer quando lhe bateram à porta. Dirigiu-se à porta, ainda a mastigar e quando a abriu não ficou surpreendido de ver o Manuel à sua frente com algumas caixas de encomendas que ele esperava.

-Bom dia

-Bom dia, Rob. Eu sei que devia passar mais tarde, quando abrisses às dez, mas tenho uma volta grande e ter de andar para a frente e para trás dava-me cabo do dia…

-Sem problemas – agarrou nas caixas e assinou em como tinha recebido.

-Obrigado, Rob. – Disse o Manuel ao mesmo tempo que arrancava – Já me facilitaste a vida um bocadinho, que hoje vai ser longo.

A carrinha do Manuel arrancou e Rob fechava a porta quando viu o carro de Miranda a chegar e a parar em frente ao estabelecimento do Zé. Respirou fundo.

Voltou à cozinha onde se dedicou a acabar o seu pequeno-almoço perdido em pensamentos, não se apressando minimamente, antes pelo contrário. Depois foi-se vestir e, pontualmente às dez, como sempre, abriu a porta da loja, pendurou o sinal que indicava que estaria no estabelecimento ao lado e saiu de casa para is beber o café da manhã.

Assim que o Zé o viu a entrar só perguntou – Café? – Ao que Rob simplesmente anuiu. Antes de beber um café não era pessoa de grandes palavras.

Miranda estava sozinha numa mesa, a comer uma torrada de pão alentejano acompanhada de um café com leite. Assim que viu Rob todo o seu rosto se iluminou. Rob recolheu o seu café ao balcão e foi sentar-se junto dela, sem dizer uma única palavra, ainda com um ar de quem os neurónios não estavam a disparar as sinapses como deve de ser. Deu um golo no café, saboreou-o, respirou fundo e disse por fim:

-Bom dia.

-Bom dia. Ainda estás a acordar, pelos vistos.

-É. – respondeu ele, eloquente como costumava ser de manhã – Daqui a pouco a cafeína já começa a fazer efeito.

Ela sorriu e continuou a comer com deleite.

-A Cassandra? Não está contigo?

-O Tobias combinou com ela levá-la a ver um sítio qualquer… Nem sei bem, mas ela levantou-se às sete e ele veio busca-la. Ele está a ser impecável…

-É. Também reparei. E estranhei, se queres que te diga. Ele não costuma ser assim, muito menos com mulheres. Para te ser franco, até me preocupa.

-Não gostas de ver o teu amigo assim, mais feliz e bem-disposto?

-Gosto bastante, até. O problema vai ser quando acabar. Ele já passou por muita coisa e não gostava de o ver com o coração partido. Não te esqueças que são pessoas de dois mundos completamente diferentes e opostos. Vocês vão voltar para Nova-Iorque, mais dia menos dia, e isto vais ser uma recordação interessante, uma pausa nas vossas vidas atarefadas. Mas para o Tobias este tempo é capaz de ser bem mais do que isso.

Miranda percebeu a preocupação de Rob.

-Olha, eu sei que só conheces a Cassandra há pouco mais de um dia, mas ela é bem capaz de te surpreender pela positiva.

-Então?

-Bem, nos conhecíamo-nos de vista, ela mora no mesmo complexo de apartamentos onde nós… - e apercebendo-se da gafe, apressou-se a corrigir – onde eu moro, mas quando fiquei sozinha, ninguém apareceu. Os amigos que eu julgava chegados, as pessoas que eu esperava que me apoiassem… de repente parecia que toda a gente tinha desaparecido da minha vida. Um dia tocaram à porta e era a Cassandra, com um bolo feito por ela e a perguntar se eu não queria companhia para um chá. Foi assim que nos tornamos amigas. Dois anos depois, quando o marido dela morreu, aproximamo-nos ainda mais. Ela está muito bem na vida, o marido deixou-lhe um património imenso e ela já foi cortejada por metade dos solteiros maduros elegíveis em Nova-Iorque. Que eu saiba ela saiu com dois homens nestes 6 anos, e em ambos os casos a saída não passou de um jantar e uma peça na Broadway. Isto só para te dizer que ela não é a dondoca rica estereotípica.

-Ok. – Respondeu Rob pensativo. – Espero que tenhas razão.

-Se ela não estiver interessada no Tobias, nada vai passar de uma amizade. Se estiver, acredita, ela vai ser bem clara a cândida com ele e nada se vai passar sem ter sido bem falado e planeado. Ela já não é uma garota à procura de excitação. E apesar de muitos acharem que ela é apenas uma dondoca privilegiada, a verdade é que passou a vida quase como que prisioneira numa torre de marfim. Podia ter tido tudo, mas aquilo que também teve foi um marido ausente, que se matou a trabalhar simplesmente porque o trabalho era a sua vida. Viveu décadas em solidão e acredita que não é fácil. Sobretudo porque apesar dos pesares, ela nunca abdicou dos seus princípios nem procurou preencher a sua solidão fora dos laços matrimoniais.

-Se assim for, - disse Rob com um sorriso – fico bem mais descansado.

-Deixa-os divertirem-se – Disse Miranda rindo.

-Mas tu não foste com eles porque…?

-Não queria segurar a vela.

Rob olhou para ela, sabendo que a resposta era apenas parcialmente verdade, mas decidiu não insistir. Acabou de beber o café e agarrou no jornal, como sempre fazia, dando uma olhada pelas notícias enquanto ela acabava de comer. Quando ela acabou ficou simplesmente em silêncio a olhar para ele enquanto ele acabava de ler uma noticia que lhe tinha despertado o interesse, tendo ele dobrado o jornal em seguida e pousado.

-Gostas mesmo de ler o jornal, pelos vistos.

-Tornou-se um hábito. Quando aqui cheguei sabia duas palavras em Português, “obrigado” e “por favor”, embora tecnicamente a segunda sejam duas palavras, mas em inglês é só uma. Foi a ler o jornal e alguns romances que consegui aprender e tenho algum orgulho de em seis anos conseguir falar quase como um nativo e com um sotaque mínimo. Português é uma língua tramada. Parece que agarraram em todos os sons difíceis de pronunciar em todas as línguas e fizeram uma com tudo.

-Há quem diga que aprendendo Espanhol se torna mais fácil…

-Sim, mas isso é quem aprende Português com Brasileiros. A maneira como eles falam é mais aberta e fácil de apanhar. Às vezes custa-me a acreditar que em Portugal e no Brasil se fala a mesma língua. De qualquer maneira, fiz, e ainda continuo a fazer, um esforço enorme para me integrar. O aprender a ler Português correctamente foi uma enorme parte. Mas não creio que estejas aqui e tenhas deixado a tua amiga ir passear sozinha para discutires os meus hábitos de leitura, pois não?

Ela corou ligeiramente. Não esperava que ele fosse tão directo, se bem que, pensando bem, devia ter esperado. Talvez a surpresa tenha sido ele ser tão contido desde que ela tinha voltado. Atribuiu isso ao facto de ele, provavelmente, não querer fazer grandes alaridos com mais pessoas à volta.

-Não, de facto não. Podemos ter a tal conversa?

-Depende…

-De…?

-Bem, se eu bem percebi, queres a minha perspectiva em algumas coisas. Para eu te dar uma perspectiva, tenho de ter informação, que tu nunca me deste porque assumiste que eu a tinha. Diz-me, ainda acreditas que eu sou o teu marido?

Ela pensou um pouco. Percebeu ali que tinha duas hipóteses. Ou seria honesta e talvez chegasse a algum lado, ou provavelmente a conversa não chegaria longe.

-Acredito! Mas se já tive cem por cento de certeza, agora já nem tanto. Mas tenho quase a certeza que, se não és, estás de alguma maneira ligado a ele. 

-E o que é que te dá essa certeza?

-Uma conta nas ilhas Caimão que transfere uma quantia mensalmente para a tua conta.

Rob não pareceu surpreso por ela saber este pormenor.

-Deves ter pago uma pipa de massa para chegar a essa informação. E nem me atrevo a perguntar como lá chegaste.

-Sou-te franca, também não sei. A agência de investigação que contratei tem os seus métodos. Mas sim, custou uma pipa de massa.

-E valeu a pena o investimento?

-Ainda não sei… - disse ela com um sorriso – Por um lado, sim. Afinal estou aqui, e estranhamente está-me a saber pela vida estar aqui, longe de tudo. Se calhar, só mesmo por isso, sim, já valeu. Tudo o resto que venha já é ganho.

Rob acenou com a cabeça, assentindo. Depois virou-se para o Zé.

-Zé, se aparecer por aí alguém para a loja… 

O Zé riu-se.

-No caso dessa improbabilidade acontecer eu trato do assunto, não te preocupes. Vai lá…

-Olha lá, achas que podes fazer uma carne de porco à alentejana para o Jantar?

-Não vens almoçar?

-Não sei. Sou capaz de estar ocupado. – Respondeu Rob apontando para Miranda. O Zé sorriu.

-Tudo bem, vai lá, não te preocupes.

-Olha, dás um toque ao Tobias e dizes-lhe que o jantar é aqui e é para os quatro? E fazemos as contas mais logo?

-Pá, já estas a dar demasiado trabalho. Vai-te lá embora antes que me peças ainda mais tretas.

Rob tirou a chave da porta da sua loja do bolso e entregou-a ao amigo.

-Obrigadão. – Disse ele, virando-se em seguida para Miranda e fazendo-lhe sinal para seguirem. Ela acenou ao Zé e saíram os dois.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Renascimento (XV de XL)



Entraram no estabelecimento do Zé e elas estavam já sentadas a conversar animadamente de lados opostos de uma mesa quadrada posta para quatro pessoas. Rob olhou com um ar intrigado para o Zé que se limitou a responder antes que ele perguntasse:

-Presumi que viesses cá jantar e adiantei-me. É bacalhau com batatas para quatro e até pus ovos e couve Portuguesa, como tu gostas?

-E se não me apetecer isso?

-Vais comer a casa.

Sem dúvida, o mundo parecia querer testar a sua paciência cada vez que a gringa aparecia. E agora, ainda por cima, era em dose dupla. De repente apanhou-se a si próprio e sorriu com a ironia. Tratava-a por gringa, como se não fosse ele também um gringo. 

Dirigiu-se à casa de banho onde se refrescou, e depois sentou-se na mesa, no único lugar vago onde o Tobias, apesar de recém-chegado parecia já ter sido absorvido pela conversa delas. Ele limitou-se a cumprimenta-las, e deixou a conversa fluir mantendo-se em silêncio.

Tobias falava-lhes de sítios e terras à volta onde tinham de ir, sempre acompanhado de uma história que dava contexto, quer fosse algo histórico acerca do local, quer fossem lendas.

Foram entretanto interrompidos pelo Zé, que trazia a travessa cheia com batatas, couves, quatro postas de bacalhau e quatro ovos cozidos. Cassandra tentou imitar o que via Miranda fazer, que esta por sua vez tinha visto Rob fazer, para se livrar das espinhas e pele do peixe, serviram-se do resto e depois Miranda disse a Cassandra o que fazer, tendo esta provado o prato e depois agarrado num pedaço de pão que molhou no azeite e deleitou-se.

-É realmente tão bom como disseste. – Disse Cassandra a Miranda.

-Esperem até o Zé vos fazer uma carne de porco à Alentejana. Se acham isto bom… Acreditem, é só uma entrada. – Disse o Tobias.

-Sabes que uma afirmação dessas eleva muito as expectativas. Está a colocar a barra num sítio alto. – Disse Cassandra.

-Eu sei onde a estou a colocar. E não te preocupes, não te ia enganar. Depois ainda tinha de me casar contigo…

-Desculpa? – Perguntaram ambas as mulheres quase em uníssono.

Tobias riu.

-É um dito antigo. Sabem, antigamente quando um rapaz conseguia chegar a vias de facto com uma rapariga antes do casamento, dizia-se que o rapaz a tinha enganado. Claro que, a não ser que o rapaz fugisse, acabava por ter de se casar com a rapariga como castigo. Dai dizermos a alguém que não o enganávamos, senão ainda tínhamos de casar com essa pessoa, como castigo.

-Isso quer dizer que se me enganares, o teu castigo é casares comigo? – Perguntou Cassandra num tom atrevido. Tobias corou mais que um pimento vermelho.

-Bem,… Quer dizer,…

-Deixa estar, já percebi que não ias querer um castigo tão grande…

E todos se riram, até o Zé, que os olhava de trás do balcão com um copo de aguardente velha caseira na mão.

O jantar foi passando em animada cavaqueira, sobretudo entra Cassandra e Tobias, embora Miranda estivesse atenta e fosse e interviesse frequentemente. Já Rob parecia estar simplesmente absorto no ambiente, ou nos seus próprios pensamentos. Olhava para Miranda e pensava no que Tobias tinha dito à tarde. Ele tinha razão: Mas saber o que fazer e como fazer são duas coisas completamente diferentes… Além disso, ela é que tinha vindo aqui à procura de algo. Mas tudo na vida tem um preço. A questão é se ela algum dia estaria disposta a pagá-lo.

Acabaram a refeição, sempre com o Tobias a tomar conta da conversa com boa disposição. Ele estranhava o amigo, que normalmente não se portava assim, mas olhando para Cassandra, não era difícil perceber. Ela acabaria por se ir embora e provavelmente esquecer-se deste pedaço abandonado de mundo assim que chegasse à “Grande Maçã”, e ele por cá continuaria. Ela já conhecia bem o quanto as coisas na vida são transitórias, e o facto de não haver expectativas de lado nenhum em relação ao futuro era, sem dúvida apelativo para ele. Afinal, não era difícil de perceber que ele não se tinha ligado a ninguém porque a morte da mulher tinha tido um impacto demasiado grande. E de qualquer forma, na idade que tinha, as potenciais relações que teria nesta terra teriam de ser logo levadas a sério, sob pena de ele começar a ser visto com desconfiança. Não sabendo ele sequer se queria ter alguém ao seu lado, era complicado tentar ter alguma relação neste clima, e assim, ele preferia simplesmente não ter.

Mas Cassandra não era daqui. Não havia espectativas. Fosse o que fosse que acontecesse, e independentemente do tempo que elas levariam para ir embora ou da natureza da relação, fosse uma simples amizade ou algo mais, era implícito que seria somente a prazo.

-Rob, ouviste o que eu disse? – Perguntou de repente o Tobias despertando-o dos seus pensamentos.

-Não, desculpa, estava distraído…

Tobias olhou para ele com o sobrolho levantado, mas não fez nenhum comentário.

-Estava a dizer que, uma vez que só ia aproveitar as férias deste ano para ficar por aqui a bezerrar, acho que vou falar com o patrão e ver se as consigo tirar agora, e assim sempre posso mostrar a região às nossas amigas…

-Fazes bem. Pelo menos andas entretido e elas não se aborrecem de morte.

-E tu também podias fazer companhia.

Ambas olharam pare ele com um ar esperançado, sobretudo Miranda, mas Rob limitou-se a responder:

-Sabes bem que tenho a loja…

A esperança que estava espelhada nos olhos de Miranda foi substituída por uma súbita tristeza, que não passou despercebida a Cassandra.

Não só o Tobias se riu à gargalhada, mas nem o Zé não se conseguiu conter à distância.

-Sim, o que será da região… Afinal todos sabemos as filas enormes que costumam estar aqui à porta para comprar cordas… Ou tens medo que o Zé fique solitário se não estiveres por aqui?

Rob limitou-se a encolher os ombros.

-Pá, ó Tobias,… - gritou o Zé lá do fundo - …queres pôr-me na falência? O que é que eu faço sem o meu melhor e na maior parte do tempo único cliente?

Rob corou enquanto Tobias explicava a ambas o que se estava a passar, para elas se rirem também.

O jantar acabou e a conversa continuou, liderada por Tobias, que falava daquela terra e dos costumes, estando elas atentas e curiosas e Rob atento, mas sem intervir, até porque o assunto, não lhe sendo alheio, tinha para ele uma perspectiva diferente, uma vez que já ali vivia.

-Por falar nisso, podíamos ir a Vergalhos de cima. A colectividade tem lá cante Alentejano hoje. Foi o Quim que me disse, ele faz parte lá daquilo. Era giro para elas… Que é que achas, Rob? – Perguntou Tobias, quase o sobressaltando.

-Bem, por mim… Depende delas e do Jet-lag…

Elas olharam uma para a outra, e respondeu Miranda pelas duas:

-Nós estamos bem. Aliás estamos sem sono nenhum, passamos o dia quase todo a dormir…

-Sim, mas convém habituarem o corpo a outro ritmo, senão vão passar os dias a dormir.

-Também aquilo não acaba tarde, que aquele pessoal tem de ir trabalhar amanhã. – Afirmou o Tobias. – Vamos então?

Fizeram as contas com o Zé, com ambas a insistir ficarem com a conta e acabando por levar a delas avante, apesar dos protestos, com ajuda do Zé.

Depois, ao saírem, Miranda adiantou-se, tirou a chave do seu carro da carteira e afirmou sem deixar espaço a discussão.

-Vamos no meu carro. É o mais confortável e escusamos de levar mais carros – e entregou a chave a Rob – Sabes o caminho, não sabes?

-Sei.

-Leva tu o carro. É mais prático.

-Mas…

-Eu já te vi conduzir. – Limitou-se ela a dizer com um sorriso – Confio em ti. Além disso o carro é alugado…

Rob sentou-se ao volante, viu o encaixe da chave que rodou, ficou a olhar para as miríades de luzes e ecrãs digitais e sabia ele lá mais o quê.

-Já não estou habituado a isto.

-Estás a ficar mais velho que eu. – Disse o Tobias do banco de trás.

Viu que o carro era automático, engrenou-o, carregou suavemente no acelerador a arrancou.

Percorreram estradas estreitas, sobretudo para o carro em que seguiam, atravessando vinhas e olivais. Quando chegaram ao cimo de um monte Rob parou de repente o carro, para surpresa dos restantes e disse com um sorriso:

-Saiam. 

-Algum problema? - Perguntou Miranda, ao seu lado, admirada.

-Não. – Respondeu Rob – Só quero que vejam uma coisa. 

Saíram todos do carro e olharam em volta. Viam-se quilómetros com luzes pontilhadas na paisagem com alguns sítios com uma maior concentração, onde estava alguma pequena povoação. Tobias apontou para um desses pequenos aglomerados.

-É para ali que vamos.

Elas olhavam em volta admiradas.

-Que paisagem espectacular, assim à noite. Nunca pensei… Obrigada, Rob. – disse Cassandra.

-Não era isto que vos queria mostrar.

-Então? – Perguntou Miranda.

Ele limitou-se a apontar para cima. Elas acompanharam o gesto com o olhar e ficaram deslumbradas com toda a glória de um estrelado céu nocturno sem interferência de poluição luminosa. Cassandra não se conteve e soltou um – Wow! – e Rob riu-se.

-O pessoal de Nova-Iorque tende a esquecer-se que isto existe acima das suas cabeças.

Elas ficaram mais um pouco absorvidas pela beleza, mais ainda quando viram estrelas cadentes. Depois entraram de novo no carro e fizeram o curto percurso até ao destino.

Quando entraram na colectividade, sentaram-se a uma mesa e pediram bebidas e estavam ainda a ser servidos quando se fez silêncio e o espectáculo começou. Elas ficaram maravilhadas a ouvir aqueles cantos tradicionais, embora não percebessem uma palavra do que era dito.

A certa altura, quando Rob ia para pegar no seu copo, roçou com a sua mão na de Miranda, o que a sobressaltou pelo toque inesperado, e ela olhou para ele, enquanto ele desenhava um “desculpa” com os lábios para não fazer barulho, ao que ela respondeu dando-lhe um pequeno aperto na mão e ele não pode deixar de reparar no brilho que bailava nos olhos e sorriso dela.


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Renascimento (XIV de XL)



Eram umas cinco da tarde quando Rob entrou no barracão com uma geleira com latas de cerveja e a guitarra nas mãos e cumprimentou Tobias casualmente, pousando ambas as coisas, abrindo a geleira e mandando uma lata a Tobias, que estava atrás da bateria e tirando uma para si, que abriu de imediato.

-Fechaste a loja cedo, hoje…

-O movimento estava lento…

-Ao contrário do costume, não é? – perguntou o Tobias no gozo.

-Pois… Já estava farto de olhar para a tromba do Zé. Queres tocar um bocado? Sem cenas de ensaios ou afins, só fazermos uma jam…

-Ok. E queres tocar o quê? – perguntou o Tobias enquanto Rob preparava a guitarra.

Rob pensou um bocadinho, olhando para o braço da guitarra como se esperasse que este lhe desse a resposta e depois os seus dedos começaram a mover-se pelas cordas com dinâmica e sentimento desenhando melodias. Tobias tentou simplesmente acompanhá-lo enquanto observava o amigo, pela primeira vez que se lembrava, a tocar algo que não lhe era pedido.

Os dez minutos que tocaram, na sua maior parte algo desconjuntados, mas com momentos em que pareceram encaixar na perfeição, deixaram um largo sorriso na face de Tobias.

-Isto soube mesmo bem, pá. Tu quando te soltas, tocas umas coisas.

Rob fez um sorriso quase envergonhado, pousou a guitarra com cuidado no sofá e sentou-se ao lado dela, dando mais um gole de cerveja.

-Tenho dias… - acabou por dizer.

-Olha, estou contente por ter apanhado um desses dias.

Ficaram os dois em silêncio por um bocado, beberricando. O Tobias acendeu um cigarro e depois de uma passa e de fazer algumas argolas de fumo, que viu divertido esvanecerem-se á sua frente, perguntou:

-Então? Vais falar?

-Acerca de quê?

-Vá lá, Rob. Eu não sou parvo. 

Rob ficou em silêncio.

-Há mais nesta história que aquilo que queres dizer, não é? – Rob ficou com um ar sério a olhar para ele - A Miranda tem razão? És o marido dela?

Rob hesitou antes de responder:

-Não.

-Seja como for, ou porque motivo for, eu vejo como ela te afecta. E percebo o que ela quer de ti, embora não compreenda bem o porquê. Aquilo que tenho a certeza é que tens de resolver isto. Por ti, e por ela, mas sobretudo por ti. Sabias que não vieram só por uns dias? Alugaram um monte e a Cassandra disse-me que não têm data de retorno.

-A Cassandra… Estavas muito entretido à conversa com ela. Até te estranhei.

-Estava só a ser simpático, coisa que te tenho visto esquecer em algumas ocasiões.

-Chama-lhe simpatia. Mas não achas que ela é demasiado nova para lhe quereres ferrar o dente? Não que te recriminasse, mas se calhar já não tens pedalada…

-Ao contrário do que possas pensar a Dona Cassandra é uma Senhora bem perto da minha idade, para tua referência.

-A sério? – perguntou Rob com genuína admiração – Parece ser pouco mais velha que a Miranda…

-As aparências iludem. Mais ainda nestas citadinas com dinheiro e ginásios e sei lá mais o quê… Mas, voltando atrás, foi claro na nossa conversa que ela estava curiosa acerca de ti, mas sem querer ser óbvia. Mas falamos do concerto, das músicas que gostou, das que conhecia, de como é que é tocar bateria, e no meio disso tudo ela explicou-me que tinham vindo sem planos e que ela estava encantada com aqui o nosso cantinho do mundo. Isto tudo só para te dizer que, quer queiras, quer não, vais ter de resolver o que tens para resolver. O problema não se vai embora tão cedo. Entretanto, temos de ir.

-Temos?

Tobias riu-se.

-Pá, no meio das conversas apareceu o tema do jet lag e de que provavelmente iam passar as duas o dia a dormir. Como eu sabia que provavelmente ias jantar ao Zé, perguntei-lhes se não queriam aparecer lá por volta das sete e avisei o Zé, para ter qualquer coisa.

Rob respirou fundo e deixou descair os ombros.

-Aposto que elas vão querer bacalhau com batatas e couve Portuguesa.

-A Cassandra falou-me nisso e foi o que pedi ao zé. Como é que sabias?

-Foi o que jantei com ela no dia em que veio ao ensaio.

-Ah! – exclamou o Tobias com a súbita realização. – Pelos vistos a Miranda gostou…


terça-feira, 24 de setembro de 2024

Renascimento (XIII de XL)



Assim que acabou a última música do último encore, e ao contrario de todos os outros, que siaram de imediato do palco, Rob ignorou o suor e o cansaço, deu dois goles numa cerveja que lhe tinham trazido, arrumou de imediato a guitarra, que limpou meticulosamente, demorando o seu tempo, se calhar mesmo mais que o necessário. Depois começou a arrumar os seus cabos e deixá-los prontos para transportar.

Isto era parte natural da sua rotina, quando davam concertos, mas hoje era também uma maneira de evitar sair do palco. Francamente, não sabia o que devia fazer. Sabia o que queria, colocar tudo no seu carro, arrancar direito a casa e ir dormir. Amanhã seria outro dia.

Mas entre o querer e o dever há uma enorme diferença.

Acabou a cerveja, tirou a t-shirt, limpou o suor do corpo e da cara com uma toalha que colocou dentro de um saco, junto com a t-shirt suja, vestiu uma lavada, sentindo-se de imediato um pouco melhor, se bem que um duche seria o que calhava mesmo bem, e já antecipava um, logo que chegasse a casa.

Agarrou no estojo da guitarra e finalmente desceu do palco.

Como esperava, estava toda a gente sentada num par de mesas corridas na barraquinha do Vasco, o Pessoal da banda, respectivas famílias, o Tobias sentado ao lado da mulher que tinha vindo com Miranda e aparentemente com alguma conversa interessante entre os dois, a própria Miranda e Zé, que assim que o viu se levantou do lado dela fazendo-lhe sinal para se sentar.

“Bem…” pensou resignado. O Zé ainda lhe perguntou:

-Queres alguma coisa?

-Água. – respondeu – muita água.

E sentou-se na ponta do banco corrido, tirou dois pedaços de pano do bolso que colocou no chão e na esquina da mesa onde depois encostou o estojo da guitarra. Entretanto o Zé trouxe-lhe uma garrafa de litro e meio de água, que ele abriu e de onde bebeu avidamente. Tinha mesmo sede.

Ao longo disto tudo tinha plena consciência dos olhos de Miranda pregados em si, embora ainda nem se tivesse virado para ela.

Por fim, pousou a garrafa de água na mesa, respirou fundo, voltou-se para ela e disse simplesmente:

-Obrigado!

Miranda sorriu.

-Pois, deu para perceber que recebeste a encomenda que te mandei.

-Como vês… Não estava à espera que estivesses presente na primeira vez que subi com ela a um palco.

-Mera coincidência. Chegamos hoje, ao fim da tarde, o Zé explicou-nos mais ou menos o que se passava, – e Rob imaginou o Zé a fazer figurinhas para não dar a perceber que as percebia perfeitamente e não conteve um sorriso – trouxe-nos aqui, e cá estamos.

-Quem é a tua amiga?

Miranda lembrou-se de repente de Cassandra. Estava tão absorta nele… Virou-se para a amiga e tocou-lhe no ombro, interrompendo a conversa desta com Tobias. Rob olhou de relance para ele, que tinha estampado no rosto um sorriso de um gato que lambeu leite-creme.

-Cassandra, desculpa interromper, – disse Miranda quando ela se voltou – este é o Rob.

Cassandra olhou para ele com um genuíno sorriso luminoso.

-Estou encantada por finalmente te conhecer. Tenho ouvido falar muito de ti nos últimos tempos.

-Cassandra… - disse ele num tom de voz algo vago, mas recompondo-se logo em seguida mostrando-lhe um sorriso luminoso que contrastava com a maneira como Miranda tanto o descrevera – É um gosto – disse ele, apertando-lhe a mão.

Cassandra sorriu, e sendo perspicaz, voltou de novo a sua atenção para Tobias. Rob disse novamente a Miranda:

-Mas, voltando atrás, obrigado. Não sei porque mandaste esta guitarra, mas… Nem sei o que te dizer.

-Não digas nada. Eu sei que tu saberias o que era. – E de repente ocorreu-lhe uma ideia preocupante – Espero que não penses que há alguma condição agarrada a este “empréstimo”.

-Não, não julgo. – Disse ele como se compreendesse mais do que deixava ver. – Não está a ficar tarde para voltarem para o Hotel?

Miranda sorriu.

-Não. Conseguimos alugar uma casa de turismo rural que fica perto da povoação.

-Gostaste mesmo do sítio, pelos vistos.

-A comida também ajuda. – respondeu ela – Mas é mais pela companhia.

Ele recordou rapidamente todas as interacções que tinham tido, franziu o sobrolho e perguntou:

-Porquê?

-Porque eu preciso de ajuda. E acho que só tu é que me podes ajudar.

Rob ficou com o olhar fixo nela, sem responder.

Entretanto acabaram por ser absorvidos pelas conversas do resto da mesa, que não durou muito mais tempo, uma vez que ainda tinham e arrumar o palco e transportar os instrumentos para o barracão, antes de irem para casa.


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Renascimento (XII de XL)


 -Pá, o Zé saiu daqui há pouco à tua procura. Não o Viste? – Alguém perguntou a Rob.

-Não…Mas ele agora vai saber onde eu estou. – Respondeu Rob enquanto subia para o palco carregando o estojo que não tinha saído do seu lado mesmo durante o jantar. 

Rob colocou o estojo por detrás da sua coluna de guitarra, agarrou num pano de flanela preta, com o qual envolveu o fivela do seu cinto, depois tirou a guitarra da caixa, pondo-a a tira colo, ligou-a e afinou-a, enquanto os seu colegas faziam o mesmo excepto o Paulo, que corria todos os microfones em palco dando-lhes toque com o dedo e certificando-se que estavam a funcionar.

Olharam uns para os outros, certificando-se que estava tudo pronto e, à contagem até quatro pelas baquetas do Tobias, o concerto arrancou.

O súbito ruido acompanhado da constatação que o espaço se enchia rapidamente sobressaltaram Miranda e Cassandra, que, olhando para o palco, rapidamente viram Rob.




Cassandra assistiu ao repentino transfigurar da amiga, que de repente parecia uma adolescente que apontava para o palco e lhe dizia quase aos gritos, para se ouvir acima da música:

-É o Rob. E esta a tocar com a guitarra.

Cassandra não podia estar mais feliz ao ver a maneira como os olhos de Miranda brilhavam, mas era um sentimento tingido pela preocupação de que as esperanças dela pudessem vir a não se concretizar.

Miranda levantou-se e dirigiu-se ao balcão onde pediu a conta, pagou, agradecendo a Vasco, voltou à mesa, agarrou na amiga pela mão e foram ambas para o meio da multidão que já se formara quando a primeira música chegou ao final. 

Mas a verdade é que duas Nova-Iorquinas no meio do Alentejo, por mais inconspícuas que estejam, notam-se como gotas de azeite num copo de água.

E quando Rob passou os olhos pela multidão à sua frente, no fim da música, lá estavam elas. Não foi só ele que as notou. Todos as notaram e olharam para Rob com um ar de gozo. O Tobias voltou-se para ele, enquanto se ria do seu ar aborrecido:

-Pá, a tua “mulher” voltou.

-Já reparei. - Respondeu ele com um ar resignado. – Vamos mas é seguir com isto.

Continuaram o concerto.

Se o Rob já não costumava ser muito expansivo, Hoje praticamente não saia de perto do seu amplificador. Tocava em modo automático, sem prestar atenção ao que fazia e sem precisar de o fazer. A guitarra parecia puxar a música dele, respondendo a cada toque. Mas enquanto se deixava diluir no som, os seus pensamentos iam para aquelas duas mulheres, que por esta altura se viam cada vez mais rodeadas por homens e rapazes, com os mais audazes a tentarem meter-se com elas enquanto elas se divertiam a dançar ao ritmo da música.

De repente viu o Zé aparecer perto delas, afastando os mais atrevidos quando perceber que elas estavam com ele, e fazendo dispersar os olhares que não desapareceram, mas se tornaram mais fugazes e discretos, deixando Rob mais tranquilo, o que o deixou livre para usufruir do primeiro concerto com aquela guitarra.


sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Renascimento (XI de XL)



O enorme todo o terreno preto fosco parou na rua deserta em frente ao estabelecimento do Zé, que, meio sobressaltado levantou os olhos das palavras cruzadas que fazia no jornal. Reconheceu de imediato Miranda quando esta literalmente desceu do lado do condutor, mas ficou surpreendido de ver a porta do passageiro abrir e sair outra mulher.

Desta vez nenhuma delas vinha vestida de forma espampanante, apenas de calças de ganga, t-shirt e ténis com um pequeno salto, as duas vestidas quase de igual, mas era óbvio que não eram peças de pronto-a-vestir, da maneira como assentavam.

Miranda dirigiu-se directamente ao estabelecimento, seguida da outra que olhava em volta, tentando absorver o que via.

Miranda entrou sorridente no estabelecimento e dirigiu-se-lhe de imediato.

-Hi, Zé. – disse com um sorriso enquanto lhe esticava a mão.

-Olá Miranda. – Devolveu ele o cumprimento com um sorriso, apertando-lhe a mão.

Miranda apontou para a amiga.

-Cassandra. – Disse simplesmente, enquanto esta parava de olhar em volta, olha para ele com um sorriso e lhe estendeu a mão, que Zé apertou também.

-Muito gosto. – disse.

-Two cofees, please? – disse ela, fazendo o numero dois com a mão.

Zé pegou num copo alto de vidro, olhando para ela com um ar inquiridor, mas ela acenou que não e apontou para as chávenas. Zé sorriu, pôs dois cafés a tirar e colocou os pires no balcão.

Serviu-lhes os cafés, que elas começaram a beber com deleite.

Por fim Miranda perguntou:

-Rob?

Zé pensou um pouco e fingiu tocar e depois apontou para longe.

-Pelos vistos o Rob está a tocar algures. – disse Miranda a Cassandra.

-A tocar?

-Sim, a banda dele toca em alguns concertos por aqui.

-E onde?

Zé, como se tivesse entendido estendia já um mapa no balcão. Apontou para o sítio onde estavam e percorreu uma estrada com o dedo para uma povoação próxima.

Zé apontou para si próprio e depois para a povoação, dando a entender que também iria para lá. Miranda apontou para o relógio. Zé mostrou-lhe os dez dedos e depois fez um sinal entre si e a direcção da povoação. Miranda assentiu.

Sentaram-se enquanto o Zé desligava as luzes e a máquina do café. Depois este convidou-as a sair e trancou tudo. Fez-lhe sinal para irem para o carro e esperar, o que elas fizeram.

Zé apareceu pouco depois numa pick-up de caixa aberta com um aspecto bastante gasto, fazendo-lhes sinal para o seguirem. Fizeram alguns quilómetros devagar, através de estradas estreitas e sinuosas onde por vezes só dava para passar um carro, até chegarem à entrada de uma povoação onde a estrada estava cortada e um polícia desviava os carros, ou para uma estrada alternativa, ou para um enorme campo que servia de parque de estacionamento temporário, já cheio de carros.

Seguiram o Zé para esse campo, estacionando ao lado dele e depois acompanharam-no a pé pela estrada fechada em direcção à povoação.

Pouco depois de entrarem na povoação chegaram ao adro da igreja onde tiveram de parar um pouco. A procissão retornava à igreja naquele momento e era impossível atravessar para o outro lado. Cassandra e Miranda olhavam maravilhadas, nunca tendo presenciado algo assim.

Viam os andores e as estátuas dos santos, carregados em ombros, acompanhados por músicas solenes que eram cantadas pela multidão que acompanhava o desfile.

Quando por fim puderam passar, acabaram de atravessar a povoação e foram dar a um campo onde estava um palco montado, com um espaço largo em frente, ladeado por barraquinhas de comes e bebes.

O cheiro espesso a carne grelhada que tingia o ar serviu para aguçar o apetite das duas, e Miranda fez um sinal a Zé, indicando que ambas tinham fome. Zé fez-lhe sinal para esperar um pouco, enquanto olhava em volta procurando algo, ou alguém. Não vendo o que queria encolheu os ombros e fez-lhes sinal para o seguirem. Levou-as até uma das barraquinhas e indicou-lhes uma mesa, fazendo sinal para esperarem e dirigiu-se ao balcão da barraquinha.

-Vasco, dá aí duas bifanas para as bifas, faz favor. – disse ele.

-Estás muito bem acompanhado, ó Zé. Agora andas a engatar bifas, armado em Zézé Camarinha ou quê? – respondeu o Vasco que olhou bem para elas e acrescentou – Mas também, se andas, tens muito bom gosto.

-Nada disso. Não são companhia para mim. Só vim fazer uma entrega – respondeu o Zé, piscando o olho.

-Olha, azar o teu. Não me as queres entregar a mim?

E riram-se os dois, enquanto Vasco colocava dois pratos de papel com bifanas no balcão.

-Duas bifanas para as bifas especiais. – disse.

-As bifanas ou as bifas.

-Ambas!

Zé voltou à mesa com as bifanas que colocou em frente a elas e voltou atrás para ir buscar duas garrafas de água. Elas ficaram surpreendidas a olhar para as sandes.

-Isto deve ser uma coisa mesmo de cá, não? – Perguntou Cassandra.

-Sim, parece uma sandes de porco.

Agarraram no pão com cuidado, tentando a todo o custo não se sujar com o molho mas lá acabaram por provar as sandes.

Talvez fosse o facto de não comerem há muitas horas, ou talvez o facto de o sabor ser intenso e agradável, mas comeram com deleite, perdendo algum decoro e acabando a chupar os dedos para os limpar dos molhos como viam algumas pessoas a fazer à sua volta, enquanto riam como duas adolescentes.

O Zé acabou por se voltar para o Vasco e perguntar:

-Olha lá, safas-te no inglês?

-Mais ou menos…

-Eu vou indo, mas deixo-as aqui contigo. Tomas conta delas por um bocado? Fora de brincadeiras…

-Sim, claro, vai lá.

-Se entretanto vires por aí o Rob, chama-o. Eu vou ver se o vejo antes de começarem.

-São amigas do Rob?

-Não sei bem, mas pelo menos vêm à procura dele.

-Ok, não te preocupes que eu tomo conta delas.

-Vê lá se não deixas os engraçadinhos meterem-se com elas…

O Zé passou pela mesa e disse-lhes para esperar, fazendo entender que ia procurar Rob. Depois apontou para o Vasco e mostrou-lhes dois polegares para cima. Elas olharam para o Vasco com um sorriso luminoso e acenaram levemente, gesto reciprocado por Vasco que subitamente corou.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Renascimento (X de XL)



O Tobias chegou com um copo de plástico na mão e sentou-se do outro lado da improvisada mesa corrida feita de tábuas e cavaletes.

-Sempre vieste. – Disse-lhe o Rob com um sorriso, em termos de saudação.

-Olha, não sabia se havia de vir, mas depois não estava nada de jeito na televisão… - e observaram ambos duas moças giras que passavam vindas do balcão improvisado pelo Zé, que tinha uma torneira de imperial e um barril de tinto e outro de branco atrás - …e aqui sempre estou entretido. – Acabou de dizer, piscando o olho ao Rob, que sorriu e levantou o copo num brinde.

-Falando nisso, - continuou, olhando para ele com um ar sério, mas com um sorriso sacana a bailar-lhe no canto do lábio - explica-me lá essa história da gringa. Ela acha que tu és o marido dela?

Rob respirou fundo e olhou em volta pela praça engalanada, onde quase toda a gente das redondezas dava um pé de dança ao som de uma banda de música de baile que abrilhantava as festas de Santo António das bilhas.

-O que é que queres que te diga. Nem eu percebi muito bem. Apareceu aqui um dia armada em ultima coca-cola do deserto a dizer que eu era o marido desaparecido dela. E voltou no dia a seguir e depois de uma conversa e de jantarmos junto no Zé…

-Convidaste-a para jantar? Não te via assim tão… Suave…

-Não. Comemos juntos mas não houve nada disso. Houve duas pessoas que jantaram no mesmo sítio, deixa-te de tretas.

-Porquê? Desculpa lá, mas se eu tivesse menos uns anos e me caísse do céu um avião daqueles…

-Deixa-te disso. Aquilo é só produção. Muita parra e pouca uva…

-Pelo que vi no dia a seguir, também havia ali muita uva. – Disse o Zé, de trás do balcão.

-Alguém te chamou para a conversa? – Respondeu o Rob de repente.

-Explica lá isso, que este gajo não se descose. – Perguntou o Tobias ao Zé.

-Bem, ela deve ter dormido em casa dele e no dia a seguir saiu daqui vestida numa T-shirt grande à brava e naqueles saltos enormes.

O Tobias olhou para o Rob com um ar inquiridor a rir-se.

-Tu és mau… O que é que se passou? 

-Choveu!

-Hã? – Respondeu o Tobias com um ar aparvalhado.

-É, foi isso que ele me respondeu também. – Disse o Zé com um ar divertido.

-Não queres elaborar mais um bocadinho? Só para a malta perceber… - perguntou o Tobias ao Rob.

-Olha lá, ó Zé, lembras-te daquele desportivo descapotável com que ela veio? Lembras-te como é que o carro saiu daqui?

-Como é que foi, Zé? – Perguntou o Tobias.

-Em cima de um reboque! – Respondeu o Zé.

-Ela deixou a capota em baixo quando foi comigo para o ensaio. Eu disse-lhe para subir a capota, mas ela achou que os gajos da meteorologia é que sabem…

O Tobias desatou a rir.

-Não me digas. Inundado e cheio de lama! Pobre carro…

-Não te preocupes, uma boa lavagem e aquilo fica bem. – respondeu o Rob.

-Mas isso não explica a t-shirt…

-Bem, ela queria chamar um táxi àquela hora. Eu dei-lhe uma daquelas t-shirts XXXL que ninguém compra, para ela ter qualquer coisa que vestir, ela tomou um duche e dormiu no meu quarto de hóspedes.

-Pois, um verdadeiro cavalheiro! Mas, confessa lá, não te sentiste tentado?

O Rob olhou em volta enquanto pensava como responder.

-Não… mas de manhã quando ela acabou de acordar, sem aquela produção toda… Mas, tentado a esse ponto não. Ainda para mais pensando ela que eu sou o marido desaparecido.

-Pá, ainda não percebi. Tu nem sequer és lá assim muito parecido com o gajo… Porque é que achas que ela pensa isso?

-Sei lá, pá! 

-Olha lá… - atalhou o Zé – e já lhe contaste da guitarra que ela te mandou?

-Ela deu-te uma guitarra? Achou que tinhas poucas?

-Emprestou. Não deu.

-Ela mandou uma guitarra de propósito para aqui, emprestada? Que raio de guitarra é essa?

-Uma Les Paul de cinquenta e nove…

O Tobias podia não perceber muito de guitarras, mas pelas conversas do pessoal, esta era “A” guitarra para todos os guitarristas. O Santo Graal. Nem se atrevia a pensar no que aquilo podia valer. Acabou por soltar um assobio antes de perguntar:

-O que é que vais fazer com isso?

-O que ela me pediu na carta que vinha junto.

-Que é?

-Tocá-la!


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Renascimento (IX de XL)



Tinham passado três semanas, tendo o mundo voltado a girar como era costume por aqueles lados. 

A carrinha dos correios parou à porta do Zé, tendo o condutor e único ocupante saído e entrado no estabelecimento.

-Bom dia gentes. – disse com um ar alegre quando entrou.

-Olha o Manuel. – Disse o Zé – Queres beber alguma coisa fresca?

-Só se for uma gasosa, que estou de serviço. O Rob?

O Zé apontou para um canto da sala onde o Rob pousava já o jornal.

-Viva Manuel. – Cumprimentou o Rob. – Tens alguma coisa para mim?

-Tenho uma encomenda. Pelo tamanho deve ser uma guitarra.

-Estranho… Não tenho nada encomendado!

-Eu vou buscar. – respondeu o Manuel saindo e dirigindo-se à traseira do carro de onde tirou uma caixa de cartão embrulhada em celofane que trouxe de volta e entregou a Rob, junto com um papel.

-Preciso da tua assinatura aí em baixo.

Rob assinou o papel e ficou a olhar para a caixa, que não tinha qualquer marca, o que era invulgar, no mínimo. Normalmente as embalagens vinham sempre com as marcas das guitarras que vinham lá dentro.

-Tens aí um canivete para abrir isto? Perguntou Rob ao Zé, que trouxe a gasosa para o Manuel e uma pequena navalha para o Rob.

Rob pousou a caixa em cima de uma mesa e cortou o celofane. Depois abriu o topo da caixa e retirou mais papeis e plásticos usados para proteger melhor o interior. Conseguiu depois retirar uma caixa que parecia em fibra de vidro ou carbono. O que quer que fosse que vinha lá dentro, vinha bem protegido. Rob puxou a caixa para fora do cartão e reparou que vinha um envelope fechado colado à caixa. Não conseguindo descolar o envelope, abriu-o e retirou o conteúdo, esperando uma factura de compra, mas em vez disso encontrou uma carta escrita à mão.

“Rob,

Espero que te encontres bem.

Ainda não tive oportunidade de voltar, embora esteja a fazer tudo para o poder fazer em breve e com algum tempo.

Mas entretanto resolvi mandar-te algo que tem muito significado para mim, e que tinha ainda mais para o meu marido. Conforme podes calcular, é uma guitarra. Esta guitarra não é uma prenda. É antes um empréstimo até que possa voltar às mãos do verdadeiro dono. Está há oito anos sem ser tocada por ninguém, embora tenha sido rigorosamente mantida e tratada, mas acho que merece ser tocada e eu sei que saberás o que é e como a tratar.

Tem estado sob minha custódia à espera do dono, embora tenha havido pressões e insistências para a emprestar a alguns famosos ou até mesmo vender. Mas em nenhuma situação achei que era certo. No entanto, acho que é certo passar para a tua custódia, pelo menos até o dono aparecer para a reclamar.

Espero que a aprecies. Vemo-nos em breve.


Com Amizade,


Miranda”

Acabou de ler a carta e sentou-se. Olhando para a caixa quase receoso.

-Então? – perguntou o Zé.

-É uma guitarra. – respondeu o Rob. No entanto, Zé reparou que havia qualquer coisa no olhar de dele que parecia estranho.

-Só isso?

Rob limitou-se a acenar com a cabeça. Como se tivesse medo do que poderia sair da caixa, começou a abrir os fechos. Quando finalmente abriu a caixa encontraram um estojo castanho, com inúmeras marcas de uso, extremamente bem acondicionado. Aquela caixa exterior parecia ter sido feita de propósito para proteger aquele conteúdo específico. Abriu a tampa do estojo e ficou a olhar para a guitarra que tinha à sua frente.

-Tanta coisa e afinal é só uma guitarra velha. – Riu-se o Manuel, enquanto acabava a gasosa. – Bem, vou andando, que ainda tenho muito que andar.

-Mais logo vais ao arraial? –perguntou-lhe o Zé, enquanto ele saia.

-Então mas eu lá deixaria de ir… Até logo. – E enfiou-se no carro, partindo em velocidade.

Zé chegou-se de novo ao pé de Rob e ficou a olhar para a guitarra junto com ele. Nunca vira tal reacção em Rob, muito menos por causa de um instrumento.

A guitarra, tal como o Manuel tinha dito, era apenas uma guitarra velha, cheia de marcas. Em alguns sítios o acabamento tinha desaparecido, vendo-se claramente a madeira. Mas apesar do aspecto velho, à primeira vista, um olhar mais atento revelava que todas as partes importantes da guitarra estavam bem cuidadas. 

Rob afagou o corpo da guitarra ao de leve, passando depois um dedo pelas cordas e ouvindo o som acústico dela. Depois fechou o estojo e a caixa à volta do estojo.

-Passa-se alguma coisa, Rob? – perguntou o Zé, preocupado com o ar do amigo.

-Não, nada de especial. Só estou um bocado chocado.

-Porquê?

-Foi a Miranda que mandou isto.

-A Finória? Ofereceu-te uma guitarra velha?

-Não, só emprestou.

-Mandou-te uma guitarra velha e mesmo assim é só emprestada? Realmente… - disse o Zé abanando a cabeça.

-É uma Les Paul de cinquenta e nove. Vale à volta de três milhões de Euros!

O Zé ficou estático de repente, olhando para a caixa fechada com os olhos muito abertos enquanto tentava formar um pensamento coerente depois de lhe ter sido dito que um pedaço de madeira com quase setenta anos podia valer tanto dinheiro.

-Se calhar é melhor refazeres o seguro da tua loja… - Acabou por dizer.

Finalmente, este comentário fez Rob sair dos seus pensamentos e desatou a rir.

-Ainda bem que me lembraste disso…


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Renascimento (VIII de XL)




Cassandra conhecia Miranda há cerca de dez anos, quando ela se mudara para o complexo. Apenas um conhecimento circunstancial, uma vez que viviam próximas e cruzavam-se frequentemente.

Quando o marido de Miranda desapareceu, aproximaram-se um pouco, ganharam alguma confiança, e Cassandra, muitas vezes sem nada que fazer, dirigia-se à cobertura da amiga onde lhe fazia companhia e tentava animar.

Mas aproximaram-se mesmo quando o marido de Cassandra faleceu inesperadamente aos cinquenta e cinco anos com um ataque cardíaco massivo devido ao Stress excessivo que vinha com a sua profissão de corrector.

Miranda, talvez por causa da sua própria perda, foi incansável para com a amiga e acabou por criar um enorme laço entre elas, apesar dos 15 anos de diferença. Cassandra, na altura com cinquenta e dois anos, sentia-se perdida. Financeiramente estava bem, mas sozinha, nunca tendo começado aquela família que ela e o marido tanto haviam planeado bem cedo nas suas vidas, mas para a qual ele acabou por nunca arranjar tempo para concretizar.

Já estava habituada a estar sozinha e Miranda foi o resgate da sua solidão. Foi Miranda que a incentivou a tentar conhecer um novo príncipe encantado, mas, para onde quer que olhasse, só via sapos. Claro que seria fácil ter algumas relações fugazes, e não lhe faltavam candidatos. Apesar da idade, parecia ser muito mais nova, apesar do porte com que sempre se apresentava denunciar a sua maturidade. Mas isso, francamente, não a interessava. Tinha-se fechado tanto a esse sentimento que lhe custava sequer reconhecê-lo. 

Tinha com ela a agenda de Miranda e tentava planear a viagem que iriam fazer quando esta entrou na sua sala com um ar estranho, colocou um enorme dossier em cima da mesa e só disse:

-É ele.

-Tens a certeza?

-Só pode. Senão não encontro outra explicação. – Abriu o ficheiro e começou a mostrá-lo a Cassandra. Mostrando relatórios de avistamentos, fotos, registos de transferências bancárias à volta do mundo durante dois anos e depois, por fim, aquela transferência mensal desde há seis anos. – Se não é ele, ele pelo menos está a dar o dinheiro a este Rob Mitchell.

Cassandra foi olhando para os papeis, relatórios e a conclusão era a mesma. Se os dois Robs não eram o mesmo, o Mitchell seria alguém próximo de MaCallum.

-E agora, o que vais fazer?

-Estavas a ver a minha agenda?

-Sim. Tens um mês complicado, mas depois tens todo o tempo do mundo.

-E tu, quanto tempo tens?

-Querida, sabes bem que todo o que quiseres.

-Quando lá fiquei estive num hotel a cerca de sessenta milhas, mas as estradas são complicadas e é moroso… Achas que se consegue algo mais próximo?

-Posso ver se há alguma coisa tipo Air BNB por lá…

-Excelente! – respondeu Miranda, levantando-se, abraçando-a e dizendo-lhe – Já não sei o que faria sem ti. – E depois saiu disparada com um sorriso nos lábios.

-Onde é que vais tão apressada?

-Vou tratar de devolver algo ao dono.

Entrou em casa, cumprimentou a sua assistente, foi directa a uma sala onde raramente entrava, agarrou uma mala de guitarra castanha que estava numa estante.

-Patricia, quero que trates de um transporte sigiloso e urgente para a morada que te vou dar em Portugal. Quero que esta guitarra chegue da maneira mais segura mas inconspícua possível.

Patricia simplesmente anuiu e começou a tratar do que lhe fora pedido.


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Renascimento (VII de XL)






-Bom dia. Creio ter uma reunião marcada com o Sr. Marcus Miller.

-Bom dia, - respondeu a rapariga sentada à secretária que estava diretamente em frente à entrada do Piso – quem devo anunciar?

-Miranda Macallum.

A rapariga pegou no telefone, anunciando-a, levantando-se em seguida e guiando-a até uma sala onde lhe franqueou a entrada, afastando-se em seguida.

Lá dentro estava já um homem de pé a aguardá-la, apresentando-se formalmente enquanto a cumprimentava, fazendo menção para ela se sentar à sua frente, que ela fez.

-Presumo que esteja aqui por causa da investigação.

-Sim. Tenho algumas dúvidas.

-Acerca de…?

-Bem, eu fui a Portugal e estive com a pessoa que é referida, e, para ser franca, não estou completamente convencida de que encontraram a pessoa certa.

Marcus sorriu.

-Compreendo. – Levantou-se, dirigiu-se a um armário de arquivo de onde tirou um processo grande, voltou a sentar-se e colocou o processo à frente de Miranda. Abriu o processo e começou a demonstrar a Miranda a evolução da investigação e as pistas que apontavam para aquele individuo em particular, quase todas elas seguindo transferências e operações bancárias. 

-Como pode constatar a nossa certeza vem do facto de que, sem sombra de dúvidas, pelo menos grande parte do dinheiro que foi movimentado antes do desaparecimento pode ser seguido até contas em paraísos fiscais, quase todas em nome de Rob Mitchell. Claro que não foi fácil obter estas informações. Normalmente estes bancos não facilitam, mas, uma vez que não queríamos a informação para fins legais, conseguimos chegar a ela.

-Como?

-Bem, essa parte é melhor não saber. Apenas lhe posso afirmar que temos plena confiança na informação que lhe prestamos. Também lhe posso afirmar que foi um dos casos mais difíceis que tivemos até hoje. O seu marido não queria mesmo ser encontrado.

-Eu percebo, mas como lhe disse, estive com ele. Não esperava que ele estivesse igual ou mesmo, depois da conversa que tivemos, que fosse reconhecível. Mas a verdade é que a atitude que ele teve para comigo não deu qualquer indício de me reconhecer ou de reconhecer sequer o nome “MaCallum”.

-Eu compreendo as suas dúvidas, mas há aqui duas questões que lhe ponho em cima da mesa para poder pensar. A primeira é que o seu marido fez um esforço enorme para efetivamente desaparecer. Não creio por isso que simplesmente a sua presença o fizesse desistir e assumir quem é.

-Aí concordo em pleno consigo e foi com base nesse pressuposto que falei com ele.

-Mas depois há outras coisas que podem ter acontecido. Não sabemos o que se passou ao certo nos últimos oito anos. Sabemos onde ele esteve, pelo menos com algum grau de certeza, mas muita coisa pode ter acontecido… Um acidente, um trauma… A verdade é que pelo que pudemos verificar as contas quase não são mexidas de há seis anos para cá. Há uma transferência automática com periodicidade mensal de um valor fixo que sai de uma conta nas ilhas caimão para um banco Português, mas fora isso não há movimentos. O dinheiro continua quase todo intacto nas contas para onde foi transferido originalmente. 

-Ou seja, está a querer dizer-me que ele pode ser o meu marido, mas por algum motivo não ter memória disso?

-É uma hipótese…

-Sim, é, mas pelas conversas que tive com ele não me parece ser o caso. De qualquer maneira, posso levar uma cópia do processo comigo para poder estudar?

-Claro que sim. – Pegou no telefone e chamou a assistente, entregando-lhe o processo e pedindo-lhe para fazer uma cópia integral. – Enquanto espera, deseja alguma coisa? Agua, sumo, café?

E para sua surpresa ela apanhou-se a perguntar:

-Tem café expresso? Se tiver aceito um…


sábado, 14 de setembro de 2024

Renascimento (VI de XL)



Tentava degustar o seu vinho rosé no terraço da sua cobertura de Manhattan, que trouxera de Portugal, apreciando-o pelo que era e percebendo o porquê de um dos mais cruéis ditadores dos tempos modernos tanto o apreciar, tendo os seus pensamentos interrompidos pêlos algo incómodos sons da festa que decorria no piso abaixo. Por vezes era incómodo ser vizinha de famosos.

Tinha sido convidada como sempre o era. Raramente ia, e quando ia, sozinha, havia sempre alguém que lhe queria apresentar a alguém… Não tinha paciência.

O seu corpo estava parado e os seus sentimentos congelados há oito anos. Aquilo que ele tinha feito tinha reverberado por todos os recantos e fibras do seu ser. Ela jamais acreditara que ele podia simplesmente um dia desaparecer, deixar tudo para trás, deixá-la a ela para trás.

Lembrava-se do dia em que lhe parecia que tudo começara, depois de ele ter resolvido que gravaria o seu próximo álbum sozinho, e que a sentou a ouvir a sua criação. Depois de álbuns que venderam platina, com tours a envolverem batalhões de gente, produções colossais, aquilo que saiu das colunas, a sua criação sem a interferência, foi aquilo que ele sempre quisera fazer. E era forte. Era fora de tudo que o fazia conhecido. Talvez genial até. A desfazer convenções. Arriscado. Talvez, demasiado arriscado.

-Tens a certeza que é isto que queres fazer? – Foi aquilo que ela lhe tinha dito antes de tudo, e há a lembrança de uma pequena centelha que brilhava, não só no olhar mas também no sorriso, que se extinguiu. O encolher de ombros que se seguiu devia ter sido premonitório. Disse-lhe que sim, que gostava bastante, mas…

E depois as músicas foram mandadas para a editora, que exigiu que os projectos fossem entregues a um produtor. E o que veio de volta era limpo, lindo mas previsível, seguro…

E o sorriso apagou-se de vez. A recusa de marcar datas para novos concertos, a deliberada escusa em responder a perguntas acerca do último álbum, a pressão de todo o lado…

…o dia em que, de repente deixou de estar, sem uma palavra, sem um contacto. Os dias que se tornaram semanas, as semanas meses, o medo, a ansiedade, a resignação… Mas nunca a aceitação. Ele tinha de saber que ela faria tudo por ele. Abandonaria tudo isto como ele fez, se isso significasse estar com ele. Faria tudo por ele, como sempre tinha feito. Absolutamente tudo.

Ele sabia isso. Ela demonstrava-lho por actos e palavras, como sempre o fizera, antes do sucesso. O porquê de ele a ter deixado para trás, embora sem a certeza, fazia com que a culpa que ela sentia fosse uma pedra que arrastava consigo. 

Ela tinha de o encontrar. Tê-lo-ia já encontrado?

Reviu os acontecimentos daqueles encontros.

Estariam as equipes de investigação pagas a peso de ouro enganadas em relação a Rob?

Em primeiro lugar estava o facto de haver algumas parecenças, eram da mesma altura, mesmo tom de cabelo. As diferenças no corpo podiam atribuir-se a 8 anos de um outro estilo de vida. Já o rosto, completamente diferente! Mas tinham-lhe explicado que, se ele queria desaparecer, e depois de ter sido identificado em alguns locais do mundo, não seria difícil encontrar algum cirurgião plástico sem escrúpulos na Asia ou América do Sul que o tornasse irreconhecível. No entanto e estrutura do rosto parecia algo idêntica e os olhos…

Os olhos dele confundiam-na!

Ele não deu qualquer indício de a conhecer. Foi rude, mal-educado, gozou com ela, repreendeu-a como se fosse uma criança, não teve um pingo de cortesia, considerou-a sempre um empecilho à sua paz de espirito. Ela devia odiá-lo, mas…

Todos à sua volta pareciam respeitá-lo. Parecia respeitar todos à sua volta. Não lhe negou ajuda quando ela precisou. Parecia de alguma maneira relacionar-se com a história de alguém que resolve deixar tudo para trás. Segundo ele próprio, na mesma altura e em circunstâncias com imensos paralelos ao que ela vivera. E a expressão dele quando ela chegou ao fundo das escadas de sua casa…

Se era ele, o que quereria dela para se afirmar? O que seria preciso para ele reconhecer a verdade? Será que queria alguma coisa dela? Será que a atura apenas por curiosidade?

Se não é… Poderá ajudá-la a entender?

Os seus pensamentos foram interrompidos pela sua assistente, Patrícia, que abria a porta do terraço facilitando a passagem à sua amiga, Cassandra. Pousou de imediato o copo e levantou-se abraçando a amiga que já não via desde antes da sua viagem.

-Então? Encontraste-o? – Perguntou a amiga curiosa.

-Não sei.

-Como não sabes? Viste-o? Estiveste com ele?

-Vi e estive com a pessoa que foi indicada. Não foi difícil encontra-lo. Ele não fugiu quando me viu. Apenas pareceu aborrecido, mas não sei se comigo ou com a maneira como eu apareci e me apresentei.

-Mas o que é que ele fez quando te viu?

-Nada. Eu chamei-o pelo nome, mas ele disse que não conhecia nenhum MaCallum e perguntou ao dono do café se conhecia, ao que ele também respondeu que não.

-Mas não te disse mais nada? Não te reconheceu?

-Nada. Nenhuma reacção a não ser parecer estar aborrecido por eu lhe quebrar a rotina. Se queres que te diga foi uma experiencia estranha e algo surreal. Acabei por dormir uma noite em casa dele.

A amiga ficou surpresa com esta afirmação.

-Tinhas assim tanta certeza de que era ele ou finalmente…

-Não. – Apressou-se Miranda a corrigir o equívoco - Nada disso. – E contou-lhe o que se tinha passado.

Cassandra ficou pensativa por algum tempo.

-Como é que é possível?

-Não sei. O mais estranho foi o olhar dele quando eu desci as escadas de casa dele, de manhã…

-Querida, sabes bem que qualquer macho de sangue quente – e algumas fêmeas também, diga-se…

-Não, foi diferente disso. Não foi um olhar de desejo, foi como se olhasse para mim e estivesse algures no passado…

Cassandra olhou para ela e sorriu.

-Quer seja ele ou não, esse Rob teve impacto em ti…

-Sim. Mais do que eu queria admitir.

-E o que vais fazer agora?

-Agora? Não sei. Sei que quero falar com este Rob outra vez. Voltei porque fiquem mesmo com muitas duvidas e quero confrontar as agencias que me deram a informação e tentar perceber o porquê de eles a considerarem absolutamente fidedigna. Depois disso, bem… vou voltar e falar com ele. Acho que de qualquer das maneiras talvez eu encontre algo…

Sentaram-se as duas quando Patrícia, a assistente de Miranda, entrou trazendo outro flute para Cassandra.  Miranda encheu a flute que Cassandra ergueu.

-Prova. – Instigou-a Miranda.

Ela assim fez e ficou deliciada.

-É um vinho lá de Portugal. Não é da região onde estive, mas o que achas?

-Delicioso! Por falar nisso, como é que é o sitio onde ele está?

-É difícil de descrever. Tem muita planície, mas não é desértico e até as árvores são estranhas. Há muitas vinhas com oliveiras e sobreiros espalhados. Vêem-se rebanhos de ovelhas e pastores atrás delas pêlos campos. Acredita, não podes encontrar um contraste mais absoluto. A Terra onde ele vive tem meia dúzia de casas, está rodeada de vinhas e florestas. 

Cassandra pensou um pouco.

-Quando é que tencionas ir lá?

-Assim que for possível.

-E por quanto tempo?

-Não sei. O que achar necessário.

Cassandra sorriu.

-Queres companhia? – perguntou, como quem sabe a resposta que Miranda não poderia negar.


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Renascimento (V de XL)



Depois de ter demorado uma eternidade a adormecer, enquanto revivia memórias, fazia conjecturas e tentava alhear-se do facto de que possivelmente estava a dormir debaixo do mesmo teto do marido pela primeira vez em oito anos, teve um sono irrequieto, acordou sobressaltada e demorou algum tempo a situar-se.

Levantou-se, vestiu a t-shirt, enfiou os pés nos chinelos grandes demais e saiu do quarto. Rob estava na cozinha e viu-a ao cimo das escadas.

-Bom dia. -cumprimentou-a.

-Bom dia. – Respondeu ela com um ar ensonado enquanto descia. Ao chegar ao fundo da escada reparou que Rob a olhava intensamente com um ar estranho.

-O que foi? – Perguntou admirada.

-Desculpa. Não foi nada. Recordações. Não tem nada a ver contigo.

Ela seguiu para a casa de banho e ele seguiu-a com o olhar.

-Torradas com manteiga para o pequeno-almoço?

-Há mais alguma coisa?

-Manteiga barrada em torradas, se preferires.

-Então pode ser isso.

-Leite? Chá? Café? Mistura?

-Café com leite. -Disse ela já depois de fechar a porta. E depois olhou-se no espelho. O cabelo completamente desgrenhado, depois de se ter deitado com ele molhado no dia anterior dava-lhe um aspecto pavoroso. E ainda por cima nem o seu estojo de maquilhagem tinha consigo. Mas depois, olhou para o resto da sua figura, vestida com uma t-shirt que lhe dava quase pelos joelhos. Ouviu-o gritar da cozinha:

-Se abrires a gaveta da esquerda encontras uma escova de cabelo. Comprei-a há pouco e ainda não a usei, por isso podes usar à vontade.

Ele parecia ter adivinhado pelo menos parte dos seus pensamentos.

-Obrigada. – Respondeu enquanto começava a escovar o cabelo, após encontrar a escova. Pelo menos não ia parecer uma selvagem. Resolveu calçar os Pumps, uma vez que era incómodo andar com aquelas chinelas e dirigiu-se à cozinha.

Quando entrou Rob mirou-a de alto abaixo e riu-se.

-O que foi? - perguntou ela com um ar algo sentido.

Tenho que te mostrar. – Disse ele, tirando um telemóvel do bolso – Faz pose.

Ela percebeu, fez uma pose para ele e ele tirou uma foto. Depois passou-lhe o telemóvel para a mão, mostrando-lhe a foto.

-O que foi? -perguntou, não notando nada em especial.

-Essa foto faz melhor promoção à banda que a maior parte do material promocional deles. – Respondeu ele rindo. Ela corou.

-Escusas de corar. Não é um elogio, é só uma constatação?

- Achas-me atraente?

-Não sou cego.

-Atraio-te?

-Não. Tens aí torradas e o café com leite.

Ela ficou um pouco desiludida. Um pouco não, bastante. Sentou-se pegou numa torrada, mordeu, trincou, mastigou, degustou… E perguntou-lhe admirada:

-Que pão é este?

-É pão Alentejano, mas este é mesmo cozido aqui na Aldeia por uma velhota num forno de lenha mais velho que ela. É bom, não é?

Ela, de boca cheia, limitou-se a acenar. Acabou por comer mais do que devia. O café com leite também estava delicioso e ficou a saber que o leite vinha de uma vacaria local

Depois do pequeno almoço ligaram para um reboque e pediram um táxi para algum tempo depois da hora que o reboque tinha dado para aparecer.

O reboque apareceu primeiro e carregou o carro, aparecendo o táxi enquanto bebiam um café no Zé.

Ele acompanhou-a até ao táxi.

-Aquilo que te perguntei ontem está de pé? Se eu voltar não te importas de falar comigo?

-Como te disse ontem, se não tiver mais nada para fazer…

Ela estendeu-lhe a mão, gesto que ele reciprocou.

-Obrigada, Rob. Eu volto.

Entrou no táxi, que arrancou de imediato.

Rob voltou a entrar no estabelecimento do Zé, pediu-lhe uma água fresca e sentou-se com o Jornal, como fazia quase todos os dias. O Zé pôs a garrafa na mesa e sentou-se ao lado dele.

-Queres explicar o que é que se passou? – perguntou-lhe com um olhar malandro.

-Nada do que estás a pensar.

-Então porque é que ela chegou aqui ontem toda produzida e sai daqui vestida numa t-Shirt de tamanho familiar?

-Porque choveu.

O Zé ficou a olhar para o Rob, levantou-se a resmungar qualquer coisa acerca de estrangeiros imbecis e foi tratar do almoço.


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Renascimento (IV de XL)




Se o caminho já tinha sido demorado à ida, o caminho de volta estava ser lento e penoso. O carro, coberto por uma camada de lama amarelada depois da chuva, enchia-se agora de lama enquanto meandrava pelos caminhos no meio do arvoredo.

-Porque é que o carro ficou todo amarelo com a chuva? – Perguntou ela, curiosa.

-É das poeiras que andam no ar, arrastadas do Sahara pelos ventos. Quando há uma concentração grande acaba por provocar este tempo abafado e quando há trovoadas e chove, cai lama do céu. Fica tudo amarelo, se entretanto não chover outra vez.

-Deve ser uma chatice.

-O pessoal habitua-se. E então, valeu a pena vires?

-Sei que podes pensar que não, mas estranhamente, sim. Foi diferente e até divertido. Os teus amigos são simpáticos. O Tobias disse algumas coisas que me fizeram pensar.

-O Tobias é o nosso velhão. Está quase com sessenta. É o nosso sábio de serviço. A vida não foi fácil para ele, mas mesmo assim ele nunca baixou a cabeça e é sempre uma das pessoas mais bem-dispostas quando o pessoal se junta. É um exemplo para nós.

-Ele mencionou de passagem que era viúvo…

-Sim, ela morreu muito nova. Tinham a miúda com cinco anos, na altura, e ele teve de a criar sozinho. Mas ele fez um excelente trabalho. A filha é médica especialista em Lisboa e é o orgulho dele.

-E ele nunca casou?

-Ele viveu para a filha. Houve alturas em que ele teve dois empregos para poder sustentar os estudos dela. Ele não tinha tempo para ter uma vida. Só quando ela se formou e começou a trabalhar é que ele pôde desacelerar e começar a viver, Mas acho que nunca ninguém o viu sequer tentar chegar-se a alguém.

-Achas que tem medo, por já ter alguma idade?

-Ou isso ou dispensa a chatice.

- A chatice? Achas mesmo?

-Acho. Sabes, um gajo quando chega a uma certa idade quer paz. Sobretudo se está sozinho há bastante tempo. O drama é dispensável. Drama trás chatices. E com mulheres, seja porque motivo for, há sempre um drama. Senão nas próprias vidas, nas vidas dos outros.

-Discordo completamente contigo. Não me revejo minimamente nessa tua afirmação.

-Não? Mal nos conhecemos e já me deste chatices de embarda.

-Então porque é que me aturas?

-Continuo curioso. Afinal ainda não sei qual foi a birra e porque é que andas à procura do teu marido.

Chegaram finalmente a casa de Rob. Ele saiu, abriu o portão para o seu quintal, levando o carro para debaixo de um telheiro, saíram os dois, não ficando ela à espera que ele abrisse a porta e ele acompanhou-a ao portão.

-Se eu voltar, podemos conversar mais um pouco? – perguntou ela, com um ar esperançado.

Ele respirou fundo, como que resignando-se.

-Se eu não tiver nada melhor para fazer, porque não?

Ela sorriu

-Obrigada. Até…

-Vamo-nos vendo. - Disse ele fechando o portão, virando as costas e dirigindo-se ao carro, de onde tirou a guitarra e entrou em casa pela lateral. Ela não tirou os olhos dele, até ele desaparecer. Depois virou-se caminhou em direcção ao seu carro, virou a esquina e…

…arrependeu-se de não ter levantado o tejadilho.

Todo o carro estava amarelo, por fora e por dentro. E o fundo do carro tinha uma altura interessante de água. 

De repente estava sozinha bem depois da meia-noite numa rua mal iluminada de uma povoação sem rede de telemóvel. O dia podia correr pior, mas era difícil. Soltou um grito de frustração e deu um pontapé no pneu. 

Sem saber o que mais fazer, tocou à campainha de Rob, que demorou um bastante a vir à porta, mas apareceu vestido só com uns calções pelos joelhos e todo molhado. 

-Estavas a tomar duche?

-É assim tão evidente? Esqueceste-te de alguma coisa?

-Não, mas tenho um problema e se me pudesses ajudar…

Um sorriso sacana apareceu no canto da boca de Rob.

-Não me digas, pensavas que tinhas um carro mas tens uma banheira…

-Sim… - respondeu ela claramente envergonhada.

-Acções têm consequências. Eu avisei-te…

-Eu sei. Fui estupida. Mas ajudas-me, por favor?

-Uma mulher a admitir que errou? Devia ter gravado o momento para a posteridade. Se eu contar isto a alguém, ninguém vai acreditar. – Disse ele num tom de gozo, enquanto lhe franqueava a porta, afastando-se para ela entrar.

Ela entrou e parou logo a seguir, esperando que ele fechasse a porta e a conduzisse para dentro de casa.

A casa tinha todo o aspecto rustico, típica daquelas partes, com o teto em madeira. Notava-se claramente a enorme grossura das paredes a partir do interior devido à enorme profundidade das janelas. A sala estava esparsamente mobilada com um sofá, uma poltrona, uma mesa de apoio e uma televisão a um canto, sendo dominada por uma enorme lareira.

-Então? – perguntou ele, enquanto fazia menção para ela se sentar no sofá, sentando-se ele na poltrona.

-Não sei. Posso fazer um telefonema para mandar vir um reboque amanhã e arranjar um táxi hoje?

-Podes, mas não te garanto que o táxi não demore bastante tempo. Espera aqui.

Ele levantou-se, saiu da sala e voltou pouco tempo depois com uma embalagem de plástico na mão que abriu, retirou o conteúdo e deu a ela. Ela agarrou e era uma t-shirt enorme, estampada com o nome de uma banda.

-Isso é tamanho XXXL portanto deve dar um bom vestido para ti. Também tens aqui uns chinelos. Devem estar-te grandes, mas é o que se arranja. A casa de banho é ali – apontou ele – e podes ir tomar um duche. Ao cimo das escadas está um quarto pequeno. Podes dormir lá. O colchão não é espectacular, mas há piores. Amanhã é outro dia e escusas de incomodar pessoas a estas horas.

Ela, francamente surpreendida com a atitude dele, agarrou na T-shirt o nos chinelos e dirigiu-se à casa de banho onde tomou um duche o mais rápido possível. Saiu da casa de banho vestida com a t-shirt, o cabelo molhado escorrido e a roupa suja na mão. Ele esperava-a.

-Precisas de alguma coisa? – Perguntou.

-Por acaso não tens um secador de cabelo?

-Não, não uso.

Ela resignou-se e dirigiu-se para a escada que dava para o quarto. Quando chegou ao cimo, voltou-se para ele e disse com toda a sinceridade na sua voz:

-Obrigada.

Ele acenou a cabeça em reconhecimento. Ela entrou no quarto e fechou a porta. Ele entrou no seu.